Com entrevistas em 25 estados, o levantamento trouxe um panorama sobre principais demandas dentro e fora dos lares brasileiros 

Sobrecarga doméstica afeta vida das mulheres, aponta pesquisa da FPA em parceria com o Sesc 
Desigualdade persiste: mulheres ganham, em média, 40% menos que os homens e enfrentam maior informalidade no mercado de trabalho Foto: Tânia Rêgo/Agencia Brasil

Apesar da diferença de renda, raça e regionalidade, é possível olhar para realidade da mulher brasileira atual a partir de uma fotografia: sobrecarregada nas tarefas domésticas, criação dos filhos e cuidado dos idosos, ganhando salários mais baixos do que os homens, com maior presença no mercado informal, embora com mais anos de escolaridade. 

A fotografia, revelada na terceira edição da pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” , recém-divulgada pela Fundação Perseu Abramo, faz parte de um filme, onde aparecem ainda a dificuldade de participação e permanência em organizações políticas, além dos altos índices de violência. 

A partir deste cenário, o levantamento, em parceria com o Sesc, mostra que houve uma queda na parcela de mulheres que acreditam que a situação é melhor em relação ao passado — somente 54% responderam de maneira otimista. 

Nas outras duas edições da pesquisa, 65% tinham a percepção de que a vida estava melhor do que no passado, em 2001, enquanto 74% acreditavam na melhoria das condições, em 2010.

Para o aprofundamento nas questões que permeiam a vida das mulheres, foram realizadas entrevistas com 2.440 mulheres e 1.221 homens, em 25 estados, tanto na zona urbana, quanto rural, com uso de metodologias quantitativas e qualitativas. Foi levada em consideração a pluralidade de raça, escolaridade, renda familiar e orientação sexual e de gênero de mulheres na faixa etária a partir dos 15 anos. 

Desigualdade dentro de casa 

Sofia Toledo, pesquisadora do NOPPE, o Núcleo de Opinião Pública, Pesquisas e Estudos, área da FPA que produziu a pesquisa, destaca que os dados, em temas relacionados ao machismo, revelam as contradições presentes na sociedade. 

“Para 91% das mulheres e 88% dos homens, os trabalhos domésticos devem, sim, ser divididos igualmente, porém, quando apresentamos uma outra pergunta,‘se as meninas devem ajudar mais nas tarefas domésticas’, 29% das mulheres e 44% dos homens concordam com a afirmação”, comenta a pesquisadora. 

“Ainda que exista uma perspectiva de igualdade, quando analisamos o que é passado na criação das crianças, vemos que esse valor do cuidado doméstico ainda tem como alvo maior as meninas”, completa. 

A tradução dessa situação aparece na pesquisa, já que a mulher é responsável principal pelas tarefas domésticas em 93% dos lares. Outros dados relacionados ao cuidado reforçam a dinâmica da sobrecarga feminina: 50% criam os filhos sozinhas, sendo que 66% das entrevistadas responderam ser as principais responsáveis pelos cuidados com as crianças quando elas não estão na escola, enquanto 23% deixam aos cuidados da mãe ou da sogra.

“A rede de apoio das mulheres é majoritariamente composta por outras mulheres, quando não são da família são mulheres próximas. No caso de crianças, apenas em 11% dos casos há a presença do genitor nos cuidados. A predominância das mulheres também acontece na situação dos idosos ou pessoas com alguma doença. Então, percebemos que as mulheres, quando elas precisam de ajuda, elas recorrem a outras mulheres”, afirma Sofia Toledo. 

A cientista social e pesquisadora da Fundação Perseu Abramo conclui: “observamos nas entrevistas que as mulheres que estão em idade de aposentadoria seguem cada vez mais no mercado informal de trabalho, mesmo que ainda sejam responsáveis pelos cuidados das crianças e dos idosos, então, parece que não há um momento em que essas mulheres são libertadas de ter que cuidar de todo mundo.”

As mulheres mais jovens, lembra a representante do NOPPE, também estão imersas nesse ciclo, que dificilmente inclui homens, de acordo com o levantamento, e que por conta disso também chegam em desvantagem no mercado de trabalho e na participação política. 

“Acho muito emblemático que na pergunta sobre lazer, sobre o que elas fazem no tempo livre delas, mais de 80% têm seus momentos de lazer dentro de casa. Em primeiro lugar, respondem ‘assistir televisão’, e em segundo lugar aparece ‘dormir ou descansar, enquanto a socialização masculina costuma ser na rua, de forma coletiva”, opina Sofia Toledo. 

Maternidade 

A centralidade da maternidade perdeu relevância ao longo do tempo. Ser mãe, que foi listado em todas as edições da pesquisa como um ponto positivo da condição de ser mulher, registrou uma queda significativa. Em 2010, 57% das mulheres colocaram os filhos como o principal ponto positivo de suas condições; em 2023, o índice caiu para 43%. 

“Esse resultado tem a ver diretamente com as dificuldades de criar uma criança sozinha, nem sempre ter apoio de familiares ou parceiros, nem mesmo a pensão. E, principalmente, as dificuldades de restabelecer a vida anterior na carreira, isso  acaba por afastar as mulheres do desejo de maternidade. As expectativas das mulheres mudaram, não é só simplesmente a família, há a preocupação com a vida pessoal, com a carreira”, diz Vilma Bokany, que coordenou a pesquisa. 

Apesar de campanhas midiáticas e mecanismos judiciais, em 2023, verificou-se uma redução no índice de mulheres que recebem pensão dos homens para dividir o custo de vida dos filhos. Apenas 46% das mães afirmaram contar com o auxílio. Em 2010, o número era 50%, e em 2001, 37%. 

Mercado de Trabalho

As condições de sobrecarga doméstica também contribuem para empurrar as mulheres para a informalidade. Cerca de 46% do público feminino que trabalha está inserido no mercado formal contra 58% no informal. 

A desigualdade salarial segue como uma realidade. De acordo com a pesquisa, a renda média das mulheres é 40% menor que a dos homens. Elas aparecem como maioria nas camadas mais baixas. A proporção de mulheres que ganham abaixo de um salário mínimo é de 44%, frente a 21% de homens. Sem contar que 16% das mulheres responderam não ter nenhuma renda, um recorte social que abarca, na maior parte das vezes, mulheres negras, de regiões fora do Sudeste.  

Nas camadas mais altas, a diferença na renda é ainda maior. Apenas 4% das mulheres têm renda superior a três salários mínimos, enquanto o percentual masculino é de 18%. Acima dos cinco salários mínimos, somente 2% de mulheres e 8% dos homens. 

Vilma Bokany, socióloga que atuou nas três edições do trabalho na Fundação Perseu Abramo, comenta que “existe uma dificuldade ligada ao fato de que, como elas estão ocupadas com os afazeres domésticos e a criação dos filhos, nem sempre conseguem cumprir uma jornada de trabalho regular. Então, a informalidade acaba como um caminho. Isso não é, necessariamente, porque elas queiram, mas porque o mercado não absorve e porque as tarefas na vida doméstica não permitem essa inserção maior.”

Além disso, nas entrevistas qualitativas, de acordo com a pesquisadora, foram relatadas falta de oportunidade de crescimento profissional devido ao machismo. “Elas comentavam que, por exemplo, os homens não aceitam ser chefiados por mulheres, debocham quando tem uma mulher na chefia, não respeitam, sem contar que, muitas vezes, esse cargo nem mesmo é oferecido.”, pontua.  

 “A gente conversava com elas sobre isso, perguntávamos ‘Você já foi discriminada no trabalho? Já sofreu algum tipo de assédio? já gritaram com você? Já deixaram de lado suas opiniões enquanto você falava? E isso é uma constante na vida das mulheres, mesmo as mais escolarizadas, que estão numa faixa de renda boa, em trabalhos relativamente qualificados, elas também sentem esse peso”, explica Bokany. A abordagem completa do levantamento “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” está dividida em seis eixos: Imagem das mulheres; Corpo, sexualidade e saúde; Violência contra as mulheres; Proteção social e política de cuidados; Trabalho remunerado e não remunerado e Cultura política e participação.