Atlas da violência mostra expansão das facções em pequenos e médios municípios
Levantamento identificou avanço da letalidade em rotas usadas por facções no tráfico de drogas e outros mercados, como o garimpo ilegal

Realizado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada, o Ipea, em parceria com Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Atlas da Violência 2025 – Retrato dos municípios brasileiros e dinâmica regional do crime organizado mostrou como tendência a continuidade da expansão da violência letal em localidades menos populosas.
As regiões Norte e Nordeste encabeçam o ranking. Das dez cidades (entre 100 e 700 mil habitantes) com maior taxa de homicídios, sete estão no Nordeste (Camaçari, Jequié, Juazeiro, Simões Filho e Feira de Santana – na Bahia; Maranguape e Maracanaú – no Ceará). Duas estão no Norte (Santana e Macapá – no Amapá); e uma no Centro-Oeste (Sorriso, no Mato Grosso).
A principal causa do avanço do índice em regiões fora dos grandes centros é relacionada às guerras entre facções, em especial o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, que se nacionalizaram nos últimos anos e brigam pelo controle de municípios portuários e que ficam estrategicamente posicionados nas rotas do tráfico de drogas. Nesse sentido, novas facções regionais acabam surgindo e contribuem para o aumento da letalidade, como o Cartel do Norte, o Terror do Amapá, entre outras.
Daniel Cerqueira, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, no Diest, Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, é coordenador do atlas. Em entrevista, o pesquisador trouxe um balanço dos dados da edição, traçou um histórico da segurança pública no país e opinou sobre as ações governamentais de combate ao crime organizado. Confira:
A edição atual mostrou uma redução na taxa de homicídios nas capitais, com o avanço da violência nos municípios de médio e pequeno porte. Como você avalia esse fenômeno?
Esse é um processo em curso há pelo menos uma década. A gente começou a observar primeiro uma redução dos homicídios em grandes cidades, nas grandes regiões metropolitanas, lideradas por São Paulo, cuja queda de homicídios já vem desde 1999, mas também outras capitais, outras regiões metropolitanas, como Rio de Janeiro, Vitória, Porto Alegre e várias outras. Por outro lado, começamos a observar um aumento dos homicídios nas cidades médias e pequenas e houve também uma interiorização da violência letal para esses municípios. Um fato que certamente contribuiu para a evolução dessa penetração dos homicídios nesses municípios pequenos e médios no interior tem a ver com a mudança na dinâmica do crime organizado, sobretudo, com a mudança na forma de trabalhar das duas maiores facções criminosas no Brasil. O Comando Vermelho e o PCC, além de explorarem o mercado do varejo de drogas, começaram a pensar que valia muito a pena fazer uma integração vertical da cadeia de valor de drogas, ou seja, buscando a droga dos países produtores (Bolívia, Peru, Colômbia), trazendo essa droga para o Brasil e, não só destinando-a aos mercados varejistas nacionais, mas também aos mercados exportadores. Esse processo começa muito fortemente na década de 2010, com o controle de uma rota que sai ali do Alto do Juruá, no Acre, e em Tabatinga, no Amazonas, em que essa droga entra a partir desses outros países limítrofes e ela ou seguia pela rota do Solimões, atravessando toda a região amazônica, onde a droga terminava sendo exportada pelos portos e aeroportos dos estados nordestinos ou, então, também, essa droga descia pelo Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, e emendava com a rota caipira, que é a rota de drogas que geralmente passava por todo o interior de São Paulo, via Porto de Santos. Essa mudança geopolítica no mercado de drogas pelo domínio desses corredores internacionais gerou, não só muitas mortes, sobretudo até 2017, mas gerou um fato novo, um processo de cristalização dessas duas facções, além das outras regionais, que começaram a perceber que a droga gera lucro, mas existem outros mercados também possíveis. Por exemplo, na região Amazônia, começaram a explorar a grilagem de terras, o garimpo ilegal de ouro, vários outros crimes ligados às questões ambiental e social. Então, é um combate muito mais difícil, com novas tecnologias de operação e, muitas vezes, com o apoio da população local. Se antes, dez anos atrás, metade dos homicídios acontecia em 1,7% dos municípios, hoje metade dos homicídios no Brasil acontece em 3% dos municípios.
Esses municípios que estão no topo do ranking são localizados principalmente nas regiões de avanço das facções? Quais são as características gerais?
Fizemos uma análise da violência em todos os municípios brasileiros, mas, obviamente, tem cerca de três mil municípios no Brasil que têm uma população muito pequena, população de dez a trinta mil habitantes. Então, não dá para analisar todos dentro de uma mesma régua porque tem casos onde, por exemplo, ocorre de algum sujeito que matou a mulher e mais alguém, se três pessoas morreram naquela cidade, a taxa do município vai lá para cima e parece que é um local violento, mas se tratou de um caso muito particular. A gente fez, então, análises particularizadas no ato da violência, levando em consideração o conjunto dos municípios brasileiros. E aí, levando em consideração esse conjunto de municípios, olhamos aqueles que tinham maiores taxas e que tinham algum número relevante de homicídios em termos absolutos. E também analisamos o conjunto dos municípios com menos de cem mil habitantes, que a gente chamou de municípios pequenos, municípios entre cem e quinhentos mil habitantes e municípios de mais de quinhentos mil habitantes, e também fizemos uma espécie de ranking com todos os municípios brasileiros com mais de cem mil habitantes que somavam, em 2023, 333. E ao fazer essa análise dos municípios com mais de cem mil habitantes, percebemos que boa parte dos municípios mais violentos do Brasil estava concentrada exatamente na região Norte e Nordeste. Boa parte dos municípios que tinham menor taxa de homicídio estavam concentrados em São Paulo, na região Sudeste e no Sul. Quando olhamos o mapa do Brasil, vemos que existe uma dinâmica criminal, uma dinâmica de violência letal, em que os estados do Sul e Sudeste são mais presentes nesse mapa da violência e conforme subimos no mapa do Brasil, esse mapa termina tendo cores mais fortes, com as maiores taxas de homicídio. Em particular, o caso da Bahia chama muito atenção. Dos vinte municípios mais violentos, com mais de cem mil habitantes, dez estão situados na Bahia. E vemos duas coisas acontecendo ali. Primeiro é o estado que tem mais facções criminais operando atualmente. Fala-se de 34 facções, desde de grupos nacionais como o Comando Vermelho e o PCC, grupos regionais como o Bonde do Maluco e várias outras pequenas facções que estão brigando, estão guerreando intensivamente com muitas mortes nas cidades, nos bairros das grandes cidades e das pequenas cidades, e de Salvador. E além disso, o que a gente via acontecer, pelo menos até recentemente, era um processo em que a política pública ao invés de propor soluções efetivas para a diminuição dessa violência, na verdade terminava jogando mais lenha na fogueira ao propor uma solução do uso da violência exacerbada pela polícia, que era a que mais matava, perdendo apenas para a polícia do Amapá.
Podemos atribuir o aumento no número de mortes em determinados municípios a partir da movimentação das facções, se elas estão em guerra, se expandindo? Por exemplo, no caso de São Paulo, onde o PCC domina o estado inteiro e já está consolidado, não notamos mais o crescimento dos homicídios.
A questão não é exatamente tão simples. Por exemplo, Minas Gerais é o terceiro estado com maior número de facções atuando, mas é baixo o número de mortes. No Rio Grande do Sul, a mesma coisa. Em Santa Catarina, há duas facções em disputa, mas é o estado menos violento do Brasil. Então, tem a ver com outras questões, como a governança criminal da facção. Algumas são mais rígidas, outras têm foco maior no lucro. Um grande número de mortes, além de ser um prejuízo, chama muito a atenção da sociedade e da polícia. Fora as mortes que são causadas pela polícia. O que aconteceu recentemente no Rio de Janeiro é um bom exemplo de uma forma absolutamente burra de lidar com o problema. Essa operação que foi feita no Alemão e matou 121 pessoas, isso é feito há décadas, sem nenhum resultado. Na verdade, o que ocorreu acaba jogando mais lenha nessa fogueira da violência, fazendo com que exista uma violência desmedida, uma matança perpetrada pelo Estado, que, no final das contas, leva a aumentar a corrida armamentista pelos grupos criminosos que vão querer se armar para disputar essa guerra no futuro. É uma guerra que vai criar um verdadeiro abismo entre polícia e comunidade, inviabilizando qualquer possibilidade da polícia dar certo. É uma guerra que, por outro lado, a polícia acaba tendo licença para matar sem ter o escrutínio das instituições oficiais para saber se aquela morte foi legítima ou não conforme dizem as leis. Um policial pode matar numa situação de legítima defesa, mas aquilo tem que ser escrutinado pelas organizações do Estado, o Ministério Público, a Justiça, para saber se aquele cara está exacerbando no uso da violência ou não. Quando simplesmente o governo do Estado fala assim ‘vamos partir pra cima’, vamos perpetrar essa violência e as instituições do Estado não fazem aquele escrutínio correto, está sendo dada a licença para matar. E a licença para matar é o principal elemento que garante o mercado de propina. Então, aquele policial que eventualmente é corrupto, e pode matar ou não, ele usa esse poder de morte para arrecadar dinheiro, para cobrar propina.
Pegando esse gancho da operação no Rio de Janeiro, para além da falta de ação das instituições, como você destacou, a gente observou um elemento forte nessa narrativa que foi o apoio da população, medido a partir de pesquisas de opinião, isso foi combinado com uma falta de questionamento por parte da mídia hegemônica. Como você avalia esse quadro?
Tem dois aspectos importantes. O primeiro é o medo da população. É um medo atávico, um medo real. No Rio de Janeiro, a gente tem esses grupos criminosos regulando a vida de quase metade da população. Regulando significa dizer sob domínio de grupos criminosos de milicianos ou das facções de drogas, que eventualmente limitam a liberdade de ir e vir dessas pessoas, mas limitam também a liberdade econômica porque elas têm que comprar botijão de gás mais caro na mão deles, internet, etc. E elas querem se livrar disso ou mesmo que não se livrem, elas querem uma vingança. Então, tem esse lado, que é o lado do ser humano que se sente impotente e que quer mais que o outro se dane. E não vê que na verdade não é solução, não é como uma bóia para um náufrago. É na verdade uma pedra que vai cada vez levar mais as pessoas ao fundo do mar.
Tem um primeiro aspecto que é esse da violência e como as pessoas se sentem impotentes no Brasil. Mas tem um segundo aspecto que não podemos esquecer, que tem a ver com o seguinte: a gente tem ainda valores culturais no Brasil que vêm sendo construídos, ano após ano, com base em instituições que surgem desde a época colonial. Os colonizadores vinham aqui para explorar os recursos naturais com base em quê? Na violência. Então, foi assim que a gente dizimou as populações originárias. Foi assim que tivemos 388 anos de escravidão e um massacre da população negra e assim que todas as instituições se organizavam desde o período do Brasil Colônia e foram mudando, mudando de nome, mudando de nuance, mas continuam aí até hoje. É aquela história do Casa-Grande & Senzala. A gente tem políticas de segurança pública hoje que são para defender a casa-grande. E a senzala, ela tem que ser controlada. Então, são feitos verdadeiros cordões sanitários nas cidades, nos bairros nobres. Aqui no Rio de Janeiro, em Copacabana, você vai ver uma viatura em cada quarteirão, com policiais tratando a população com educação. Essa é a política orientada para a casa-grande. E a senzala? Na senzala é bomba, é tiro de helicóptero, de metralhadora, porque temos que controlar, e são pessoas pobres e de maioria negra e ali tudo é permitido. A mídia, uma parte da mídia, apoia. Vi reportagens vergonhosas sobre essa operação do Alemão que mostravam apenas o policial herói, como ele foi alvejado, e não fazia nenhuma crítica sobre o problema, não olhava para o outro lado da história, que é exatamente a questão fundamental do jornalismo. Então a gente está nesse estado de coisas não é à toa. Não é só o governante que quer maximizar votos, mas tem a mídia e tem todo mundo que apoia.
A partir das últimas operações da Polícia Federal, o caráter do combate ao crime também apareceu em destaque, com maior investimento em ações de inteligência para desarticular redes criminosas. Por outro lado, tivemos a operação no Alemão. Como você avalia a diferença das abordagens? Qual a sua opinião sobre a tramitação do PL antifacção no Congresso?
Em primeiro lugar, a gente tem que falar de dois pontos importantes. Ainda tem algum resquício, um legado, da ditadura militar no Brasil, em que o modelo proposto de segurança era exatamente um modelo de controle na ponta, feito pelas polícias militares. O controle pelo policiamento ostensivo. Houve uma hipertrofia das polícias militares e um sucateamento das polícias civis e da investigação e inteligência. Por exemplo, a gente tinha as chamadas guardas civis no período militar, que investigavam, tinham um trabalho de inteligência e a ditadura militar acabou com as guardas civis. Na década de 1970 o país era eminentemente agrário. E, a partir daí, começa a ter maior parte da população morando nos grandes centros. Chegamos à década de 1980 com cidades inchadas, caóticas. As pessoas sem emprego, as tensões sociais aumentando e como tentaram, naquele período da ditadura, resolver o problema?
‘Vamos botar a polícia na rua e prender todo mundo’. E aí se fez. Na minha tese de doutorado pegamos alguns retratos que mostram a falência do modelo já ali naquela década de 1980. Para cada cem homicídios que aconteciam em 1980, a polícia prendia supostos 62 homicidas. No final da década, de cada cem homicídios que aconteciam, a polícia prendia 31, ou seja, metade. Se em 1980 a gente tinha cinquenta mil detentos no Brasil, hoje temos mais de seiscentos mil pessoas. Nos anos 1990, vai aumentando a dureza das penas, prendendo todo mundo usando de forma carnavalesca a prisão como um problema para tudo. Claro que o homicida, que representa risco para a sociedade, tem que estar preso, não resta dúvida, mas, da mesma forma como usamos um antibiótico para uma infecção, não podemos usar para qualquer gripe pequena. E é exatamente o que temos feito nos últimos quarenta anos.
Foi criado um poder para as facções, que nasceram exatamente desse arbítrio do Estado e das políticas de encarceramento. E o que estão discutido nessa lei antifacção? O Governo Federal mandou uma proposta até razoável, que até poderia ser melhorada, entendendo que o problema da facção é uma questão fundamental, importante, que a gente tem que ter atenção hoje no Brasil, com a entrada em diferentes mercados e na esfera pública. Era uma ideia boa, mas o Hugo Motta entregou ao Derrite, que é totalmente despreparado, que trouxe um substitutivo pior que o outro. Se não houver uma inteligência mínima no Congresso Nacional para mudar urgentemente isso aí, o que que vai acontecer? Estamos aplicando altas doses daquele remédio que, não só não funcionou nos últimos quarenta anos no Brasil, como um remédio que vai piorar muito mais. Ainda mais quando a gente vê que o Supremo sancionou uma ADPF que cria o Pena Justa, que é dizendo o seguinte: a gente não tem que prender ladrão de galinha porque esse cara vai ser mão de massa de manobra para o crime organizado. A gente tem que prender o cara que representa risco à sociedade. Dentro do sistema prisional, a gente tem que ter as condições de garantir exatamente o que a lei prescreve para quem está dentro do sistema prisional e fazer isso criando as condições para que eventualmente ele tenha um processo de reinserção social, porque esses caras são presos, mas eles voltarão para a rua algum dia. O que esse projeto substitutivo antifacção que o Derrite propôs é exatamente uma negação dessa proposta do STF. Então, na verdade, a perspectiva é aumentar ainda mais o nosso problema no futuro.


