Sandra Mariano: “Não podemos virar as costas para aqueles que já estavam aqui e os que construíram o Brasi”
Aos 74 anos, Sandra Mariano revisita cinco décadas de militância no movimento negro e na luta das mulheres negras, relembra marcos como a Marcha Zumbi e avalia os desafios atuais por reparação, bem viver e presença nos espaços de poder

Militante histórica da CUT e do movimento negro, Sandra recorda a construção da Marcha Zumbi dos Palmares e seus impactos nas políticas de igualdade racial
A técnica de enfermagem especializada em prevenção de câncer ginecológico pela UFRJ Sandra Mariano saiu do Rio na década de 1970 e chegou à capital paulista para ajudar a implantar um serviço na Santa Casa de São Paulo.
Aos 74 anos e mais de quatro décadas depois de ter iniciado sua militância na CUT, no PT e no movimento negro, Sandra segue firme na defesa do resgate da verdadeira história brasileira.
“O Brasil não foi descoberto, um vez que os indígenas já estavam aqui, e, junto com os negros, construíram esse país. Ainda é uma luta contar a real história do povo brasileiro e a da África. Mas não podemos virar as costas para aqueles que vieram antes de nós”, diz.
Sandra participou da construção da Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, primeira grande manifestação realizada em Brasília pelo movimento negro brasileiro para reivindicar ações afirmativas, esteve na primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras, em 2015, e hoje integra a coordenação da segunda Marcha Nacional das Mulheres Negras, que espera reunir 300 de mulheres em Brasília no dia 25 de novembro.
Nesta entrevista, ela relembra a história das duas grandes mobilizações que perpassam a história do movimento negro, suas conquistas e os desafios do combate ao racismo que ainda persiste.
Você participou da construção da primeira Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, e também da primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, em 2015. Como foi essa organização e quais os resultados dessas duas mobilizações?
Na época da Marcha Zumbi, o presidente da CUT era o Vicentinho. E dentro da Secretaria de Combate ao Racismo da CUT, tanto a nacional como a estadual, começamos a discutir que era o momento de conquistar visibilidade para nossa luta. Nós queríamos principalmente mostrar para o governo brasileiro, para o Estado, que o Brasil é um país racista e que para superar isso era necessário haver ações afirmativas. Não foi uma coisa fácil naquela época, pensar como iríamos para Brasília, como organizar o movimento negro dentro da luta sindical explicando a importância de estarmos em Brasília. Houve uma grande discussão que envolveu outras centrais para dialogar com o governo federal a nossa reivindicação de política de combate ao racismo, uma verdadeira revolução naquele momento. Como resultado desse primeiro movimento podemos citar a discussão do Estatuto da Igualdade Racial, de um Plano Nacional de Saúde Integral da População Negra. Entregamos um documento para o então presidente Fernando Henrique Cardoso. De lá para cá, conseguimos avanços na saúde, na educação, e, nesse caminhar, vieram as leis 10.639/2003 (que institui a obrigatoriedade do ensino da história da África e afro-brasileira nas escolas) e 11.645/2008 (que ampliou a obrigatoriedade para incluir também a história e cultura indígena). Conquistamos o Estatuto da Igualdade Racial e a Política Nacional de Saúde da População Negra, com a qual me envolvi muito. Hoje estou na organização da Marcha Nacional das Mulheres Negras, que será no dia 25 de novembro.
Qual o propósito da Segunda Marcha Nacional das Mulheres Negras no próximo dia 25?
Neste mês da consciência negra vamos ter a segunda marcha na qual esperamos reunir em torno de trezentas mil mulheres negras, inclusive com organizações internacionais representadas. É uma luta que nos traz esperança de mudar o Brasil e nós temos um presidente que nos ajuda. Foi na posse do presidente Lula, em Brasília, que nos reunimos para pensar a segunda marcha, porque avaliamos que esse vácuo nos trouxe um atraso. É importante nesse momento lutar pela plenitude das políticas de ações afirmativas, já que o Estado nos deve. Essa marcha tem o nome de Reparação e Bem-Viver. O bem-viver nós já havíamos trazido em 2015, veio da política indígena, que nós incorporamos porque traz dentro de si as políticas sociais, a saúde, a educação, a participação dentro dos espaços. E agora queremos discutir como é que o Estado brasileiro vai nos reparar pela escravidão. A abolição segue inacabada quando você não tem realmente uma efetivação das políticas. Veja bem, até todas as universidades chegarem a implementar as cotas raciais foi uma luta muito grande, porque questionavam. “Mas para que as cotas, se tem negros dentro da escola, dentro da universidade?” E nós dizíamos que não era suficiente, e ainda não é suficiente. É aquilo que o Lula fala, nós queremos que a filha ou o filho da empregada esteja dentro da mesma universidade onde está o filho da patroa. Queremos que negros e negras médicos, engenheiros, doutores, que ascendam, que sejam docentes. Essa é a reparação que a gente espera. Então, nós estamos até hoje nessa luta. Você viu o que aconteceu com uma docente negra que passou no concurso e a universidade cancelou o concurso? Na implantação da lei 10.639, os professores tiveram uma dificuldade muito grande porque diziam que em vez de nós combatermos o racismo estávamos fazendo ao contrário, e não era. Hoje já existe uma alteração na literatura, mas não havia livros didáticos nas escolas contando a real história dos negros e negras nesse país. O Brasil não foi descoberto, um vez que os indígenas já estavam aqui, e junto com os negros construíram esse Brasil. Ainda é uma luta contar a real história do povo brasileiro e a da África, porque nós não podemos virar as costas para aqueles que vieram antes de nós e aqueles que construíram o Brasil. Um dos primeiros exercícios quando eu fiz minha formação política é o teste do pescoço. Em uma roda, olhar ao seu redor e ver quem são as pessoas que estão ali sentadas. Quando nos virávamos, naquele grupo éramos os únicos negros, contávamos um ou outro. E quando você traz as leis para colocar no currículo escolar a história do Brasil o objetivo é que, desde criança, as pessoas entendam de onde elas vieram. E desde criança você se torna um ser humano solidário, que não vai praticar o racismo, que vai entender que naquele convívio escolar você tem pessoas diversas.
Foi na marcha de 1995 que começou a ser gestado o projeto da futura Seppir, primeiro órgão do governo federal criado para tratar das políticas públicas de igualdade racial no Brasil? A Marcha Zumbi foi importante para o surgimento do ministério no primeiro governo Lula?
Creio que sim, pois nós discutíamos que para implementarmos as políticas de ações afirmativas era necessário um órgão dentro do governo que propiciasse essa discussão e elaboração das políticas e programas. Com a eleição do presidente Lula, houve a construção das conferências dos movimentos sociais. E aí eu me lembro que, antes mesmo da conferência, tivemos uma atividade em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, com um embate intenso das organizações do movimento negro para efetivar a secretaria, que foi criada com status de ministério. Dentro da Seppir nós começamos a desenvolver as políticas de ações afirmativas e só agora, no terceiro mandato do presidente Lula, conseguimos o primeiro Ministério da Igualdade Racial. É muito tempo de luta, mas nós não desistimos nunca, porque fazer a discussão com a sociedade, mesmo dentro dos governos, da importância de nós termos uma política que traga toda uma movimentação na educação, na cultura, nos direitos humanos, para nós, foi um avanço muito grande.
Você começou sua militância no movimento feminista. Quando foi que percebeu a necessidade de organizar uma luta específica das mulheres negras?
Dentro da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conem), havia uma companheira, Nilma Bentes, que defendia que nós tínhamos que lutar pelo protagonismo. Numa organização mista, como também são a Unegro e o MNU, estamos junto com companheiros, mas a nossa prioridade era justamente a luta das mulheres negras nos espaços de poder. Tanto é que quando criamos a Seppir conseguimos ter no governo do presidente Lula outras ministras negras. Quando Nilma colocou isso dentro da Conen ela foi percorrendo esse espaço. E na primeira Conferência Nacional de Políticas para a Igualdade Racial as organizações de mulheres foram chamadas a dialogar na construção da primeira marcha das mulheres negras. Criamos um comitê impulsor nacional e os estados e municípios tiveram também seus comitês que passaram a dialogar com as mulheres negras sobre a importância da marcha, que foi nomeada Marcha Contra o Racismo, a Violência e a Defesa do Bem Viver. Avaliamos que era o momento de ir a Brasília e esse mote. Fizemos um documento para entregar para a presidenta Dilma, com todas as nossas reivindicações, mostrando a necessidade de protagonismo das mulheres negras na sociedade brasileira.
Passados dez anos dessa primeira marcha e já acumulando algumas conquistas, as mulheres negras seguem sub-representadas no parlamento e não conseguiram ainda uma estratégia para resolver a política de cuidados, o que complica muito a sua ascensão profissional e a presença em espaços de poder e liderança. O que poderia ser feito para mudar de fato essa situação?
Lélia Gonzalez, falecida em 1994, na época há décadas já chamava a atenção sobre a ausência das mulheres nas organizações mistas, no partido, nos sindicatos. Um avanço que nós tivemos foi a questão da paridade. Porque toda vez que realizávamos uma atividade, as mulheres não estavam na mesa, eram sempre homens e homens brancos. Fomos galgando esses espaços, o que foi um avanço tremendo, porque nesse momento nós também reivindicamos a participação das mulheres negras nos espaços da direção, nas secretarias de Combate ao Racismo, da Juventude, passamos a ocupá-los com qualidade. No começo era aquele negócio, colocava uma mulher na mesa só por colocar e ela ficava ali parada. E aí lutamos para ter voz, porque conseguimos discutir desde a educação até a questão da saúde, do mercado de trabalho, da economia. Isso nos trouxe força para fazer esse debate, que nunca foi fácil, mesmo estando entre companheiros. Depois que assumi a presidência do meu diretório, observei que nós fomos alcançando alguns progressos e sendo respeitadas.
Nas próximas eleições, você acredita que vamos eleger mais mulheres negras? O que precisamos fazer para aumentar essa presença nos espaços de poder no Brasil?
É um desafio bem grande. Durante certo tempo, eu trabalhei na coordenação as campanhas de vários companheiros e chegou um momento que eu entendi que nós deveríamos eleger mulheres negras. Comecei a coordenar algumas campanhas, mas o que eu via nesse processo era uma dificuldade muito grande de trabalharmos dentro do partido a importância de ter parlamentares, sejam homens, ou mulheres, que travam a nossa política. Porque logicamente que temos parlamentares não negros que compreendem e efetivam a nossa política, mas não é a mesma coisa. Para isso, hoje eu estou na equipe do Nova Primavera, da Fundação Perseu Abramo e da Escola Nacional de Formação, e falo muito nesse grupo sobre a importância de nós dialogarmos sobre a importância de elegermos mulheres negras. Porque uma coisa é a intenção de colocar candidatas, outra são as dificuldades e as barreiras que nós temos que quebrar para elegê-las. E eu falo o seguinte: ainda hei de ver mais mulheres petistas ou da esquerda no parlamento discutindo as nossas políticas feministas e a questão racial. Porque ambas trazem no bojo outras políticas de justiça e igualdade.



