Do coro evangélico em Santo André aos palcos da Europa, Bruno de Sá faz da voz um instrumento de resistência, talento e afirmação política

Bruno de Sá: o sopranista brasileiro que faz da arte um ato político no mundo
Foto: Divulgação

Os recursos digitais de imagem incorporados aos grandes espetáculos operísticos são uma tendência na temporada europeia, em especial na Irlanda, onde o 74º Festival de Ópera de Wexford, realizado na cidade de Wexford, Irlanda, celebra mitos e lendas. O destaque da temporada ficou para um brasileiro de Santo André (SP): Bruno de Sá.

Atuando como Aquiles, na Ópera Deidamia, Bruno de Sá pegou as tradições “pelo calcanhar”. O regente George Petrou, um dos maestros mais requisitados de sua geração e especialista em música barroca, foi quem o convidou diretamente para participar do festival. 

Após a temporada na Ilha Esmeralda, a agenda de 2025/2026 do sopranista está tomada por concertos e óperas pelos quatro cantos do Velho Continente.

O Festival de Wexford, tradicional evento que atrai amantes da ópera de toda a Europa, apresenta nesta edição três produções principais, sendo Deidamia — executada pela primeira vez em 1741 — a obra barroca escolhida para representar Handel

Bruno de Sá: o sopranista brasileiro que faz da arte um ato político no mundo
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Com um cenário inusitado que mistura elementos cênicos das óperas clássicas com imagens criadas por inteligência artificial e cortinas simples que geram um efeito onírico, os solistas entregam um espetáculo dinâmico e envolvente com toques de modernidade.

No papel de Aquiles, Bruno de Sá não é apenas mais um cantor lírico: é um sopranista que transforma sua voz em instrumento de resistência política e quebra de paradigmas no conservador mundo da ópera.

Aquiles travestido: a complexidade do personagem

Bruno de Sá: o sopranista brasileiro que faz da arte um ato político no mundo
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Bruno revela as nuances do personagem que interpreta: “Aquiles tem muitas camadas. Ele se esconde em uma ilha travestido de mulher para não ir à Guerra de Troia e acaba se apaixonando por Deidamia.” 

O sopranista explica que o desafio vai além da técnica vocal e envolve três níveis diferentes de interpretação: “Se ele está sozinho em cena, é um homem; se está com alguém que sabe que ele é homem, é um homem vestido de mulher; mas, se está com quem não sabe, tem que ser uma mulher.”

Essa complexidade ressoa com a própria trajetória do cantor, que desde cedo lidou com questões de identidade através da voz. “Eu gosto de brincar com essa quase androginia”, confessa Bruno, referindo-se à prática barroca dos castrati, que “despertavam paixão tanto em homens quanto em mulheres”.

Da igreja evangélica aos palcos europeus

A trajetória de Bruno de Sá é marcada por superações. Nascido em Santo André, SP, em família modesta, ele conta que a primeira ópera a que assistiu foi aos 23 anos, no mesmo ano em que sua carreira como cantor começou. Formado em Educação Musical pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e bacharel em Canto Lírico pela Universidade de São Paulo (USP), Bruno é “produto da universidade pública”, como enfatiza com orgulho.

Curiosamente, foi no coro de uma igreja evangélica que ele encontrou acolhimento para sua voz singular. “Na minha experiência musical, foi completamente o oposto do que se imagina de igrejas evangélicas. Fui muito acolhido, virei referência, liderando o louvor”, relata.

A luta pelo termo ‘sopranista’

Uma das batalhas mais significativas de sua carreira tem sido a definição de sua classificação vocal. Ele explica a diferença fundamental: “O contratenor é um barítono ou tenor que desenvolve a voz de peito para acessar o registro agudo. Já o sopranista é naturalmente alguém que não passou pela transição vocal completa ou tem predisposição genética.”

Essa distinção, que pode parecer técnica para leigos, tem implicações profundas no repertório e nas possibilidades artísticas. “Hoje em dia, eu faço questão de reforçar o termo”, afirma Bruno, que já corrigiu críticos que o chamaram erroneamente de contratenor. “Se eu não criar minha própria marca, quem vai?”

Sucesso internacional e responsabilidade com o Brasil

A carreira internacional de Bruno de Sá deslanchou após sua mudança para a Europa, em 2018. Desde então, ele se apresentou em casas de ópera prestigiadas como a Komische Oper Berlin, o Theater Basel e participou de festivais como o Bayreuth Baroque. 

Seu contrato exclusivo com a Warner Classics resultou nos álbuns Roma Travestita (2022) e Mille Affetti (2024), que consolidaram sua reputação. O quarto álbum já está gravado e será lançado em breve. Em 2020, o jornal francês Le Monde referiu-se a ele como “uma nova estrela no firmamento”, pela atuação no Bayreuth Baroque Opera Festival, o tradicional festival wagneriano.

No dia 14 de julho de 2025, aos pés da Torre Eiffel, em Paris — no Ano do Brasil na França —, ele foi o escolhido para se apresentar no tradicional concerto, interpretando as Bachianas Brasileiras nº 5, de Heitor Villa-Lobos. Para adequar a peça à grandiosidade do evento, que contou com plateia massiva e transmissão, Bruno propôs um novo arranjo orquestral integral, encomendado à arranjadora brasileira Juliana Ripke, com quem já colaborara antes.

Bruno de Sá: o sopranista brasileiro que faz da arte um ato político no mundo
Foto: Reprodução Facebook

Com apenas um dia de ensaio com a Orquestra Nacional da França, o que aumentou a tensão, Bruno temia que a “brasilidade” se perdesse na execução — preocupação que se dissipou graças às soluções musicais do maestro e à resposta da orquestra. 

Curiosamente, o maior nervosismo não veio das Bachianas, mas dos 30 segundos em destaque de Dulcissime, de Carmina Burana, logo depois: um trecho curto, de câmera fechada, em que qualquer deslize seria fatal. “Deu muito certo”, lembra.

Apesar do sucesso no exterior, Bruno mantém um vínculo forte com o Brasil. “Não tenho planos de voltar pelos próximos 20 anos”, admite, mas sente a “responsabilidade de, pelo menos uma vez ao ano, fazer um concerto no Brasil para que pessoas que não têm condição de vir para a Europa também possam escutar um concerto de altíssimo nível.”

Arte como ato político

Refletindo sobre o momento político do Brasil, Bruno não hesita em conectar arte e política. “Um homem cantar agudo, fazer personagens femininos, vindo de escola pública, de família modesta, fazendo uma vida na Europa, é um ato político. É um ato de resistência.”

Parafraseando Paulo Gustavo, explica que “assim como o riso é um ato de resistência, cantar também é” e defende a diversidade cultural. “Não sou da linha purista. Você tem que ter a opção de escolher. Sou muito contra os fechamentos das possibilidades, as caixinhas”, pondera.

O sonho pela essência da arte

Olhando para o futuro, Bruno de Sá expressa um desejo que vai além de papéis específicos ou casas de ópera famosas: “Meu sonho é um lugar onde as pessoas são selecionadas para cantar a partir da musicalidade e do poder artístico que aquele artista é capaz de transmitir, não pela quantidade de seguidores ou aparência física.”

Ele critica a transformação do qualitativo em quantitativo na arte: “As mídias digitais transformam o que é qualitativo em quantitativo. Precisamos manter a essência no quântico, na experiência que aquilo vai me trazer.”

O momento político na região preocupa — cortes de verba em teatros europeus para compra de armas —, mas, apesar das tensões e conflitos, ele mantém uma postura de esperança e otimismo: “Quero trazer à memória aquilo que me dá esperança. Se essa esperança for pela música, pela arte, pela amizade, isso já vai ser válido.”

Na Irlanda, o sopranista brasileiro continua sua trajetória ascendente, provando que a arte pode ser tanto bela quanto transformadora — e que uma voz singular pode ecoar muito além dos palcos. O diretor executivo do festival, Loughlin Deegan, rendeu-se aos encantos de Bruno, declarando à Focus Brasil que ele “é um superstar e nós o amamos”. Os brasileiros na Irlanda e no mundo concordam — e agradecem.