Marcha reúne 300 mil pessoas em Brasília por reparação e bem-viver na maior mobilização política de mulheres negras que o mundo já viu

Clátia Vieira: “Queremos sair do fim da fila, temos pressa”
Foto: Sérgio Silva

Um mosaico de 300 mil mulheres de todos os estados do Brasil e outros 37 países da América Latina, Europa e África coloriu a Esplanada dos Ministérios no último dia 25 de novembro, durante a Marcha das Mulheres Negras por reparação e bem-viver. A mobilização foi construída ao longo de três anos como resposta ao aprofundamento das desigualdades.

De acordo com o 4º Relatório de Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mulheres negras ganham, em média, 53,3% menos do que os homens brancos. Elas somam 28% da população brasileira e ocupam apenas 2% do Congresso Nacional. E também gastam mais tempo em tarefas domésticas, têm menor acesso a empregos formais e são mais afetadas pela pobreza, o que reafirma a urgência de construir um Estado comprometido com reparação histórica e justiça social.

Desde as primeiras horas da manhã, dezenas de caravanas chegaram de ônibus e vans ao local da concentração, no Museu Nacional. Mulheres de todas as idades, profissionais da educação e da saúde, bancárias, trabalhadoras domésticas, rurais, quilombolas, ribeirinhas, representantes de partidos políticos e de organizações sociais produziram bandeiras e camisetas que identificavam suas delegações. Elas marcharam ao lado de ativistas independentes, artistas, parlamentares, percussionistas e escritoras.

A integrante do Fórum Nacional de Mulheres Negras e do Comitê Nacional de Organização da Marcha Clátia Vieira disse que um dos principais objetivos da mobilização é dar visibilidade à luta das mulheres negras no Brasil. “Eu sempre digo que precisamos sair do final da fila, a gente tem pressa. O povo preto não suporta mais projetos que vão fazer efeito daqui a cinco, seis anos, e a gente nem sabe se pode viver até lá. Então, nosso primeiro projeto é garantir a vida dessas pessoas”, diz.

“Queremos que as mulheres sejam respeitadas, que a vida do povo preto seja respeitada. Eu sou do Rio de Janeiro, e a gente chega aqui muito machucada, né? A gente precisa que o Estado brasileiro olhe para as mulheres negras como cidadãs de direito, para que tenham trabalho, moradia digna, educação, cultura. A gente defende a não perseguição dos nossos jovens e do povo de matriz africana, queremos o enfrentamento ao racismo religioso”, afirma.

Moradora da comunidade quilombola Território Sapê do Norte e representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (Conac), Domingas dos Santos Delfino saiu do Espírito Santo para participar da Marcha. “Estamos aqui na luta pelos direitos das comunidades quilombolas e dos nossos territórios. E também pra mostrar a nossa cara, o nosso corpo, pra mostrar que a gente existe, algo que vem passando muitas vezes despercebido para o Estado brasileiro”, diz.
Ela conta que para as mais de 40 comunidades quilombolas daquele território, a principal luta é contra as monoculturas de eucalipto e cana que agridem o meio ambiente. “O impacto é muito grande nessas comunidades, falta água e ocorre um monte de situações que o restante do Brasil não conhece”, diz.

A dirigente do Sindicato dos Bancários de Pernambuco, Eleonora Costa, viajou com uma delegação de oito pessoas para marchar em Brasília. Disse que a principal luta no setor financeiro é por igualdade de oportunidades na carreira, equiparação salarial com os homens e pelo emprego. “É muito difícil os bancos contratarem mulheres negras”, afirma.

A coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Cleide Pinto, começou a trabalhar em uma casa de família aos 14 anos de idade para cuidar de outras duas crianças. Ela lembrou que, como toda trabalhadora que não sabe o valor de seu trabalho, já teve vergonha de ser doméstica. “Esse mito de que o trabalho doméstico não gera lucro é mentira, porque para um médico, professor ou qualquer categoria estar onde está tem uma trabalhadora doméstica

dentro de sua casa, então a gente gera lucro e faz o Brasil crescer. Eu abracei essa causa porque eu quero que outras trabalhadoras se reconheçam e sejam valorizadas”, pontua.
Sua delegação saiu de Nova Iguaçu (RJ) para participar da marcha porque 95% das trabalhadoras domésticas são mulheres, em sua maioria negras, pobres e periféricas. “Viemos para comemorar e também para lutar, botar na rua as nossas reivindicações, brigar pelo nosso espaço na política, na medicina, no comando do país”.

PT na Marcha – A Fundação Perseu Abramo e a Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT ergueram a Tenda das Beneditas na concentração, espaço voltado ao acolhimento das mulheres petistas que participaram da Marcha. Passaram pela tenda as vereadoras Tainá de Paula (Rio de Janeiro), Paolla Miguel (Campinas-SP), Karla Coser (Vitória-ES), Marta Rodrigues (Salvador-BA), Edna Miss Preta (Pinhais-PR) e as deputadas estaduais Lucinha do MST (BA), Laura Sito (RS) e Divaneide Basílio (RN).

A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, marchou ao lado de sua mãe, Marinete, da sobrinha Luyara, que representou o Instituto Marielle Franco, e da deputada federal Benedita da Silva. A ministra discursou em um dos carros de som e disse que a participação do ministério simboliza uma ponte entre o movimento social e o Estado. “Permaneceremos avançando, marchando por bem-viver e por reparação. Por todas as mães que perderam seus filhos e por todas aquelas que vieram antes de nós. Seguimos juntas em marcha, na positividade, hoje e sempre.”

A deputada federal Dandara Tonantzin (PT-MG) disse que a Marcha traz o bem-viver e a reparação como temas centrais para que o racismo não organize mais relações de poder no mundo. Ela afirma que infelizmente as mulheres negras são minoria nos espaços de poder, embora sejam mais de 30% da população. “Hoje 80% das mulheres negras do nosso país estão endividadas, 63% dos lares chefiados por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. Ou seja, a desigualdade do nosso país tem cor, tem gênero, tem endereço certo. E. para combater essa opressão, nós precisamos de ação afirmativa, emprego, renda, reparação histórica e financeira. Lutamos para que terra, trabalho, moradia, alimentação saudável, saúde, educação, acesso a cultura, esporte, lazer, busão 0800, saneamento básico de qualidade e receber cuidados sejam realmente direitos para as mulheres negras”.

Para a deputada federal licenciada Reginete Bispo (PT-RS) a importância da segunda Marcha de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver é que ela vem demonstrando o contínuo da luta das mulheres negras desde o momento que assumem o protagonismo na luta feminista e antirracista no país. “Se você for ver a Marcha Zubi em 1995, a presença das mulheres era maciça. Em 2015, fizemos a primeira marcha liderada por mulheres, e ela foi potente, mobilizadora, primeiro movimento de rua que enfrentou autoritarismo da extrema direita aqui em Brasília, acampado em frente o Palácio do Planalto. E foram as mulheres negras que enfrentaram isso. Nossa , quando acontece, dá um salto de qualidade na mobilização política e no debate no campo da esquerda”.

Nesse momento pós-golpe e de retomada com o governo Lula, a Marcha das Mulheres Negras é uma demarcação social das várias demandas do direito de existir, na luta por proteção das pessoas negras e de combate ao racismo. A secretária nacional LGBT do PT, Janaína Oliveira, acredita que essa luta não seja fácil porque há uma estrutura, uma máquina que funciona o tempo todo utilizando a institucionalidade como uma forma de opressão aos corpos negros. E as mulheres negras nunca tiveram medo de estar frente a frente, de proteger vidas que precisam ser cuidadas.

“A gente precisa ter um processo político do país que dê um basta definitivo. Não precisamos só de soluções e de punições, mas sim que o país modifique a sua forma de pensar, de se organizar, de se entender e de respeitar essa diversidade de cores. E acreditar que as mudanças sociais que a gente busca estão muito mais relacionadas com a nossa existência, com o jeito de nós sermos, com a nossa forma de expressão, não só o nosso cabelo. Tem algo que para mim, nessa marcha, tem uma grande simbologia, que é ser mulher, negra, lésbica e amazônida”, pontua.