Pra não dizer que não falei dos números: os evangélicos e o Censo de 2022, por Alexandre Brasil
A cada 10 anos, os dados do Censo Demográfico renovam o debate sobre a pluralização e a estabilidade religiosa no Brasil, trazendo novas luzes para o entendimento das transformações sociais e culturais do país
Por Alexandre Brasil, coordenador pedagógico do curso Fé e Democracia para a militância evangélica brasileira, oferecido pela Fundação Perseu Abramo

A cada 10 anos uma data provoca altas expectativas em sociólogos da religião. Mais do que uma final de campeonato ou o último capítulo de uma novela, a divulgação dos dados de Religião do Censo Demográfico mobiliza nossos corpos, almas e mentes. Quem acertou nas estimativas? Qual fato novo ocorreu? Durante 10 anos (ou 13, como nessa vez) são feitas suposições, expressos desejos e apresentadas análises. Até que o Censo vem e confirma algumas, nega outras e joga luzes em sombras ainda não percebidas.
Os dados agora revelados pelo IBGE ainda são preliminares e não dão conta de todo o cenário por não apresentarem o detalhamento dos grupos religiosos. Temos somente parte da informação. Que os próximos capítulos venham logo. Além disso, algumas mudanças na forma de apresentação dos dados limitam a qualidade das comparações, mas é isso o que temos e aqui escrevo um pouco das minhas primeiras observações. O olhar de alguém que desde o Censo de 1980 se debruça sobre esses resultados.
Neste artigo apresento inicialmente os achados dos grandes grupos religiosos, conforme divulgado no Censo de 2022, reforçando a imagem de aprofundamento do processo de pluralização religiosa no Brasil. Em seguida, são apresentados alguns dados relacionados ao percentual de crescimento dos evangélicos e da população em geral desde 1940. Esse dado parece indicar um processo que hoje caminha para uma relativa estabilidade. Não havendo mais um crescimento significativamente maior do que o crescimento populacional, o que diminui a velocidade de crescimento e torna mais distante a possibilidade de uma maioria evangélica em curto ou médio prazo. Também são apresentados alguns dados que exploram a correlação entre os três maiores grupos religiosos, a partir da comparação de seus percentuais na população das 510 Regiões Geográficas Imediatas (RGI) e que ajudam a pensar na questão do trânsito religioso.
A questão dessa estabilidade do crescimento evangélico ainda é analisada a partir de outras duas fontes de dados. Primeiro, com dados sobre as diferenças regionais do crescimento evangélico desde 1940. Depois com dados relacionados ao crescimento de 2010 para 2022 de cada Estado, situação em que somente no Piauí é que tivemos valores acima dos 60%, marca que esteve presente na média brasileira dos últimos 80 anos e que agora, em 2022, ficou em 35%. Esse primeiro olhar do Censo parece corroborar a crescente situação de pluralismo religioso no Brasil, ao lado da interpretação de que estamos caminhando para um processo de estabilidade da presença evangélica em termos percentuais na sociedade.
Números da pluralização
O que o resultado do Censo 2022 nos disse é que os cristianismos decaíram de praticamente a totalidade da população no final do século 19, para 83,6% da população agora no início do século 21. Nesse bojo é que os resultados refletem a presença cada vez maior do pluralismo religioso, tanto pelo aumento dos evangélicos com suas várias matizes, como pelo crescimento das outras religiões, pelo triplicar das religiões de matriz africana e pela presença dos Sem Religião, a terceira maior pertença religiosa – sem pertencimento –, que agrega 16,4 milhões de pessoas.
Os processos sociais para garantir toda liberdade na definição de crenças alternativas ao catolicismo foram árduos e não ocorreram sem a reação do establishment religioso. Porém hoje parece ser possível para a maioria da população adotar o seu culto ou não-culto, conforme seu gosto. Ainda não é nada desprezível o volume e a presença do catolicismo no território e na cultura nacional e é esperado que ele seja uma espécie de “doador universal” para os trânsitos religiosos. Neste processo de destradicionalização resta saber que outros movimentos podemos supor e de que forma as outras religiões vivenciam esse ambiente, que tem permitido uma transição religiosa à brasileira. Ou seja, constante, mas lenta, conforme as peculiaridades regionais, questões sociológicas e outros elementos demográficos, como a taxa de fecundidade e as migrações populacionais.

Católicos, Evangélicos e Sem Religião: os três maiores
No contexto dos números do Censo de 2022, os evangélicos se apresentam (se impõem) na esfera pública e na prática eleitoral. Mesmo inflacionando seus números, seu crescimento vem se destacando nos levantamentos oficiais, apontando para a formação de uma minoria cada vez mais numerosa ao lado da ampliação da diversidade religiosa. São centenas de denominações com diferentes nomes, ao lado de espíritas, afros, judeus e da ampliação de adeptos das chamadas “outras religiões” e dos sem religião.
Entre 1940 e 1991, a taxa de crescimento evangélico alcançou valores que permaneceram no mesmo patamar (entre 60% e 70%). Já nos anos de 1990 houve um salto, com um crescimento de quase 100%. Em 2010, se retorna ao patamar anterior, com um crescimento de 69% e o Censo de 2022 parece indicar um aumento que se aproxima cada vez mais do vegetativo, aquele que acompanha o crescimento populacional. Isso ocorreu nos Estados que se destacaram no salto de 1991 para 2000 (ES, DF e RJ), sendo estes os três que obtiveram menor taxa de crescimento de 2010 para 2022 (9,6; 11,9; 12,3 respectivamente). O gráfico 1 retrata a taxa de crescimento populacional e dos evangélicos:

Somente a partir de 1980 é que o Censo passou a diferenciar pentecostais de tradicionais, sendo uma incógnita saber isoladamente o desempenho destes grupos nas décadas anteriores. Esse tipo de detalhamento ainda não foi disponibilizado pelo IBGE para o Censo de 2022, assim não será possível identificar alguns importantes aspectos. Como foi possível verificar que parte da ampliação ocorrida na década de 1990 foi graças ao crescimento de tradicionais, que entre 1980 e 1991 haviam crescido apenas 9,1% e na década seguinte registraram um crescimento de 63,2%.
Estaríamos, então, caminhando para vivenciar em médio prazo uma maioria evangélica no Brasil? Se diante dos resultados de 2010 isso não parecia ser mais uma hipótese tão provável, agora menos ainda. O crescimento evangélico se dá de forma proporcional, de onde tem pouco é que se pode ter aumentos maiores e é por isso que o catolicismo permanece perdendo, pois ele é quem tem mais para distribuir. E há indícios de que os evangélicos também passaram a posição de doador. O mais significativo movimento existente aponta para a passagem do catolicismo em direção às igrejas evangélicas, temos uma forte correlação negativa (r = -0,911), indicando uma correlação negativa quase perfeita. O coeficiente de correlação também nos esclarece que o segundo movimento mais significativo também ocorre de forma negativa, com resultado de -0,797, ao comparamos os percentuais de católicos e dos sem-religião nas diferentes regiões geográficas imediatas.
Pelos dados do Censo de 2022 também se identifica uma correlação positiva moderada (0,535) entre evangélicos e sem religião. A existência de correlação apenas indica que uma variável interfere na outra, mas não define quem interfere em quem e nesse caso a inferência não é óbvia. Mesmo sem ser tão significativa, como no caso da saída de católicos para as igrejas evangélicas, o crescimento evangélico e dos sem religião está relacionado. Minha hipótese é de que temos um movimento de católicos para adesão às igrejas evangélicas ou pela não religião, ocorrendo posteriormente um fluxo desses evangélicos, ex-católicos, para a situação de Sem Religião. Os gráficos 2, 3 e 4 reúnem os dados dessas relações nas 510 RGIs:
Gráfico 2 – Dispersão entre Católicos e Evangélicos nas Regiões Geográficas Imediatas, Censo 2022

Gráfico 3 – Dispersão entre Católicos e Sem Religião nas Regiões Geográficas Imediatas, Censo 2022

Gráfico 4 – Dispersão entre Evangélicos e Sem Religião nas Regiões Geográficas Imediatas, Censo 2022

Os gráficos de dispersão evidenciam dois vetores principais de trânsito religioso no Brasil contemporâneo. O primeiro, mais intenso e amplamente documentado pela literatura, refere-se à transição da população historicamente católica para dois destinos distintos: o campo evangélico e a condição de não filiação religiosa. Esse fluxo duplo revela um processo de desinstitucionalização da fé católica, impulsionado por transformações socioculturais, urbanização, mobilidade social e crises de representação religiosa. O segundo vetor, de menor magnitude, mas ainda significativo, é o movimento de saída do campo evangélico em direção à não religião. Esse deslocamento é mais frequente em contextos urbanos, entre jovens e camadas com maior escolarização. Em conjunto, esses dois fluxos sugerem uma recomposição estrutural do campo religioso brasileiro, marcada não apenas pela pluralização, mas também pelo avanço da indiferença ou rejeição à identidade religiosa institucional. Na tabela 1 sugiro um resumo dessas conclusões:

Observações sobre o perfil socioeconômico médio dos evangélicos e dos sem religião — ambos mais presentes em faixas de baixa a média renda e escolaridade — também corroboram a hipótese de origem comum. Contudo, para verificar se essas correlações são estruturalmente robustas, torna-se necessário o desenvolvimento de análises multivariadas, como regressões lineares, que permitam controlar por variáveis demográficas e socioeconômicas. Tais estudos aprofundariam a compreensão dos determinantes do trânsito religioso brasileiro, contribuindo para o mapeamento de suas causas e dinâmicas contextuais. Não se pode esquecer que, além de uma porta de entrada, também há uma porta de saída e é no dinamismo do mundo vivido que as pessoas definem as suas pertenças e o trânsito religioso.
Diferenças regionais
O Nordeste ainda é uma região de difícil acesso para a pregação evangélica, apesar do crescimento ali ter sido num patamar maior do que a média nacional de 35%, aumentando em 48,6% a presença evangélica. O percentual de evangélicos no conjunto da população da região é de 22,5%, abaixo da média nacional, e a participação destes no conjunto nacional de evangélicos é inferior ao peso da população residente para o Brasil (26,7%), confirmando esta sub-representação.
Foi a região Norte onde houve maior aumento: 49,8%. Se ali vivem 8,2% da população brasileira, entre evangélicos temos uma contribuição um pouco maior, com 11,2% destes vivendo na região. É a região mais evangélica do Brasil, onde 36,8% da população se define como tal e onde temos os dois Estados em que o número de evangélicos supera o de católicos: Acre e Rondônia. No lado oposto desse quadro temos a região sudeste, com o percentual de crescimento de 26,1%, reunindo 44% dos evangélicos e mantendo a queda iniciada em 2000 em relação à participação da região no computo total de evangélicos no Brasil. A continuar este processo, no próximo Censo haverá uma contribuição menor da região sudeste para os evangélicos do que a contribuição desta região para a população geral, que neste levantamento aparece com 42,3%. O Gráfico 5 apresenta a série histórica com a contribuição de cada região para o total de evangélicos no Brasil:

Gráfico 5 – Distribuição percentual da população evangélica por região. Fonte: IBGE
Importante salientar um comportamento particular na região nordeste, onde em relação à população geral há uma diminuição da sua participação no conjunto da população brasileira, ao mesmo tempo em que há um aumento da sua contribuição em relação a população evangélica. Em relação as outras regiões, temos que no Sul e no Sudeste o movimento é de diminuição da presença de evangélicos, numa trajetória diferente daquela existente para a população geral, que se mantém estável. Já nas regiões Centro Oeste e Norte a participação de evangélicos acompanha o desempenho da participação dessas regiões na população em geral.
Por fim, cabe destacar o caso da região Sul: se em 1940 reunia 47,6% dos evangélicos brasileiros, hoje este percentual é de apenas 13,1%. A explicação para este fenômeno certamente envolve vários fatores, aqui cabendo salientar as migrações populacionais, particularmente aquelas relacionadas à expansão agrícola que mobilizou grandes fluxos migratórios da região em direção as regiões Norte e Centro Oeste, mais intensamente a partir da década de 1960 até os anos 2000.
Conclusões preliminares
Nada leva a crer em uma intensificação do crescimento evangélico, as análises após o Censo de 1991 tem confirmado a particularidade daquela década e, a não ser que ocorra algum fato novo, o caminho é de termos um crescimento evangélico próximo ao populacional, levando a pequenas variações numéricas sem a possibilidade de grandes saltos. O que pode indicar um teto em torno de um terço da população que ou permanecerá estável ou até mesmo poderá iniciar um processo de queda, como no caso dos Estados campeões no final do século passado em relação ao crescimento evangélico e que agora dão sinal de saturação (Rio de Janeiro, Rondônia e Espírito Santo).
O gráfico 6 expressa as taxas de crescimento em cada unidade da federação, onde apenas um Estado, o Piauí com 62,5%, reproduz entre 2010 e 2022 as altas taxas de crescimento experimentadas de meados do século 20 até o início do século 21 de um modo generalizado no Brasil. E no outro extremo temos o Espírito Santo, com somente 9,6% de crescimento na última década.

Gráfico 6 – Crescimento da população evangélica por Estado, 2010-2022
O momento chave para o crescimento evangélico foi a década de 1990 e seus efeitos talvez ainda tenham se refletido nos resultados de 2010. Estes vinte anos serão lembrados como aqueles que deram início à alteração da configuração do campo religioso brasileiro. O percentual de evangélicos passou os 20% da população em 2010, mas não houve fôlego para alcançar os 30% agora em 2022 e talvez nem alcance este patamar em 2030.
Falo isso por três motivos. Primeiramente porque o seu crescimento não se dá isoladamente. Outras religiões surgem e ganham seu espaço, configurando um esperado ambiente de pluralização. Em segundo lugar porque estes números expressam dados “líquidos”, não temos informações que monitorem o número de entrada bruto ao lado da informação daqueles que optaram por não permanecer em determinada religião, só sabemos a posição de um momento que não considera os fluxos, as entradas e as saídas. O tema do trânsito religioso não foi aprofundado nos estudos sociológicos brasileiros. As pessoas que deserdaram – provavelmente concentrados entre os sem-religião – representam a principal barreira para o aumento dos índices de crescimento entre os evangélicos. Por fim, temos as próprias alterações demográficas experimentadas em nossa sociedade, com o envelhecimento da população, uma menor taxa de fertilidade e a diminuição dos processos migratórios. Em breve não teremos mais as profundas alterações populacionais vivenciadas nos últimos anos no Norte e no Centro Oeste. Sem estes saltos, as mudanças religiosas serão mais difíceis. Fora esses aspectos, também devemos lembrar que o clero católico que se vem formando nos últimos anos terá melhores possibilidades para perceber e responder à realidade pluralista instaurada.
Os números importam? Certamente sim, porém a complexidade de fatores que influenciam os fluxos e os processos que definem a pertença e a não pertença religiosa exigem uma variada gama de dados quali-quanti, estudos e a velha e boa empiria. Que este Censo contribua para que tenhamos alguma luz para a compreensão do fenômeno religioso no Brasil contemporâneo. O século 21 se depara com uma realidade de ampla pluralização religiosa em algumas das cidades brasileiras, especialmente nas localidades em que o catolicismo não é mais a maioria. Foram identificados 246 municípios em que isso ocorre, em um desses – Chuí no Rio Grande do Sul, a maioria é de pessoas Sem Religião (37,8%), nos outros 245 municípios de 21 Estados a maioria é evangélica. Essa provavelmente é a principal novidade deste Censo de 2022.
Sociólogo, é professor titular do Instituto Nutes da UFRJ e atualmente exerce a função de Diretor de Programa na Secretaria Executiva do Ministério da Educação. É coordenador pedagógico do curso Fé e Democracia para a militância evangélica brasileira, oferecido pela Fundação Perseu Abramo.