ECA 35 anos: audiência esvaziada vira palanque de Damares para educação em casa e trabalho infantil
Sessão oficial sobre os 35 anos do ECA contou apenas com Damares Alves entre os senadores e serviu para defender educação domiciliar, distorcer relatório da ONU e normalizar o trabalho infantil

A Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH) realizou, no último dia 14 de julho, uma audiência pública para marcar os 35 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com 19 membros titulares e duas vagas em aberto, a sessão teve apenas uma parlamentar presente: a senadora Damares Alves, atual presidente da comissão. O vazio simbólico da sala refletiu o propósito real da audiência, que foi menos uma homenagem ao ECA e mais uma plataforma para defender o homeschooling, flexibilizar o trabalho infantil e inverter o princípio da proteção integral.
A audiência começou com a apresentação da cantora Dani Harumi, de 13 anos, e seguiu com um discurso da senadora, que usou dados do Disque 100 para afirmar que os 289 mil registros de violência contra crianças seriam “menos de 10% da realidade”.
A frase foi acompanhada de outra marca da retórica de Damares: a fabricação de estimativas sem base. Segundo ela, mais de 25% dos jovens brasileiros já sofreram agressões, sem citar fonte, estudo ou levantamento. Em seguida, listou ações de seu mandato como o envio de verbas para Conselhos Tutelares, casas de acolhimento e combate à exploração infantil.
Trabalho infantil “com trilhos” e homeschooling como bandeira
A partir daí, a audiência tomou um rumo bem distante da defesa do ECA. O ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, subiu à tribuna para relativizar o conceito de trabalho infantil. Disse que, ao identificar uma atividade laboral irregular, o Estado não deveria interrompê-la, mas “colocar o rio no seu leito, o trem no seu trilho”.
Para ele, funções como empacotadores mirins ou gandulas durante a Copa de 2014 são “exemplos positivos” de experiências formadoras. Ignorou completamente a atuação do Ministério Público do Trabalho e moções de repúdio à liberação de crianças em funções regidas por interesses comerciais.
Na audiência, o homeschooling foi tratado como direito natural das famílias. Igor Vieira, jovem de Blumenau formado em ensino domiciliar, se apresentou como professor de xadrez, latim e inglês, e afirmou que sua família foi perseguida por não ter optado pela escola tradicional. Damares usou a ocasião para apresentar um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, “O direito à segurança na educação”, publicado em junho, como suposta validação do homeschooling.

O texto, no entanto, trata de ambientes formais, não formais e informais com base em segurança educacional, e recomenda apoio às famílias que já praticam ensino em casa, desde que com supervisão comunitária, o que não corresponde à agenda defendida na audiência. O documento completo pode ser acessado aqui.
Outro ponto alto da audiência foi a participação do adolescente Richard Bryan, de 14 anos, apresentado como “empreendedor visionário”. Ele defendeu que adolescentes possam empreender livremente, pedindo reconhecimento legal e menos interferência do Estado.
Damares afirmou que sua família teria sido “perseguida pelo Conselho Tutelar” após viralizar um vídeo em que ele diz “quero ganhar meu dinheirinho”. A senadora comparou o episódio a casos de jovens armados em comunidades, alegando que a polícia “não pode ir lá ver o menino com ‘rifler’ (sic)”. A declaração escandalizou quem esperava uma audiência sobre direitos e proteção infantil.
Ao final, Gandra Martins Filho declarou que o depoimento sobre o homeschooling foi “um dos mais importantes” da sessão, criticou a contaminação ideológica da educação pública e pediu urgência na regulamentação da educação domiciliar. Nenhuma menção foi feita à evasão escolar, à fome nas escolas, à precarização do ensino público ou à crise na rede de proteção social da infância.
O que se viu foi uma inversão total do papel institucional da CDH e uma distorção do espírito do ECA. Em vez de promover políticas públicas para garantir permanência escolar, proteção e inclusão, a audiência celebrou o isolamento educativo, o trabalho precoce e a ideologia da meritocracia individualizada, ignorando completamente a realidade das crianças brasileiras.