Luiza Trabuco, Secretária de Combate à Pobreza e à Fome, do MDS, destaca que a marca alcançada em governos petistas só foi possível devido a um conjunto robusto de políticas públicas articuladas a partir de vontade política

O pobre no orçamento público foi o que tirou o país do Mapa da Fome, afirma Secretária 
Luiza Trabuco, Secretária de Combate à Pobreza e à Fome, ressalta que políticas integradas e vontade política foram decisivas para tirar o Brasil do Mapa da Fome. Foto: Arquivo pessoal

No final de julho, o Brasil recebeu a notícia de que deixou oficialmente de figurar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO. O feito ocorreu pela segunda vez, já que, em 2014, o país também deixou de amargar esse triste índice que, fora dos governos progressistas, costuma ser regra. 

Integrante do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, a Secretária de Combate à Pobreza e à Fome, Luiza Trabuco, afirma que o sucesso foi alcançado a partir da reconstrução de uma rede de políticas públicas combinadas, que foram sucateadas a partir de 2016 e desmontadas por completo no governo de Bolsonaro.  

A Secretária destaca que mais de 60% das pessoas em risco de insegurança alimentar no Brasil estão localizadas em 500 municípios, nas capitais e em cidades de médio porte, boa parte no Norte e no Nordeste. E que a partir dessa identificação, a segunda etapa do programa Brasil Sem Fome vai aplicar um protocolo, em uma busca ativa das famílias que ainda seguem sem assistência. Confira a entrevista:

Ao anunciar a saída do Brasil do Mapa da Fome, o presidente Lula demonstrou uma felicidade genuína e declarou que essa pauta é na verdade uma missão de vida. Como você avalia o impacto da obstinação do presidente nas políticas públicas nesse assunto?

Sim, essa questão do combate à fome é uma obstinação de vida do presidente. Ele esteve na última plenária do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] em um momento muito emocionante de comemoração e de celebração, e ele falou uma coisa que eu acho que dá para a gente entender essa obstinação dele. Da diferença que faz estar no poder quem já passou fome. Então, é uma experiência de vida que ele traz em um nível de empatia com as pessoas que passam essa dificuldade que é muito rara. A gente precisa de mais líderes com essa origem popular e esse conhecimento muito profundo sobre os problemas do povo. Eu acho que isso é que explica essa obstinação do presidente. E isso aparece desde o primeiro mandato dele, né? Na verdade, o presidente Lula encampou a proposta de uma política nacional de segurança alimentar que foi produzida na época pelo Consea, ainda no período do Itamar Franco. Então, ele já traz esse projeto, do Fome Zero, antes mesmo de assumir a presidência da República em 2003. E o Fome Zero foi implementado com esse modelo, que é referência para o mundo, de integração de políticas públicas para garantir o direito humano à alimentação, com essa compreensão de que para garantir acesso a gente precisa de políticas que possam tanto aumentar a produção e a disponibilidade de alimentos, quanto também ampliar a capacidade das pessoas de terem acesso a esses alimentos a partir de políticas que ampliam a renda, que garantam o acesso das pessoas aos sistemas de direitos. Porque esse conjunto de condições é que fazem as pessoas poderem ter acesso de uma forma regular e permanente aos alimentos. Então, esse é o modelo que foi proposto desde o primeiro mandato do presidente Lula, seguiu no segundo, e depois no mandato da presidenta Dilma.

E foi descontinuado após o golpe…

Sim, quando esse modelo foi desmontado em 2016, o Brasil voltou ao mapa da fome. E a gente chegou no pico em 2022, com 33 milhões de pessoas passando fome, segundo dados de uma pesquisa feita pela sociedade civil, por uma rede de pesquisadores, porque essa também foi mais uma das demonstrações de descaso do governo Bolsonaro em relação à fome no país. Além dele negar que existisse fome, ele interrompeu as pesquisas oficiais que monitoravam a segurança alimentar, que eram realizadas pelo IBGE. E foi por isso que a rede PENSSAN [Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional] realizou esse inquérito e foi importante porque evidenciou o que a gente via nas ruas, toda aquela questão da fila do osso.

E como isso funcionou durante o período de transição do governo Lula 3? Quais políticas foram desenhadas já naquele momento?

Acho que durante a eleição isso já se colocou como uma prioridade para um futuro governo do presidente Lula e logo no início, uma das primeiras medidas que o presidente fez foi retomar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [SISAN], que foi um sistema criado lá em 2006 por ele. A gente produziu dois Planos Nacionais de Segurança Alimentar [nos mandatos anteriores, Lula/Dilma], e em função desses planos, desse conjunto de políticas integradas, é que a gente saiu do Mapa da Fome com programas como PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], com as melhorias que foram feitas na alimentação escolar, inclusive, incluindo a possibilidade de compra de alimentos da agricultura familiar. Os planos Safra da agricultura familiar. Então, esse sistema que produziu isso, que produziu essas políticas integradas para a saída do Brasil do Mapa da Fome, foi desmontado no governo Bolsonaro quando ele extinguiu o Consea. Então, com a extinção do CONSEA não foi possível fazer a conferência, e o Brasil ficou sem um plano, porque a partir da conferência que, de forma participativa, são definidas as diretrizes e as prioridades para o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Então, o Brasil ficou sem um Plano de Segurança Alimentar de 2019 a 2022, exatamente nesse período em que as políticas foram desmontadas. Além disso, a gente teve uma política econômica de austeridade que gerou muita pobreza e desigualdade. Então, quando o presidente Lula assume, a gente já retoma esse sistema de forma muito imediata com a reinstalação do Consea, com a estruturação de uma Câmara Interministerial que reúne 24 ministros, e foi essa articulação que elaborou o Plano Brasil Sem Fome.

O pobre no orçamento público foi o que tirou o país do Mapa da Fome, afirma Secretária 
Foto: Arquivo Agência Brasil

Comenta um pouco sobre as diretrizes do Plano Brasil Sem Fome…

O Plano Brasil Sem Fome tem cerca de 80 programas desses 24 ministérios e é estruturado em três eixos. O primeiro eixo é garantir acesso à renda e políticas públicas. E eu posso destacar como uma das medidas fundamentais a valorização do salário mínimo que garantiu uma capacidade maior de renda, sobretudo, porque também houve o controle da inflação de alimentos. A valorização do salário mínimo, o novo Bolsa Família que, não só tem o valor de R$ 600, mas tem um conjunto de benefícios variáveis, como o benefício da primeira infância que transfere R$ 150 para cada criança de 0 a 6 anos que tem dentro da família, já que as pesquisas mostram que os domicílios que têm presença de crianças de 0 a 6 anos estão mais vulneráveis à insegurança alimentar. A gente tem aí também, nesse primeiro eixo, todo o trabalho que foi feito de busca ativa para trazer para dentro do Cadastro Único, que é o cadastro que dá acesso aos programas sociais do Governo Federal, os públicos mais vulneráveis, as famílias de povos indígenas, quilombolas e pessoas em situação de rua. Destaco ainda o programa das Cozinhas Solidárias, que foi um programa novo. O segundo eixo são os esforços feitos para ampliar a produção e o consumo de alimentos saudáveis. E aí dentro desse eixo a gente tem os planos Safra da agricultura familiar, que nós tivemos dois planos recordes de investimentos. A gente teve a retomada e expansão do programa de aquisição de alimentos. Teve o reajuste do valor que é repassado pelo Governo Federal aos estados e municípios para aquisição da alimentação escolar. A retomada de programas como os das cisternas, o fomento rural e a implantação de novos programas como o Alimenta Cidades e o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. Então, nesse conjunto de programas é que a gente tem um aumento da disponibilidade de alimentos para as pessoas, e também condições para que elas acessem, não só comer de qualquer comida, mas alimentos saudáveis, né? E, por fim, no terceiro eixo, a grande estratégia era o fortalecimento desse Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, fazendo com que mais municípios implantem essas mesmas estruturas que a gente tem aqui no Governo Federal porque são essas estruturas que dão condição para que essa articulação de políticas aconteça. Nós investimos muito para consolidar isso porque vimos que o retrocesso que ocorreu foi muito em função do desmonte desse sistema. 

O Brasil saiu do Mapa da Fome duas vezes, ambas nos períodos dos governos petistas. Como você enxerga esses dois momentos? Quais as diferenças dos trabalhos nesses dois períodos: após o auge da política neoliberal dos anos 90 e com o contexto da pandemia agravada com Bolsonaro no poder?

A primeira vez, para sair do mapa da fome, a gente demorou 11 anos. E aí tem a ver com um processo cumulativo, né? De construção dessa política de segurança alimentar, de um estado de bem-estar social, com uma política econômica mais inclusiva, com um conjunto de medidas que tornaram a sociedade brasileira mais inclusiva. E aí a gente tem muitas coisas no campo da educação que refletem na renda das pessoas, o ProUni e outros programas. Então, tem muito a ver com a decisão que o Lula sempre diz de botar o pobre no orçamento. Quando a gente põe o pobre no orçamento, investe o orçamento em políticas públicas, a gente tem um resultado muito concreto nas condições de vida das pessoas. A gente tinha uma situação muito grave em termos de fome no país, em 2002, dizia-se que tínhamos 54 milhões de brasileiros passando fome. No período de Fernando Henrique, houve uma política que impactou muito a questão do acesso à alimentação, porque estimulou muito as exportações. Levamos 11 anos de estruturação dos sistemas que comentei. Muita gente acredita que a reversão do gráfico foi durante a pandemia, mas, na verdade, começamos a ver o aumento da fome já a partir de 2017, com o desmonte das políticas. Com a gestão do governo Bolsonaro, a situação se aprofundou de forma muito acelerada. Então, eu acho que a gente precisa olhar para trás e observar primeiro o que é que fez o Brasil sair do mapa da fome e a gente compreende que é uma política econômica inclusiva. Neste governo, a renda dos mais pobres cresceu três vezes mais do que a renda geral dos brasileiros. Para dar um exemplo, em 2023, o crescimento da renda dos brasileiros foi de 11%, enquanto a dos mais pobres cresceu 38%. O que a gente precisa fazer para manter o Brasil fora do Mapa da Fome é fortalecer essas políticas públicas dentro desses sistemas, como o SUAS [Sistema Único de Assistência Social], o SUS [Sistema Único de Saúde] e o SISAN [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], manter as condições de orçamento de execução dessas políticas. A gente não acabou com a fome no país, a gente tirou do Mapa da Fome porque agora temos menos de 2,5% da população em estado de subalimentação, mas a gente ainda tem pessoas passando fome e o presidente Lula nos determinou que a gente desenvolva uma estratégia para chegar nessas pessoas que a gente ainda não chegou. O que fez a gente conseguir sair do Mapa da Fome a primeira vez e sair agora foi a escolha acertada do povo brasileiro que trouxe de volta para a direção do país esse projeto político. E acho que uma coisa que pode nos ajudar a não retroceder nesse ponto é o trabalho de capilarização do SISAN nos municípios. 

Não é rara a abordagem da dicotomia do Brasil ser um grande produtor de alimentos e amargar com índices relacionados à fome. Como você avalia esse ponto?

Não dá para falar nada sobre o Brasil sem ter como filtro a questão das desigualdades, né? Porque é ela que ajuda a explicar o cenário que a gente tem. Então, com relação ao acesso à alimentação é a mesma coisa. A gente vê nos dados do acesso à alimentação, quem passa fome, quem consegue comer bem, quem não consegue comer bem, quando a gente olha quem são essas pessoas, são pessoas pretas, são pessoas periféricas, são pessoas de regiões que não tiveram historicamente investimentos públicos e, por isso, têm um um nível de desenvolvimento menor do que outras regiões. Então, as desigualdades estão ali impressas, né, no acesso à alimentação também. O problema da segurança alimentar, da garantia da alimentação, não é um problema de disponibilidade, não é um problema de produção. É muito mais um problema de acesso. É muito mais um problema das condições das pessoas de acessarem esses alimentos que estão disponíveis. Então, por isso é que eu acredito que haja tanta instabilidade, digamos assim, e é por isso que as políticas públicas são muito decisivas para garantir ou não condições de acesso da população brasileira aos alimentos. 

A gente sabe que há uma relação direta entre alimentação e índices de aprendizagem escolar, por exemplo. Nesse sentido, qual a importância de uma população bem alimentada? 

Isso é bem importante porque essa política toda, todo objetivo dela é garantir um direito que tá lá na Constituição, no artigo sexto, que é o direito à alimentação. Exatamente por compreender que ele é um direito básico para que as pessoas tenham condições de se desenvolver na vida. Condições de terem melhor aprendizado, condições de uma melhor condição de saúde, mais disposição para o trabalho, e, principalmente, no desenvolvimento infantil. A qualidade da alimentação é fundamental para o desenvolvimento nessa etapa da vida. É por isso que a qualidade da alimentação escolar é tão fundamental para a política de segurança alimentar. E realmente são muitos impactos e acho que a gente tem poucos estudos ainda sobre esse ponto. 

Na semana passada, o ministro Wellington Dias foi ao programa Bom Dia, Ministro e falou que o Governo Federal está em preparativos para a segunda etapa do programa Brasil Sem Fome. Você pode detalhar esse trabalho? 

A gente tem comentado que a primeira etapa do Brasil Sem Fome tinha como metas tirar o Brasil do mapa da fome. A meta da segunda etapa é tirar a fome do mapa do Brasil. Tem a ver com a determinação do presidente da gente alcançar essas pessoas que a gente ainda não alcançou, ou seja, quem ainda está em situação de insegurança alimentar grave no país. E a gente pretende fazer isso, primeiro, aprimorando os nossos instrumentos para identificar os territórios e os públicos mais afetados. Para isso a gente desenvolveu, porque o Brasil até então, só tem pesquisas que mostram a segurança alimentar no Brasil e até os estados, nas grandes regiões. A gente não tinha nenhum indicador que mostrasse a situação da segurança alimentar nos municípios. Então, a primeira coisa foi desenvolver um indicador para mostrar pra gente esses dados, via PNAD do IBGE. Aí a gente pegou essas características das famílias e foi olhar na base do Cadastro Único e a partir dessa metodologia a gente conseguiu definir um percentual de famílias em risco de insegurança alimentar em cada um dos municípios brasileiros. Então, hoje a gente tem um mapa e a gente sabe quais são os os municípios que têm maior percentual de pessoas em risco de insegurança alimentar. A maior parte, mais de 60% das pessoas em risco de insegurança alimentar estão em 500 municípios. Nas capitais e nos municípios de médio porte, no Norte e no Nordeste, boa parte. A partir disso, a gente quer priorizar esses esses lugares, esses municípios, pra gente levar as políticas do Brasil Sem Fome para esses para essas áreas e apoiar esses municípios para implantação do que a gente tá chamando de “Protocolo Brasil Sem Fome”, que é realizado a partir de uma articulação dos três sistemas, SUS, SUAS e SISAN. 

Secretária, o Bolsa Família é uma política pública que conquistou um lugar especial no debate político e no cotidiano dos brasileiros. A exemplo deste programa, é possível termos a consolidação da rede de políticas de segurança alimentar para evitar uma oscilação do índice, a depender do viés de cada governo? 

Se a gente observar, no período da pandemia, a gente teve o Auxílio Emergencial, o Bolsa Família foi meio que quase substituído pelo Auxílio Emergencial e houve um desmonte dos princípios centrais do Bolsa Família, que são fundamentais para o programa ter o resultado que ele tem na segurança alimentar, na educação e na saúde, que é a questão do Cadastro Único. Um cadastro estruturado muito cuidadosamente feito pelas equipes da Assistência Social. Esse cadastro é que orienta a seleção apropriada de famílias que têm direito àquele benefício e isso garante que o recurso público, o orçamento, tenha um impacto nas pessoas que tem que impactar. Então, o Auxílio Emergencial foi um volume absurdo de dinheiro que foi colocado de uma forma muito sem critério, porque não foi orientado por um cadastro, pelo Cadastro Único. O acompanhamento da saúde, educação, também nesse período foi bastante negligenciado. E por isso que a gente teve, mesmo num contexto em que o Bolsa Família existia, 33 milhões de pessoas passando fome. Então, não é só a coisa em si, mas precisa de um conjunto de outras coisas para poder sustentar ou não isso. A nossa expectativa é que, da mesma maneira como o Bolsa Família hoje é pauta, da mesma maneira como a sociedade brasileira hoje tem muita consciência sobre o que significa o SUS, após a pandemia, a gente espera muito que essa saída do mapa da fome, as duas vezes, a partir da existência do SISAN, que a sociedade brasileira passe a ter isso como pauta também e que a existência desse sistema, o fortalecimento dele, possa proteger mais o país de grandes retrocessos rápidos e intensos como os que a gente já viveu.