Pesquisa expõe como violência no campo brasileiro se disfarça de “tragédias isoladas” enquanto perpetua o extermínio de negros, quilombolas e sem-terra

Chacinas e Conflitos Agrários: o Estado que autoriza a barbárie
Manifestantes do MST em confronto com a polícia Foto: Reprodução/MST

Dois massacres ocorridos em 2017 – um no Pará, outro na Bahia – colocam todo o campo progressista diante de um imenso desafio histórico: como superar a violência estrutural que caracteriza o padrão de atuação das elites? É disso que trata o novo volume da coleção Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, lançado pela Fundação Perseu Abramo, em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, um chamado à reflexão coletiva para soluções concretas.

O caderno Chacinas e conflitos agrários: os casos de Pau D’Arco e do Quilombo de Iúna revela como a violência do latifúndio no país se reinventa. Diante da nova configuração, ela ressurge associada à especulação fundiária, às burocracias do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), à militarização das disputas por terra e ao discurso da guerra às drogas. As chacinas se envolvem em uma engrenagem sistemática que se perpetua sob o rótulo de tragédias anunciadas.

Em Pau D’Arco, dez trabalhadores rurais sem terra foram executados por agentes civis e militares durante uma operação que alegava o cumprimento de mandados judiciais. Uma semana depois, a única testemunha foi assassinada. Nenhum mandante foi identificado e os policiais seguem em liberdade, reforçando um padrão já documentado em outras chacinas ocorridas no campo brasileiro. Em Iúna, território quilombola na Chapada Diamantina, seis pessoas foram mortas em meio à tensão provocada pela divulgação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) pelo Incra. A versão oficial – envolvimento com o tráfico – foi desmentida por familiares, lideranças e organizações, que apontaram para o racismo estrutural que permeia o tratamento dado às comunidades quilombolas.

Entre 2011 e 2022, a pesquisa identificou 929 casos de chacinas em todo o Brasil, dos quais ao menos 101 ocorreram em áreas rurais. Dessas, apenas 13 foram reconhecidas oficialmente como motivadas por conflitos agrários. O número real, no entanto, é consideravelmente maior, uma vez que a cobertura midiática frequentemente atribui os casos a outras causas – tráfico, vingança ou latrocínio – ignorando as disputas territoriais subjacentes.

A análise revela ainda a invisibilização estatística da violência racial no campo: na maioria dos casos, a raça das vítimas nem sequer foi mencionada pelas reportagens. Quando possível, entretanto, os dados confirmam que a maioria dos mortos são pessoas negras, pobres e ligadas a ocupações precárias, como o trabalho rural informal, reforçando o que relatórios dos movimentos sociais já indicaram. O perfil se repete entre lideranças comunitárias e defensoras de direitos humanos, especialmente em territórios quilombolas ou em processo de regularização fundiária.

Os relatos colhidos pela equipe de pesquisa demonstram como o Estado brasileiro atua em múltiplas camadas para inviabilizar o acesso à terra: desde a omissão institucional do Incra e a morosidade judicial, até a execução de ações policiais armadas que resultam em massacres. Em Iúna, a regularização fundiária provocou a entrada de grileiros, especuladores e até redes do tráfico, gerando um ambiente de terror e abandono. Após a chacina, duas em cada três famílias abandonaram o território. As festas comunitárias cessaram. As escolas fecharam. E lideranças foram perseguidas e ameaçadas.

A pesquisa identifica ainda a presença de “pistoleiros” contratados para “limpar a área” — expressão frequentemente usada para justificar execuções em nome de interesses latifundiários. Em 43% das chacinas ocorridas em áreas rurais, as mortes foram praticadas por grupos organizados com planejamento prévio. Em Pau D’Arco, dos 17 policiais envolvidos, 13 chegaram a ser presos, mas nenhum foi condenado até hoje.

O estudo sugere que os conflitos agrários no Brasil não são falhas eventuais do sistema democrático, mas sua perversão rotineira. A ausência de reforma agrária, a titulação de territórios tradicionais e o combate à grilagem seguem sendo dívidas históricas com populações indígenas, quilombolas e camponesas. Essa omissão, como aponta o caderno, tem cor, território e classe social. Como lembrou uma liderança de Iúna: “a chacina não foi surpresa, foi só a parte visível do que já vivíamos há anos”.

Por isso é importante fortalecer institucionalmente as políticas de reforma agrária, demarcação de terras indígenas e titulação de terras quilombolas, especialmente para o suporte e proteção das associações e suas lideranças. Com acerto, o governo Lula avançou neste processo quanto ao Quilombo de Iuna, com a sua titularização em novembro de 2024. Contudo, precisamos sempre estar atentos e não permitir que estes eventos de extrema violência colonial ocorram.