José Dirceu: “O país vai se defrontar com a sua própria história”
Em entrevista, José Dirceu aponta o encontro nacional do PT como marco histórico, alerta para ameaças à soberania e à democracia e defende união ampla e reformas estruturais

No início de agosto, o Partido dos Trabalhadores (PT) realizou o 17º Encontro Nacional da legenda. Para Zé Dirceu, liderança histórica do partido, o evento fica registrado como um marco histórico para a política brasileira. “Pelo momento político em que foi realizado, diante da agressão à nossa soberania e democracia pela administração Trump”, explica em entrevista à Focus Brasil.
Na entrevista, o petista detalha os três pilares dessa importância: o combate à agressão de Trump contra a soberania brasileira, a guinada na política econômica do governo Lula com a prioridade da reforma tributária sobre renda e riqueza, e o retorno das eleições diretas no partido.
Novos rumos
José Dirceu, de volta ao Diretório Nacional, enfatiza a necessidade de união nacional pela soberania e o combate à violência política. Sua análise revela uma profunda compreensão do cenário político, antecipando desafios nas próximas eleições e a urgência de unificar as esquerdas para defender a democracia e os direitos sociais, sem misturar religião com política partidária.
A análise de Zé do momento aponta para a necessidade de união nacional em defesa da soberania, abrangendo até mesmo aqueles que divergem sobre o modelo econômico do país. O ex-ministro também alerta para a necessidade de o PT não misturar religião com política, focando na agenda conservadora e reacionária de alguns setores evangélicos, em vez da religião em si.
Sua capacidade de articular o contexto político e econômico, identificar as ameaças e propor caminhos para o partido demonstra uma compreensão da conjuntura e um compromisso com a construção de um programa que promova reformas estruturais e o avanço do país.
Leia a entrevista a seguir:
Como você interpreta o 17º Encontro Nacional do PT realizado no começo de agosto, em Brasília?
Esse encontro será conhecido como um encontro histórico, pelo momento político em que foi realizado, diante da agressão à nossa soberania e democracia pela administração Trump, o que significou uma unidade em torno de uma agenda do PT, e acredito que da imensa maioria dos brasileiros e brasileiras, em defesa da democracia e da soberania. Ele também foi realizado no momento em que o governo faz uma inflexão, com raízes desde o início, quando a política econômica do governo, além do arcabouço fiscal e como parte dele, inicia a construção da reforma tributária, passando do consumo IVA (Imposto sobre Valor Agregado) para a renda, a riqueza e a propriedade. Às vezes, parecia apenas uma busca de aumento da arrecadação, mas, na verdade, a sua natureza era o enfrentamento da concentração de renda, riqueza e patrimônio no Brasil. E a desigualdade, que é uma das maiores do mundo, começou com os fundos exclusivos, offshores, a isenção de dois salários mínimos do imposto de renda, mas se estendeu para lucros e dividendos e culminou na isenção para quem ganha até R$ 5 mil, que rebate num desconto grande até R$ 7 mil. Essa medida conquistou a maioria da sociedade, ganhou o apoio do povo brasileiro: dois terços apoiam a proposta. Isso traz à tona a consciência da imensa maioria dos brasileiros de que o Brasil precisa de uma revolução social, que ela é uma revolução tributária, que está começando. Temos um Estado de bem-estar social, garantido pela Constituição de 1988, mas, no passado, não fizemos a reforma tributária necessária. Se observarmos a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) ou qualquer país do mundo, o sistema tributário incide sobre renda e riqueza, não sobre bens e serviços, consumo. Aqui, quem paga imposto é a massa assalariada, não os rendimentos de aluguel, não os lucros, e principalmente não os lucros financeiros, os rentistas: 1% dos brasileiros tem quase a mesma renda que 150 milhões, 24%, 27% da renda nacional. O encontro se dá num momento histórico, nos dois sentidos: no sentido de uma agressão ao país, que é o agravamento da globalização, e também do confronto dos Estados Unidos com a realidade da ascensão dos Brics, do Sul Global, da China, da Índia, da resistência que a Rússia mostrou, apesar das sanções, por causa da guerra da Ucrânia, e também da reconstrução da Rússia, que foi reconstruída em 25 anos. E também é um encontro histórico, porque nós voltamos à eleição direta. Vamos lembrar que por razões de uma verdadeira guerra que foi feita contra nós, que levou ao golpe contra nossa presidenta Dilma, levou à prisão do Lula num processo sumário político de exceção, que depois foi anulado. A minha prisão, do (João) Vaccari e de outros companheiros e companheiras, de dezenas de dirigentes e quadros históricos do PT, dos mais competentes, experientes, nos fundos de pensão, nas estatais, no primeiro escalão de governo, no parlamento: nós nunca podemos esquecer isso: não é só o mensalão. De 2013 a 2019, chegou um momento em que nós não podíamos sair às ruas com nossos símbolos, e quase cassaram o registro do nosso partido e condenaram nosso líder maior (não só nosso como do povo brasileiro), a 30, 40, 50 anos de prisão. Nós superamos tudo isso com a resistência ao impeachment, depois no Lula Livre, com a vitória numa frente ampla em 2022, mas é o encontro que volta a dar aos filiados a palavra de novo. E mais de meio milhão de filiados foram às urnas, espero que pela última vez, votando manualmente. Espero que na próxima nós votemos pelo celular, como os sindicatos já fazem. A OAB aqui de São Paulo, por exemplo, com centenas de milhares de advogados votaram pelo celular, aliás foi uma disputa acirrada de várias chapas. Muitos dirão que há deformações de filiações em massa, transporte de eleitores, mas a verdade é que isso não é um problema do PED, isso é um problema político que nós temos que resolver no PT, porque no encontro ou no PED pode acontecer, independentemente da forma como é feito. Uma outra mudança fundamental no PT, nesses últimos 90 dias, foi a mudança radical nas redes da atuação do partido e do nosso governo. É uma batalha que nós estávamos perdendo apesar dos esforços da nossa direção nos últimos anos, que, felizmente, agora nós demos um salto. Portanto, eu considero que é um encontro histórico, mas é verdade que nós precisamos aprimorar muito todo o sistema. Também foi um encontro de maturidade do PT, pela forma como ele foi realizado, pela forma como se organizaram as emendas, as votações, pelo papel da comissão de sistematização, talvez até pelo amadurecimento também já das diferentes correntes no PT. Um outro aspecto é o estado político das correntes e o estado de organização do PT, mas essa é outra matéria.
Como foi essa decisão e o processo de voltar a fazer parte do Diretório Nacional?
Eu fiz parte do Diretório Nacional pela última vez no mandato do José Eduardo Dutra. Na verdade, de 2013 a 2019 nós ficamos proscritos: eu fui preso quatro vezes. Fui preso em 2013, 2015, 2018 e 2019. O Supremo me soltou três vezes, porque as prisões eram ilegais. A primeira foi para cumprir pena da Ação Penal 470, que eu cumpri toda, depois fui indultado. Aliás, vou fazer revisão criminal depois das eleições de 2026. Eu continuei participando da vida política do PT como militante e participando da luta política no país, mas não participei mais nem da minha corrente política, nem dos diretórios do PT. Lancei livros, fiz palestras, fui a alguns encontros. Eu acredito que já estava amadurecida essa necessidade de eu voltar a contribuir com o PT como dirigente. Quando conversei com o Edinho sobre a possibilidade de ele ser nosso candidato, ele acabou concordando depois de uma conversa com nosso presidente. Eu tomei a decisão de participar ativamente desse encontro. Eu não podia deixar de contribuir nessa mudança no PT, nesse encontro, nesse reencontro nosso com a militância, e nesse momento histórico. Nós tínhamos o desafio de vencer as eleições de 2026 para dar continuidade ao nosso projeto político, e havia riscos, e há riscos grandes. Eu acredito que eu não podia – eu e outros também, não somente eu, mas outros dirigentes do PT – achamos que nós deveríamos dar talvez uma última contribuição ao PT. E felizmente, com a generosidade da nossa militância e a solidariedade sempre presente todos esses anos na minha vida, fui bem recebido. Fui bem acolhido pela militância e pela minha corrente também, que me deu esse privilégio – porque eu não tinha força política para estar no Diretório Nacional, já que não estava participando da vida interna do PT. Acho que foi mais um ato de generosidade dos dirigentes também comigo.
Durante o encontro, houve uma ampla maioria defendendo a política econômica do Lula, as ações da política internacional do governo, e defendendo não somente a manutenção da eleição direta como um avanço democrático do PT; houve também defesa da manutenção e a ampliação da Frente Ampla. Você acha que essa gestão comandada pelo Edinho, com a sua participação e de outros companheiros, é possível, além de manter a aliança que elegeu o Lula em 2022, ampliá-la?
O país vai se defrontar com a sua própria história, e eu sempre tenho dito: o Brasil é uma potência. O Brasil é um dos maiores países do mundo, e um dos mais ricos do mundo – porque, além da riqueza que nós temos, que é pública e notória, como se diz, ele não tem inverno. É o quinto país do mundo em território, oitavo em população – é que a Nigéria, Indonésia e outros países vêm nos passando – que tem 200 milhões de habitantes. Somos uma das dez maiores economias do mundo e a metade do PIB da população e do território da América Latina. Temos soberania alimentar (que é a coisa mais importante do mundo hoje) e temos soberania energética. Se a energia está cara, este é um outro problema – é o modelo que está errado -, mas nós temos energia para fazer uma revolução de transição energética ambiental. Temos também infraestrutura e uma base industrial e tecnológica que nos permite, em dez anos, vinte, dobrar, triplicar a renda média dos brasileiros, e dar um padrão de vida para os brasileiros justo, e de bem-estar, então é um país que incomoda, principalmente os Estados Unidos. Os Estados Unidos olham para a Coreia, o Japão, a China, agora a Índia, e veem que os países podem se desenvolver e defender seus próprios interesses, que muitas vezes se contrapõem aos seus interesses. Os EUA, o império, não são mais uma república, não são mais uma democracia, são uma plutocracia. Aliás, está caminhando para um regime autoritário pelas mãos do Trump. Agora mesmo eles estão fazendo um remanejamento dos distritos eleitorais para tentar evitar que os republicanos percam as eleições de meio mandato no ano que vem. Portanto, a questão central no Brasil hoje é a soberania e a democracia, pois estão ameaçadas internamente pelos golpistas e pelo autoritarismo, e externamente por esses aliados. Na verdade, eles servem a um governo estrangeiro – o que nossa Constituição proíbe como traição à pátria, como no caso de Eduardo Bolsonaro e da família. Este é o momento de unir todos os brasileiros que defendem a soberania nacional, mesmo aqueles que possam divergir sobre o modelo econômico para desenvolver o país ou distribuir sua riqueza. Pois sempre existirá essa contradição entre o crescimento nacional, o acúmulo de riqueza e sua distribuição – que é a essência da luta de classes. As classes trabalhadoras conquistaram na Constituição de 1988 importantes garantias sociais, políticas e trabalhistas, especialmente a educação pública, o sistema único de saúde e a rede de proteção social com programas como Bolsa Família, BPC e Loas. Além disso, o país tem os bancos públicos, a Petrobras. O que antes chamávamos de industrialização, hoje chamamos de revolução tecnológica. Ter soberania tecnológica e financeira – o grande desafio do Brasil – pode unir a maioria dos brasileiros. Por isso defendemos que devemos, primeiro, unificar a esquerda (como já está unificada em torno do governo Lula), além de consolidar a democracia, a soberania, os avanços sociais e a luta contra concentração de renda, pobreza e desigualdade. Também é preciso agregar grande parte do empresariado e das classes médias. Essa frente ampla que elegeu Lula com Alckmin como vice, mostra que tal união é possível e necessária, mesmo com partidos de direita na base governista. Tudo dependerá da luta política neste momento crítico que vivemos mundialmente. Aqui, a administração Trump continua sua ofensiva – agora com 50% de taxação sobre a Índia – buscando remodelar o mundo conforme os interesses estadunidenses, enquanto nós buscamos governar nosso país e interagir globalmente conforme nossos próprios interesses. Essa é a contradição fundamental existente. O que se observa é que falta o fator agravante que temos aqui: a pressão dos EUA sobre o Brasil em apoio aos golpistas da família Bolsonaro, buscando entregar o poder à direita por vias autoritárias – essa é a agressão externa. O mundo emergente é asiático, do Sul Global, dos BRICS – não o mundo da OTAN e dos EUA. Porém, os EUA veem a América Latina como reserva estratégica, o que entra em contradição com nosso projeto. Daí a famosa frase do ex-presidente (Ronald) Reagan, que alguns atribuem a Henry Kissinger: ‘Não permitiremos outro Japão na América do Sul’, quer dizer, impedir que o Brasil se torne um país desenvolvido, se torne potência, com todas as contradições inerentes ao capitalismo.
Não é verdade que nosso povo seja conservador de direita, nem que aceite passivamente a exploração sem lutar.
O que espera de consequência para os deputados que tomaram a Câmara da forma como fizeram na semana passada?
Bem, nós temos que ter consciência de que eles são golpistas e que usam da violência e do ódio, não devemos ter nenhuma dúvida sobre isso. Eles demonstraram isso novamente, pois aquele foi um ato de violência e uma tentativa de impedir o funcionamento do Parlamento, o que constitui crime contra a Constituição. Os deputados devem responder por isso, devem ser levados à Comissão de Ética, e o presidente tem poderes para suspender alguns deles. Aqui surge uma contradição: alguns argumentam que medidas punitivas agravariam a situação, mas quando não se pune esses atos, eles só se multiplicam. Vimos como terminou o 8 de janeiro, e hoje conhecemos o ‘Plano Punhal Verde e Amarelo’, que previa o assassinato do presidente Lula, do vice Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes. Imagine o que poderia ter acontecido com o resto do país.
Inclusive, há uma suspeita de que o seu nome estava na lista…
Há fontes confiáveis de que eu seria o quarto alvo, porque viajei entre o primeiro e o segundo turnos, fui a Portugal, onde sou advogado, para cumprir prazos de reabilitação profissional, e a Cuba, onde não ia há 12 anos. Daí eles extraíram a fantasia de que eu organizava resistência no exterior para o caso de assassinato do Lula. Parece ficção, mas é realidade: tentaram o golpe, elaboraram o plano e agora vemos sua aliança com potências estrangeiras contra os interesses nacionais, atacando o bem-estar das famílias, nossa economia, produtos de exportação e a indústria tecnológica. Há diferenças entre disputas comerciais normais (que motivaram a criação da OMC, a Rodada Doha, regras e tribunais internacionais – como quando vencemos o caso do algodão) e esta guerra econômica. Fazemos acordos sobre etanol, aço, têxteis; ajustamos tarifas, mas muitos países manipulam ativamente suas moedas. O que o Trump está fazendo é desvalorizar o dólar para encarecer as importações e para tirar as exportações dos Estados Unidos, ou seja, para derrubar o déficit. Os EUA têm uma dívida pública de 120% do PIB, já são 3% do PIB de juros que paga essa dívida, com um déficit público de 7% e têm um déficit comercial de trilhão, então é insustentável. A economia deles é uma economia de serviços, de tecnologia de ponta, não tem indústria, lá é tudo importado, o que é uma contradição. Ao obrigar os países a importar mais deles e exportar menos, estão buscando fontes de arrecadação para diminuir o déficit público. As tarifas acabam sendo uma fonte que pretende que os países paguem impostos, seja por causa do imigrante que manda dinheiro, seja para os países que têm dólar como reserva. Quer dizer, ele está procurando resolver seus problemas, não por reformas internas, pelo contrário, ele fez uma reforma tributária que custou US$ 4 trilhões, quer dizer, mais US$ 4 trilhões na dívida, que já é de US$ 36 trilhões. Ele não tem mais a força, nem econômica, nem tecnológica, nem militar, apesar de ser a maior potência do mundo, para se impor. Então ele começa, na verdade, a rasgar, de certa maneira, a fantasia, e abertamente ameaça: “eu anexo o Canadá, eu compro a Groenlândia, eu ocupo o Panamá, eu vou agora invadir países com drones ou com forças táticas aéreas para combater o crime organizado”. E nós sabemos que isso é uma sandice, porque vamos lembrar que a guerra contra as drogas foi um fracasso, como a guerra contra o terrorismo, a invasão do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, da Síria. Tanto fracassou que os Estados Unidos saíram do Vietnã de maneira vergonhosa e humilhante do Afeganistão. E se nós olharmos a situação da Líbia, da Síria e do Iraque, os países são controlados e afetados exatamente por aqueles que os Estados Unidos estabeleceram como razão de suas invasões. Mas na verdade eles dominaram o petróleo do Iraque e da Líbia, e agora com essa agressão, genocídio contra o povo palestino por Israel, que hoje é condenado pelo mundo todo, por todos os governos, completa-se um quadro que evidentemente o mundo não pode continuar nessa direção. Daí a oposição à política dos Estados Unidos, e daí também essa aversão a esse apoio que ele dá às forças de direita no Brasil. É uma coisa escandalosa a traição nacional da família Bolsonaro e da extrema direita brasileira.
Gostaria que você explicasse duas coisas nesse contexto: primeiro, essa coisa explícita do golpismo e da traição nacional, e segundo, o apoio que temos, verificado nas pesquisas. Como atuar nesse contexto para manter a nossa simpatia e ampliar, para ampliar e conter essa maré extremista, direitista que também cresce no Brasil?
Primeiro nós temos que ter consciência de que não existe uma eleição nacional, nunca existiu. Tem altos e baixos, como na eleição de 1962, que aliás o PTB fez uma bancada de mais de cem deputados e ia ser a bancada majoritária na Câmara em 1966. Uma das razões do golpe de Estado foi a força do PTB, porque a classe trabalhadora brasileira sempre foi muito progressista, nacionalista, democrática – votou no PTB de 1946 a 1964, no MDB de 1974 a 1989 e depois no PT, nos dando cinco vezes a presidência da República. Então o Brasil não é um país conservador de direita. A direita e o conservadorismo sempre tiveram muita força no Brasil e sempre tiveram base popular – o Ademarismo, o Malufismo, o Janismo, o próprio Collor. Foram piorando: Jânio, Collor e Bolsonaro, mas têm sua base. Por razões culturais, políticas, religiosas, foi a luta política que formou a consciência. A luta social, a luta de classes, a luta política formam a consciência. E eles nos reprimiram durante dez anos. Ocuparam os territórios e ganharam grande vantagem na formação da consciência liberal, conservadora, religiosa, muitas vezes de extrema direita em setores populares. Então nós temos que fazer essa luta política, recuperar esses territórios e fazer luta política. E agora, quando a luta política se sintetizou nessa questão da renda, da riqueza, dos impostos, é sinal de que a sociedade brasileira toma rapidamente consciência da sua situação social e econômica e das razões dela, e opta por soluções que nós defendemos historicamente. E vai mudar muito – o Brasil mudará muito nos próximos anos. Porque estão chegando novas gerações no Brasil, inclusive no empresariado. Nós temos geração de empresários hoje de 25 a 35 anos no Brasil, 35 a 45 anos, que são completamente diferentes, e a economia brasileira está mudando rapidamente também. Nós temos que ter consciência disso. Tanto é que o poder que o agro tem hoje e o capital financeiro, praticamente apagam o setor industrial. O rentismo acaba se expressando no parlamento. E nós temos que fazer expressar no parlamento a nossa força, esse é o nosso grande desafio. Porque nós expressamos essa força durante décadas na presidência da República, em muitas prefeituras e em governos estaduais importantes. Nós já, tirando São Paulo, governamos quase todos os estados importantes do Brasil. Então é preciso agora levar essa consciência para o parlamento. Nós vamos enfrentar intervenção externa aberta: porque se Elon Musk vai à Grã-Bretanha e diz ao primeiro-ministro trabalhista (que é conservador, não é de esquerda) que vai tirá-lo do poder; se interferem na eleição na Polônia contra a União Europeia, derrotando o candidato da União Europeia (não é da social-democracia ou da esquerda) – isso mostra que devemos ter consciência: a eleição será disputada com intervenção aberta da administração Trump no Brasil. Mas há muitas forças democráticas no mundo, que não são de esquerda, que nos apoiam. Então nós temos também que ter essa capacidade de articulação, dentro do país e no mundo, de apoio a nós. Porque eles vêm mudando os métodos, mas sempre procuraram manipular e ter governos simpáticos aos Estados Unidos. Primeiro foi o período dos golpes militares, depois tivemos os golpes parlamentares (Honduras, Peru, Bolívia, Paraguai, Brasil). Agora vem essa mistura de gangues, narcotráfico, insegurança, terror nas ruas – e surgem governos autoritários, como em El Salvador e Equador. A questão da segurança pública tem que ser prioridade para nós. Acredito que nós vamos enfrentar um quadro de intervenção externa aliada à direita no Brasil, mas ela será minoria. Porque quando a questão democrática, da soberania, o combate à pobreza, à desigualdade, à questão social se unificam, a maioria do país tende a nos apoiar. Evidentemente nós vamos ter que formar uma aliança, uma coalizão política, mas ao mesmo tempo temos que construir uma coalizão que transforme o país com reformas estruturais que ele precisa. Porque esses dois anos e meio de governo do nosso presidente Lula – o terceiro dele e o quinto nosso – mostram que esse impasse no Congresso Nacional, que não permite reformas, não é uma camisa de força. Daí que muitos entre nós passaram a criticar duramente a política fiscal e exigir a revogação dela e o uso do déficit público. Não, o caminho é aprofundar as reformas como a tributária sobre renda e riqueza. Aprofundar os eixos do governo: os bancos públicos, o BNDES financiando a revolução tecnológica, a transição energética, a reindustrialização do país. Aprofundar uma política agrícola que leve a agricultura familiar a cumprir um papel dobrado no país. Aprofundar a mudança no ensino técnico profissional, para que o jovem saia do ensino médio já empregado, que é o desejo de todas as mães. O país precisa radicalizar sua política de preservação da Amazônia, de reflorestamento, de restauração dos 40 milhões de hectares degradados que temos. O país precisa tomar medidas que o façam avançar, principalmente na revolução tecnológica. Precisamos de uma reforma tributária que permita ao Estado brasileiro investir pesadamente, especialmente em infraestrutura, tecnologia e na revolução educacional de que o país necessita. A distribuição de renda deve ser nosso norte, como foi na construção do Estado de Bem-Estar Social em 1988, que trouxe, além da democracia e dos direitos políticos, os direitos sociais e trabalhistas. Precisamos entender as mudanças no mundo do trabalho pela revolução tecnológica, que causaram enorme precarização no Brasil. E ter consciência: não é verdade que nosso povo seja conservador de direita, nem que aceite passivamente a exploração sem lutar. Prova disso são os motoboys e trabalhadores de aplicativo que lutam aqui em São Paulo, radicalizando sua mobilização. Nosso papel é estar à frente dessas lutas, junto com eles, pois senão a direita poderá dirigí-las. A direita frequentemente lidera mobilizações de certos setores sociais contra interesses dominantes. Mas é da nossa natureza estar ao lado dessas lutas populares. Eu acredito que nunca houve uma situação política tão favorável como esta para nós. O que precisamos é mudanças radicais no nosso partido. Nós fizemos essa discussão, esse debate. O companheiro Edinho e o novo diretório, a nova executiva, devem implementar as mudanças que o PT precisa. Correr atrás. Mudar nossa forma de organização. Priorizar as lutas que já identificamos e a reocupação dos territórios. E principalmente, coesionar as esquerdas numa frente ampla, em defesa da soberania, da democracia e dos direitos sociais. Construir um programa para 2026 e enfrentar a questão do parlamento. Precisamos crescer no parlamento para avançar nas reformas. Porque a luta política já está colocada, e o PT já tomou consciência de que é preciso fazer a luta política e confrontar. O próprio presidente Lula tem essa consciência e mostrou isso nas últimas semanas. Isso unifica o PT. Devemos aproveitar esse momento. Porque é crucial que o PT se una para unir as demais forças de esquerda e centro-esquerda e vencer. Porque a eleição será muito regional também. Cinco, seis estados do PDS apoiarão o presidente Lula. Sabemos disso: Mato Grosso, Amazonas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, talvez Sergipe. Temos vários estados. O mesmo pode acontecer no Partido Republicano ou até no União Brasil, no PP. E no MDB, talvez a maioria possa apoiar o presidente. Então precisamos ter capacidade para construir essa unidade política. Há pautas econômicas importantes que unem esses setores. Inclusive em defesa da economia brasileira, mas também por mudanças no rumo do Brasil. Porque o Brasil precisa assumir o que é. Como tenho dito, o Brasil precisa tomar em suas mãos o próprio destino.
Vladimir Safatle publicou uma crítica na Folha onde contextualiza o que significa uma frase de Lula no documentário Apocalipse nos Trópicos, da Petra Costa, onde ele diz “minha tese é que o que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião”. Nesse contexto do documentário, pensando sobre a perspectiva da religião, porque é disso que o documentário fala, o que você espera para esse recorte nas próximas eleições de 2026? Como você acha que o PT deve atuar?
Eu ainda não assisti, preciso assistir, estou em dívida, mas o PT não deve misturar religião com política. Pode parecer uma frase equivocada, mas nós não divergimos dos evangélicos por causa da religião. Nem porque fazem política, nem porque têm poder econômico, até porque têm partidos. A igreja católica sempre teve isso no Brasil, seria contraditório para nós. Porque nós nascemos, o PT nasceu das igrejas, das pastorais, das CEBs, não foi? Das Comunidades Eclesiais de Base. Muitos petistas são evangélicos, cristãos, em geral, na minha família mesmo. O problema é a agenda conservadora, muitas vezes reacionária, de alguns setores evangélicos – não todos, pois um terço votou no Lula, e muitos pastores e igrejas são progressistas ou respeitam o Estado laico. O que não aceitamos é a teocracia, ou uma religião querer impedir outra. Eles acham que segurança pública é matar, esquadrão da morte, tropa de elite – não deu certo, só piorou. A questão climática, o desmatamento – esse é o debate com os evangélicos, não sua religião. Nós não temos a Canção Nova, o movimento Carismático, as redes católicas de rádio e TV, o patrimônio da igreja católica? Sempre houve dízimos, quermesses, bingos. O Brasil é uma nação cristã; nasceu com base no cristianismo. Porém, milhões de brasileiros hoje não são cristãos. O mundo atual não é majoritariamente cristão – cerca de 80% da população global segue outras religiões. Precisamos lidar com essa realidade com serenidade, sem transformar essa questão em razão da nossa vitória ou derrota, pois não é. As contradições sociais inevitavelmente provocarão mudanças também nas igrejas evangélicas. As novas gerações que estão chegando a essas igrejas não reproduzem o conservadorismo dos pais e avós – observo isso nas igrejas que filhos de meus amigos e familiares frequentam, comunidades completamente diferentes, sem o reacionarismo e conservadorismo das gerações dos pais e dos avós. Devemos abordar essa transição com serenidade. É evidente que nenhum sistema político – socialista ou não – pode cometer o erro grave de proibir ou negar a religiosidade de um povo. A própria experiência histórica demonstra isso: após 70 anos de regimes socialistas (ou assim chamados), a religião ortodoxa hoje praticamente se tornou a religião do Estado russo. Basta observar a liturgia que envolve o presidente Putin e como a Igreja Ortodoxa se integrou ao aparato estatal russo. Agora, ao mesmo tempo, em muitos países da Europa, um terço da população é agnóstica, e mesmo em países do antigo campo socialista, muitos têm um terço de agnósticos. Lembremos que a Polônia quase virou um Estado teocrático – foram os liberais que ganharam a eleição contra os ultraconservadores católicos, parando o avanço do reacionarismo católico no país. Chegou a ser crime criticar o Papa João Paulo II na Polônia, com retrocessos nos direitos das mulheres sobre seus corpos e direitos sociais vistos como antirreligiosos. Houve uma regressão na Polônia, não só nos Estados teocráticos do Golfo, como a Arábia Saudita, ou no Estado Islâmico e no Talibã, totalmente teocráticos. Por isso foi importante o presidente Lula ter colocado esse debate, mas evidentemente, estou dando minha opinião como leigo, cidadão brasileiro, não como estudioso do tema. Confesso que não li ainda o artigo do Vladimir – vou ler hoje mesmo – e não assisti ao filme, pois nestes últimos dois meses, não li tanto quanto gostaria, nem assisti filmes como desejava. Estou em dívida com a Petra, que realmente sei que o papel que ela jogou já nesses dois documentários é importantíssimo.