Segurança pública é também uma pauta municipal, por Letícia Delgado
“Construir uma política municipal de segurança pública é, antes de tudo, um exercício de responsabilidade democrática”, defende Letícia Delgado em artigo

Por muito tempo, a segurança pública foi entendida exclusivamente como responsabilidade das polícias e, portanto, dos estados. No entanto, essa visão vem se mostrando insuficiente diante da crescente sensação de insegurança vivida cotidianamente nos municípios brasileiros. A urgência do tema, combinada com a complexidade da violência e com a maior proximidade entre o cidadão e a gestão local, impõe aos municípios o desafio — e a oportunidade — de assumir um papel mais ativo na construção de políticas públicas de segurança.
A Constituição Federal, ao afirmar no artigo 144 que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, já apontava, ainda que de forma genérica, para a necessidade de um envolvimento mais amplo e coletivo. Ao lado da saúde, da educação, do lazer e da assistência social, a segurança integra o conjunto dos direitos sociais. Nesse sentido, compreendê-la sob a ótica da cidadania é fundamental.
A violência é um fenômeno multicausal e profundamente territorializado. Ou seja, ela se manifesta de forma diversa conforme o território, afetando desproporcionalmente jovens, mulheres, negros, pessoas em situação de rua e moradores de periferias. A partir dessa constatação, é inescapável reconhecer que soluções uniformes e centradas apenas na repressão não são suficientes. A atuação municipal, por sua proximidade com os territórios e com a população, tem um potencial transformador, especialmente na formulação de políticas de prevenção.
Os desafios de uma política municipal de segurança
Pensar segurança pública no nível local implica enfrentar uma série de obstáculos. O primeiro deles é a própria complexidade do tema, que exige articulação entre diversas áreas, como educação, saúde, assistência social e urbanismo. Além disso, a ausência de dados locais sobre violência dificulta o diagnóstico preciso e o direcionamento de ações efetivas.
Outro ponto crítico é a inexistência de um sistema nacional de segurança pública com repasses obrigatórios aos municípios, como existe na saúde e na educação. Isso dificulta a estruturação de políticas locais com base em recursos previsíveis e sustentáveis. Soma-se a isso a baixa cultura de participação popular na discussão sobre segurança e a dificuldade de superar uma visão puramente repressiva da
política pública.
Por fim, há ainda o desafio de pensar a segurança pública a partir dos territórios e das populações mais vulneráveis, reconhecendo que a violência se manifesta de maneiras diversas em diferentes contextos sociais.
Os pilares para uma política municipal de segurança
Superar esses desafios exige uma política estruturada sobre alguns pilares fundamentais. O primeiro é o da pactuação social, com a criação de espaços como conferências, conselhos e fóruns para discutir a segurança sob uma perspectiva democrática e cidadã.
O segundo é o respeito às atribuições municipais. O município não tem o papel de substituir as polícias, mas pode e deve desenvolver ações complementares voltadas à prevenção e à mediação de conflitos. A Guarda Civil Municipal, onde existente, deve ser orientada por princípios de proteção de direitos, patrulhamento preventivo e uso progressivo da força, como prevê a Lei 13.022/2014.
O terceiro pilar é a comunicação estratégica. É preciso pautar a segurança de forma positiva, valorizando ações de prevenção, promoção da cidadania e fortalecimento do convívio social. Em um cenário de medo e desinformação, comunicar bem é também uma forma de proteger.
Caminhos concretos para a ação municipal
Na prática, alguns eixos vêm se mostrando eficazes para estruturar uma política municipal de segurança:
Governança e institucionalidade: Criação de uma Secretaria Municipal de Segurança, com capacidade de articular políticas, gerir a Guarda Municipal e integrar ações com as forças de segurança estaduais. A implementação de Conselhos Municipais e Fundos de Segurança Pública também fortalece essa institucionalidade.
Produção de conhecimento: A criação de Observatórios Municipais de Violência, em parceria com universidades, permite a geração de dados e diagnósticos mais precisos para orientar políticas públicas.
Uso de tecnologia: Sistemas de videomonitoramento urbano com inteligência artificial têm se mostrado eficazes na prevenção de crimes patrimoniais e emergências ambientais, além de favorecer a integração entre secretarias e órgãos de segurança.
Participação popular: A institucionalização de espaços de escuta e participação — como conselhos e fóruns regionais — ajuda a legitimar e qualificar as ações públicas.
Integração entre políticas sociais: A segurança não se constrói apenas com policiamento. Programas voltados à juventude, cultura, educação, saúde mental, combate à violência contra a mulher, políticas para população de rua e ações de zeladoria urbana (como iluminação pública e manutenção de praças) contribuem diretamente para a sensação de segurança e prevenção à violência.
Valorização da convivência: Atividades culturais, esportivas e recreativas em espaços públicos, como o projeto “Esporte à Meia-Noite”, promovem o uso positivo do território e fortalecem os vínculos comunitários. Afinal, o contrário de insegurança não é a presença policial, mas sim a convivência cidadã.
Por uma nova cultura de segurança pública
Construir uma política municipal de segurança pública é, antes de tudo, um exercício de responsabilidade democrática. É reconhecer que o direito à segurança é inseparável do direito à cidade e que só haverá cidades verdadeiramente seguras quando forem também justas, inclusivas e plurais.
Municípios que se lançam nesse desafio, com planejamento, escuta e compromisso com os direitos humanos, não apenas enfrentam a violência, mas transformam a cultura política local e apontam novos caminhos para o país. A segurança pública, afinal, precisa deixar de ser um tema monopolizado pelo medo e pelo autoritarismo para se tornar, de fato, um direito social construído coletivamente.
Letícia Delgado é veradora de Juiz de Fora (MG), ex-secretária municipal de Segurança Urbana e Doutora em Cicências Juríricas e Sociais com ênfase em políticas municipais de segurança pública (UFF)