“Queremos uma polícia voltada à inteligência, não ao confronto”, diz secretário de Justiça da Bahia
Em entrevista à Focus Brasil, Felipe Freitas defende uma segurança pública baseada na inteligência, no respeito à vida e sem letalidade como política de Estado

Foto: Cleomário Alves/SJDHBA
A Bahia quer redefinir o debate sobre segurança pública no país. Para o secretário de Justiça e Direitos Humanos, Felipe Freitas, é preciso romper com a ideia de que a violência policial é um preço inevitável no combate ao crime.
“Não é concebível tratar a letalidade como um efeito colateral necessário ao enfrentamento do crime organizado. É preciso recusar essa lógica e construir outro caminho, que valorize o trabalho policial sem abrir mão do respeito à vida”, afirma.
Freitas defende que governos de esquerda assumam uma posição clara diante do tema e apresentem modelos de segurança pautados pela inteligência, pela formação e pela defesa dos direitos humanos.
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“Todos enfrentamos o mesmo problema com as facções e o crime organizado. O que deve ser diferente é a maneira com que os governos lidam com ele. O campo democrático precisa assumir publicamente que quer outro tipo de segurança pública”, sustenta o secretário.
A declaração ocorre no contexto da elaboração do plano de redução da letalidade policial na Bahia, que prevê medidas de formação, revisão de protocolos, uso de câmeras corporais e acompanhamento psicológico dos agentes.
O que motivou o governo da Bahia a desenvolver o plano para conter as mortes decorrentes de intervenção policial?
O Brasil viu, nos últimos anos, um incremento grande do número de mortes pela polícia. E a Bahia, infelizmente, é um dos estados em que esse fenômeno coloca o desafio de controlar, reduzir e enfrentar o problema. Esse tema é muito importante para as políticas de segurança pública em todo o país, pois os altos índices revelam fortes indícios de que haja um manejo pouco técnico e o uso excessivo da força policial. E mostram a necessidade de que aprimoremos as orientações e as diretrizes técnicas, para que ela possa ser usada com a intensidade necessária para enfrentar o crime sem provocar novas mortes.
Quais são as principais medidas desse plano e como o governo espera implementá-las?
Desde o segundo ano da gestão do governador Jerônimo Rodrigues, a primeira grande estratégia foi a adoção das câmeras corporais, uma medida reconhecidamente positiva para ampliar a transparência da ação policial, dar mais consistência às provas colocadas nos processos judiciais que são obtidas pela polícia em sua atuação e também para a proteção dos próprios profissionais de segurança pública. Portanto, há muitas razões pelas quais as câmeras corporais são um instrumento importante no aprimoramento e no aperfeiçoamento da atuação.
Além disso, produzimos mudanças importantes nas normativas internas da polícia militar, como, por exemplo, a Portaria 70, editada neste ano, que prevê a obrigatoriedade de que todo policial que se envolva em ocorrência com morte seja afastado de suas atividades, para um processo de acompanhamento e avaliação da condição psicológica.
Não é concebível que um profissional de segurança pública se envolva em uma ocorrência tão complexa sem passar por isso, independentemente de essa morte ter ocorrido ou não dentro das regras legais. Não importa se a operação foi no exercício da legítima defesa, é sempre um evento traumático para um profissional estar envolvido em uma operação que resulta em morte.
Deve haver uma preocupação com a saúde mental dessas pessoas, o que representa um avanço importante ocorrido no último período. Ou seja, a qualidade de vida do policial é muito importante e determinante para o resultado final da ação que ele desenvolve. Isso ensejou uma ação mais ampla, que é o plano de redução da letalidade, com três frentes de atuação. Uma voltada à formação, que busca oferecer aos policiais o que há de mais moderno e atual em termos de preparo para o uso qualificado da força. Uma segunda frente, normativa, voltada a novos protocolos e procedimentos, ou seja, quais são as regras que orientam o trabalho da polícia, sobretudo na ação de abordagem e planejamento de operação.
Temos uma série de medidas que ajustam a ação do Estado para alinhá-la às diretrizes que o presidente Lula apresentou em dezembro do ano passado, com um decreto sobre regulamentação do uso da força, para que a gente possa ter regras que favoreçam a polícia voltada à inteligência mais do que ao confronto. E uma terceira frente é a da fiscalização e correção, ou seja, o fortalecimento das corregedorias. Há medidas relativas ao uso de câmeras corporais, que ampliam a transparência sobre a atividade policial.
E também o nosso sistema de bonificação por desempenho, que hoje, na Bahia, premia os policiais com incentivo financeiro nos lugares onde há redução dos homicídios e crimes violentos, a partir de agora incorpora também a redução da letalidade policial. Queremos bonificar e reconhecer o policial que, em sua atuação, conseguir reduzir os índices criminais sem gerar mais violência. É o contrário do que o governo do Rio de Janeiro pretendeu fazer com a gratificação faroeste.
Como o governo pretende estimular o uso das câmeras pelos policiais?
As avaliações mostraram que são necessários aprimoramentos importantes nesse sentido. Houve uma mudança na legislação para responsabilizar diretamente cada comandante operacional regional sobre a utilização das câmeras, ou seja, ele terá a função direta e expressa dentro da sua ordem do dia, do seu procedimento cotidiano, sobre a fiscalização da utilização das câmeras.
Desde a recomendação do Ministério Público sobre o assunto, três meses atrás, até agora, já tivemos uma elevação bastante significativa do número de câmeras utilizadas e número de horas gravadas sob a modalidade de gravação intencional. Então, efetivamente, aquilo que foi apontado pelo Ministério Público surtiu efeito.
Um segundo ponto importante para reverter esse quadro diz respeito à formação. A pesquisa realizada pelo MP identificou que os policiais começaram a utilizar as câmeras sem necessariamente terem sido capacitados sobre o uso, sobre a redução de mortes violentas decorrentes de intervenção policial e a adequação do uso da força.
Há uma ação direcionada para as polícias que estão fazendo uso de câmeras corporais para que recebam capacitação, e acreditamos que isso terá um efeito de reversão na baixa utilização.
Por fim, houve um remanejamento da distribuição das câmeras, porque a pouca utilização tinha a ver com o fato de que não necessariamente havia câmeras nas melhores lotações, aquelas que têm mais atividade operacional. Redistribuímos e começamos a reverter a subutilização das que ficavam nas unidades onde não havia tantos policiais em atividade.
Como é o governo pretende monitorar a implantação desse plano e acompanhar os resultados?
Existem duas instâncias: um comitê específico de acompanhamento composto por todas as áreas da Secretaria de Segurança Pública, criado e publicado no Diário Oficial junto com o plano; e uma segunda instância, que é a Câmara de Articulação social do Bahia Pela Paz, nosso programa de prevenção à violência, que é presidido pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, mas conta com a participação do Ministério Público, da defensoria e de organizações da sociedade civil, conselhos de direitos humanos, de segurança pública, de igualdade racial.
Participam atores como o Ministério Público, que tem a função constitucional do controle da atividade policial, e as organizações da sociedade civil, que são o motor efetivo dessa agenda de controle da letalidade e já estiveram presentes na elaboração do plano.
A ideia é que, sobretudo agora, a partir dessa primeira iniciativa, posta em debate público pelo governo, possamos ampliar a escuta social. Para que ao longo do processo de implementação seja possível fazer correções, ajustes e incorporações de novos conteúdos que venham a ser apresentados.
O senhor acredita que o tema da segurança pública vai mobilizar os partidos de esquerda com a proximidade das eleições?
Ontem, eu tive uma reunião muito importante com a Executiva Estadual do PT, falando com a direção partidária sobre como eu penso que os partidos políticos de esquerda precisam tomar lugar nesse debate, dentro dos governos do campo democrático.
Precisamos distinguir quais são os elementos de uma política de segurança pública em um governo de esquerda, democrático, em relação aos governos de direita, porque não é possível a gente imaginar que a resposta a esse problema tenha de ser igual.
Eu não tenho dúvida de que tanto um governo de esquerda quanto um de direita têm pontos em comum, no sentido de que todos nós, independentemente do espectro ideológico que governa os estados, vivemos o mesmo problema com as facções, com o crime organizado e, em certo sentido, essa é uma agenda comum da segurança pública. Por outro lado, é preciso entender também o que nos distingue.
O que é que caracteriza um projeto de esquerda para lidar com o tema da letalidade policial? Infelizmente, esse problema está disseminado em todos os estados da federação. Mas o que deve ser diferente é a maneira com a qual os governos lidam com ele, e os de esquerda precisam, a partir da pressão dos partidos de esquerda, dentro das coalizões, assumir uma postura pública de recusar a letalidade policial como um efeito colateral necessário para o enfrentamento do crime organizado.



