Na entrevista, a escritora compartilha sua visão sobre a literatura como um espaço de resistência e cura, refletindo sobre o processo de escrita como um ato de dar voz ao invisível. A autora também discute o protagonismo das mulheres negras em suas obras, desafiando a marginalização histórica

'Ainda sonho com um momento em que vou poder parar para só escrever', diz Conceição Evaristo aos 78 anos
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“A literatura é um lugar de resistência”, afirma Conceição Evaristo, 78, poetisa, ensaísta e romancista cuja obra se construiu no entrelaçamento da vivência periférica e da luta das mulheres negras e do avanço no estudo acadêmico. A frase, carregada de significado, sintetiza uma trajetória em que cada palavra, cada poema e cada história contada não só ecoam as histórias de quem vê e enxerga o mundo, também reverbera a força de quem resiste. 

Nesta entrevista à Focus Brasil, Evaristo não apenas reflete sobre a literatura enquanto ferramenta de transformação, mas se debruça sobre os desafios aos quais se lança diante de uma sociedade que ainda insiste em marginalizar e perpetuar injustiças sociais, de raça e de gênero.

Ao falar sobre seu processo de escrita, Evaristo revela a escrita como um espaço íntimo de encontro consigo mesma, um espaço onde se permite a vulnerabilidade. ‘A escrita, para mim, é um ato de cura’, compartilha. A autora ressalta que o fazer literário nasce, muitas vezes, do silêncio, da introspecção e da necessidade de expressar aquilo que é invisibilizado pela sociedade. 

“Escrever é, antes de tudo, dar voz àquilo que é silenciado, é um grito que sai de dentro e ecoa no mundo”, explica, destacando o poder de palavra que ela considera vital para a construção de um imaginário que, até então, não teve vez nas grandes narrativas da literatura.

Evaristo também reflete sobre a construção de suas personagens, as mulheres negras, cujas histórias são entrelaçadas com as suas próprias. “Elas são como eu, mas também são muitas mulheres que conheci, mulheres que carrego dentro de mim, mulheres que representam a luta constante pela dignidade”, comenta, desafiando as convenções da literatura que historicamente excluíram esse grupo da representação central. 

Para Conceição, a escrita é, além de resistência, uma reinterpretação do real, onde é possível recriar mundos possíveis e imaginar um futuro em que a presença dessas mulheres não seja mais a exceção, mas a regra. Sobre a força que vem da narrativa e como a literatura se torna um campo fértil de contestação, Conceição reflete que “Escrever é um ato de força, de resistência”, diz, ao mesmo tempo em que denuncia a falta de representatividade nas esferas da cultura. 

“A arte não resolve sozinha a situação de muitos. Suma mulher negra de 78 anos que a literatura coloca num lugar de proeminência, mas a maioria das mulheres negras não”. 

A escritora também não se esquiva das questões políticas que permeiam seu trabalho. “A literatura não pode ser neutra. Ela é sempre posicionada, sempre engajada”, afirma, enquanto discorre sobre o papel da arte na transformação social e na criação de um futuro mais igualitário para as próximas gerações”. 

Trajetória

Conceição Evaristo é uma das vozes mais potentes da literatura contemporânea, ou afro-brasileira, como ela própria define. Com uma obra marcada pela recriação das suas memórias e pela crítica social, ela é autora de livros como Ponciá Vicêncio e Becos da Memória, que trazem a memória e a luta da mulher negra à tona. 

Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, a autora teve uma infância marcada pela oralidade e pelo afeto familiar, sendo essas experiências a base para muitos de seus textos. Sua escrita se destaca pela riqueza de detalhes e pela complexidade de suas personagens, que, como ela conta, “não imitam a vida, mas a vida imita essas personagens”. Ao longo de sua carreira, Conceição tem sido uma referência para escritoras negras e suas obras oferecem um espelho para uma nova geração de mulheres e homens que buscam se identificar e se inspirar em sua trajetória. 

É mestre em Literatura brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela UFF. Como professora, passou por instituições como Middlebury College, a PUC-Rio, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Leia a íntegra da entrevista:

Depois de testemunharmos mais uma tentativa de golpe de estado militar no Brasil, temos a alegria de ver o filme “Ainda estou aqui”, que conta uma história da ditadura militar brasileira, ser indicado a melhor filme, feito inédito, melhor filme estrangeiro e Fernanda Torres como melhor atriz no Oscar. Embora isso não represente a realidade do cinema brasileiro, é claro que levantou uma onda de otimismo que tomou conta dos brasileiros dentro e fora das redes e trouxe à baila novamente o discurso de que a “a arte salva”, “a literatura salva”. Por que cabe aos artistas, à arte, sempre esse papel da resistência? 

Eu acredito que se coloca muito que a cultura salva, que a arte salva, em primeiro lugar, porque o artista é um sujeito utópico, ele sonha, então essa possibilidade de sonhar, de acreditar, de lutar, é própria do artista, é própria da arte. Talvez haja essa tendência de pensar, vou falar da literatura, em arte como meio de salvação, assim como o fiel acredita na religião e faz da religião essa possibilidade, se não de salvação, mas uma possibilidade de esperança, de crença, de ter algo para se agarrar. Acredito que a arte é isso. A gente tem que ter alguma coisa para se agarrar. Alguns se agarram na religião, na fé, outros se agarram na arte. Agora, ao mesmo tempo que é um discurso que alimenta, ao mesmo tempo que é uma utopia, que te faz crer que a arte pode construir um mundo justo, é também um lugar de conforto, porque, de certa forma, quando digo, por exemplo, a cultura salva, a literatura salva, o que me vem à cabeça? Eu posso até dizer, em termos pessoais, que a literatura me salvou, a arte me salva. É a literatura que me coloca aqui. Se eu não fosse da área da literatura, se eu não fosse da área da arte, eu não estaria aqui, com certeza. Então, cria uma zona de conforto para quem a arte possibilitou essa salvação ou possibilitou um lugar melhor de inscrição na sociedade. Mas isso ainda não é para todos. A arte não resolve sozinha a situação de muitos. Sou uma mulher negra de 78 anos que a literatura coloca num lugar de proeminência, mas a maioria das mulheres negras não. É muito bom, é reconfortante pensar que a arte salva, que a cultura salva, mas não sozinha. Numa sociedade como a nossa, que é uma sociedade historicamente injusta, não são todos os artistas que estão salvos. Não são todos os escritores ou todas as escritoras que têm essa visibilidade que eu tenho, principalmente partindo de uma sociedade também racista, como é a sociedade brasileira. É um discurso que tem sentido, mas ele também não é um discurso completo. A arte só não dá conta de resolver questões da sociedade. E tanto que ela não dá conta, porque você vai ver, por exemplo, artistas de uma potência muito grande, de uma arte que convoca, mas como sujeito, como cidadão, são pessoas extremamente irresponsáveis. 

No seu caminho não havia muitos espelhos em que a senhora pudesse olhar e ver refletir essa trajetória que você construiu. Havia o afeto, havia a sua tia contando histórias, a sua mãe contando histórias, a oralidade, que você nos conta. A sociedade brasileira reconheceu a sua literatura tardiamente, você fala muito disso. Para as escritoras que chegam, para as pessoas que sonham e que a arte convoca, a literatura convoca, a senhora sente que caminha deixando aquilo que não encontrou?

Sim, sem modéstia alguma, eu acho que a minha trajetória vem inspirando, não só a trajetória, porque uma das minhas preocupações também é que as pessoas não fiquem presas só à minha história de vida, mas que as pessoas leiam o meu texto, que as pessoas conheçam a minha obra. Eu não posso negar essa história de vida e nem quero negar, pelo contrário, eu sempre quero afirmar essa história de vida. Acho que hoje, tanto mulheres quanto homens na área de literatura, me têm como referência, assim como eu tenho como referência Carolina Maria de Jesus, pela audácia dessa mulher de se apropriar da língua portuguesa e criar um texto muito dela. Então, hoje tem outras escritoras também, não só eu, como Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Lia Vieira, temos outras escritoras negras que servem de inspiração. Muito tarde eu fui descobrir, por exemplo, Maria Firmina dos Reis. Até então eu conhecia somente Carolina Maria de Jesus. Acredito que hoje tem uma plêiade de escritoras negras que essa geração que está aí se formando, que está aí também escrevendo, pode se inspirar. E que bom que a vida me permitiu, me permite também ser uma inspiração positiva para quem está aí e para quem deseja estar, para a produção de outras escritoras e de outras literaturas.

No sentido da convivência com a escrita, quais obras mais lhe impactaram, que a senhora mais se identifica? A segunda edição de ‘Ponciá Vicêncio’ houve uma alteração no texto. Você costuma revisitar sua obra?

Se eu for pensar uma obra que mais se identifica comigo, mas que não é a minha biografia, não é uma autobiografia, seria Becos da Memória (2006. Mazza Editora), pela personagem da menina, da Maria Nova, que sonha, que descobre que a vocação dela é ser escritora. Tem pessoas da minha família ali, pessoas muito próximas, minha mãe, minha tia, tio Totó e outras personagens que eram vizinhas, que eu ficcionaliza. Eu tenho dito que Becos da Memória é um livro em que nada que está escrito é verdade, mas nada que está escrito é mentira. Eu digo que são ficções da memória.  

É um trabalho de linguagem muito bem construído e detalhado…

Muito detalhado. Porque é uma das coisas também que eu não esqueço e faço questão sempre de estar lembrando que estou trabalhando com a arte da palavra. Então, busco muito trabalhar essa palavra, trabalhar a linguagem, porque eu tenho consciência disso, que estou trabalhando com a arte da palavra. Então, Becos da Memória é um livro não tem como negar que Maria Nova tem muita coisa da minha infância, tem muito da minha maneira de pensar o mundo. Em vez de dizer que eu imito a personagem, vou dizer que a personagem me imita. Então, Maria Nova me persegue, e por isso Maria Nova se assemelha comigo. Agora, normalmente eu não leio muito o que eu já publiquei. Ponciá Vicêncio (2003, 1ª edição, Mazza) foi um livro que, quando eu o publiquei, eu não gostei – e foi o primeiro livro que eu publiquei, embora Becos da Memória eu tinha escrito bem antes. Mas aí, quando as pessoas liam Ponciá Vicêncio, os leitores, as leitoras, comentavam comigo e falavam que tal parte era tão linda, e eu ia exatamente naquilo que o leitor leu, e eu relia. Aí eu comecei a achar bonito também, contaminada até pela reação das pessoas que liam. Eu falava, gente, até que isso é bonito mesmo! Eu aprendi a gostar de Ponciá Vicêncio. Eu fui perceber que o momento que eu escrevi também tinha sido um momento muito especial na minha vida, foi quando eu tinha acabado de ficar viúva. Então, fui vendo que eu canalizei, talvez, a minha dor para escrever, embora seja uma história totalmente diferente do fato que eu estava vivendo no momento. Agora, o livro que eu acrescento, não foi Ponciá Vicência, foi um dos últimos, que é Canção para Ninar Menino Grande. Em Canção para Ninar Menino Grande (2022, Pallas), realmente, numa segunda publicação, esse livro vem com um enredo maior. Eu coloco outras vozes, porque foi um livro que, no primeiro momento, eu tinha feito com pressa, foi um livro que eu já tinha começado, mas me pediram para entregar porque eu ia ser homenageada numa feira, e aí, como escritora homenageada, eu tinha que ter o livro publicado pela feira. Como eu já tinha começado a escrever, eu dei por acabado. Relendo, eu vi que tinha algumas personagens que eu só citava, então, eu quis dar fala a essas personagens. E como? Em um texto científico é mais fácil, uma nova descoberta. Eu culpabilizei a narradora. A narradora é que chega dizendo “olha, a Juventina falou eu não escutei direito, que pena” e coisa e tal. Então, a culpa ficou com a narradora. Aí, a narradora sente necessidade de contar parte da história que ela não tinha contado. 

Assistir suas entrevistas e ler os seus livros traz um aconchego de Minas Gerais, gera identificação com as palavras utilizadas, bem mineiras. Quando a senhora está construindo uma nova obra, como trabalha o processo de criação? Sei que muito vem da oralidade, da recriação das suas experiências na ficção, mas no talhar da palavra, na linguagem escolhida, você acabou de dizer dessa reescrita que você encontrou uma solução fantástica que foi trazer a narradora dizendo, “olha, eu errei, tá”? Como é esse processo da escrita, como é para você essa mágica?

Olha, primeira coisa, eu acho que o que a gente faz a gente tem que gostar muito para se dedicar. Eu tenho uma irmã que é uma exímia cozinheira, a Deca, ela transforma qualquer comida. Ela transforma, por exemplo, um chuchu, que aqui no Rio o pessoal come muito com camarão, mas na verdade, o que as pessoas gostam é do camarão, o chuchu chega de repente. A Dequinha cozinha muito bem, ela faz um chuchu com chuchu, e fica gostoso, pois ela gosta. Ela gosta, ela chega na sua casa, ela já pergunta “tem alguma coisa que eu possa fazer lá na cozinha?” Ela se entrega ao ato de cozinhar. Qualquer coisa que a gente faça, você tem que fazer com vontade, com desejo. E escrever, para mim, é esse desejo, inclusive desde pequena. Eu gosto, e eu lamento, porque eu tenho muita coisa para escrever. Cada história que eu ouço, cada cena que eu observo, cada música que eu ouço, cada voz. Então, eu tenho muita coisa para escrever. Inclusive, esse ano, quem está perto de mim diz que eu sou mentirosa, não acredita mais, porque todo ano eu falo que vou me dedicar à escrita. E esse jogo, esse trabalhar com a palavra é muito envolvente, porque acho que todo mundo, em grau maior ou em grau menor, tem essa noção de que a palavra não dá conta. No fundo, eu acho que cada ser é um sujeito mudo, é um sujeito que não consegue verbalizar tanto e aí você fica observando a linguagem de sinais. Uma das coisas também que me chama muita atenção, não sei se você já percebeu, como as pessoas que falam por linguagem de sinais, como elas gesticulam o tempo todo, e muito rápido. Talvez eles busquem também, pelo próprio gesto, expressar tudo que eles não se dão conta. O ser humano não se dá conta como a gente, com a palavra, procura também expressar tudo, então, esse exercício da escrita, ele é sedutor, porque ele exige mais esforço do que a oralidade. Porque na oralidade, eu dou adeus, eu olho nos seus olhos, eu faço silêncio na minha fala, e você observa esse silêncio, na escrita, não. Acho que a escrita é um ato desesperante para agarrar a palavra. Como talvez, até lembrando de outros personagens meus também, como talvez eu tenha consciência desse ato desesperador de querer dizer, de querer escrever, então, isso me seduz muito. Eu quero fazer isso da melhor maneira possível e da melhor maneira possível, antes de tudo, ela tem que me satisfazer porque se eu achar que está bom para mim, eu vou achar que o outro vai entender o que eu quero dizer. O ato de escrita, para mim, é um ato necessário, vital, mas que eu nunca pude me dedicar totalmente, porque, ao mesmo tempo, também tem o apelo da vida, tem o cotidiano, mas eu ainda sonho um momento que vou poder parar para só escrever.

A senhora apresenta a sua literatura como uma literatura afro-brasileira. Recentemente, o linguista português Fernando Venâncio disse que em algumas décadas o idioma falado no Brasil se chamaria brasileiro. Qual é a sua opinião sobre essa previsão e sua posição sobre o tema?

Eu acho que isso já acontece. Esse português falado no Brasil, poderia ser chamado brasileiro, um português abrasileirado e abrasileirado tanto com marcas de línguas africanas na língua portuguesa como com marcas de línguas indígenas na língua portuguesa. Quando você chega em Portugal, ou nem precisa chegar em Portugal, mas, por exemplo, determinadas conferências em língua portuguesa falada em Portugal, mesmo você prestando atenção, algumas coisas você não consegue captar com rapidez. É claro também que Portugal tem os seus acentos linguísticos, às vezes, em determinada região tem um acento linguístico e em outras tem outro e aqui no Brasil isso é muito comum, inclusive agora inventaram um tal de mineirês, uma língua com acento mineiro. Agora, sem sombra de dúvida, acho que o português falado no Brasil, com todas essas misturas, é um português que marca um diferencial do português falado em Portugal. E é interessante porque mesmo quando a gente olha as análises de Gilberto Freyre, que foram positivas, mas a gente olha com certo cuidado, principalmente porque há uma certa formatização dessa relação entre o senhor e o escravo, o Gilberto Freyre vai dizer da diferença do português falado no Brasil e o português falado em Portugal, vai dizer das influências das culturas africanas, das línguas africanas, no acento do português falado no Brasil. E, Lélia Gonzales, dá esse nome de pretoguês. Ora, e se a gente pensa na literatura, se a gente pensa hoje no texto escrito, e isso me chama muita atenção, é alguma coisa que gostaria de estudar a fundo, mas não sou linguista, embora isso apareça nas minhas apresentações, na verdade, sou da literatura, da graduação ao doutorado, mas me interessa muito também pensar a apropriação da língua portuguesa a partir das classes populares. E, para mim, uma autora, uma escritora que me chama muita atenção é justamente Carolina Maria de Jesus. Como Carolina se apropria da língua portuguesa, como ela desenvolve essa língua portuguesa, inclusive com um acento mineiro também muito grande. Fizemos uma publicação junto com a filha dela, Casa de Alvenaria, fizemos questão de não mexer no texto da Carolina. Isso causou também uma discussão muito grande. O que a gente pensava:  revisar o texto de Carolina? Porque não era uma questão de revisão, quando penso no texto da Carolina, não é revisão, é uma questão de correção. É uma outra história. Eu escrevo o texto, não gosto de dar logo o meu texto, eu falo, pode revisar, corrigir, não, porque aí é uma outra história, se você fala correção, você supõe erro. Não corrigimos do jeito que as pessoas queriam, o texto de Carolina. E outra, nessa apropriação da língua portuguesa, tanto do ponto de vista da oralidade como do ponto de vista da escrita, eu gosto muito também de observar as letras do rap. Porque há uma apropriação da língua portuguesa e uma apropriação, que você poderia dizer também, uma apropriação consciente. Muitos dos meninos que fazem rap, por exemplo, eu acho que eles conhecem a língua que seria a língua padrão, aquela língua que é ensinada na escola, mas eles querem se apropriar dessa língua e brigar com essa língua. Eu acho que isso já é o próprio espírito de criação do sujeito. E acho que a gente pensar também nessa língua brasileira, a língua é dinâmica, ela muda, quantas gírias a gente falava quando era pequeno ou mais jovem, e essas gírias não existem mais? E quantas gírias existem hoje que uma pessoa da minha idade tem que pedir explicação? Eu acredito que tem esse dinamismo da língua também e isso também é tão perceptível, que nos países africanos em que a presença portuguesa foi mais forte, a gente vai ver apesar das influências das línguas africanas, nós vamos ver o português com sotaque mais próximo de Portugal do que nós brasileiros.

Já que a senhora citou a Lélia Gonzalez, quais as autoras que estejam produzindo textos sobre feminismo decolonial que a senhora recomendaria?

Eu reconheço uma autora também da mesma geração de Lélia e que hoje também tem sido muito citada aqui no Brasil, que é Beatriz Nascimento. Acho que a Beatriz, como historiadora precisa ser revisitada, revisitada sempre, principalmente se a gente quiser entender essa história. Eu gosto muito também da contemporânea, da Sueli Carneiro, que está aí com toda potência. Aliás, falando em Sueli Carneiro, eu não posso deixar de registrar que a gente voltou de uma viagem ao continente africano e ela está no processo de recebimento de cidadania africana através do Benin, essa sempre foi uma luta do movimento negro e o governo de Benin está reconhecendo, dentro de todo o processo também de reparação, de reencontro, está reconhecendo a cidadania africana para Sueli Carneiro. Tem também, Denise Ferreira da Silva, autora de Dívida Impagável. Outro nome é Cida Bento com os estudos sobre branquitude, um texto interessante para ajudar a pensar a sociedade brasileira por meio de uma perspectiva negra, por meio de uma perspectiva popular. Nós temos obras interessantíssimas para pensar a sociedade brasileira, mas sempre a partir de uma perspectiva, na maioria das vezes, dos homens brancos. Não é que não faz sentido, faz, mas pensar a sociedade brasileira, se ela é uma sociedade plural, também, essas vozes, como as vozes indígenas hoje, o pensamento indígena hoje, também, tem sido preponderante para pensar o Brasil.

As coisas mudaram um pouco, mas mudaram muito pouco, você costuma dizer. Ainda há um longo caminho. Temos exceções, como a senhora própria se coloca, mas ainda lidamos com um mercado de elites, um mercado de cultura, o editorial também, criando uma cultura de resistência. Qual a luta possível, Conceição, contra esse establishment que domina a literatura brasileira, que precisa tanto de âncoras, precisa tanto que alguém puxe, precisa tanto que alguém te ajude? Você que luta diariamente, qual a sua avaliação do mercado editorial?

Olha, a luta é possível, sem sombra de dúvida, acho que a luta é possível, se ela não é possível, nós temos de encontrar meios de tornar essa luta possível. Agora, eu acho que o cruel é o resultado. Se a gente não ficar tomando fôlego sempre, o resultado é muito pouco. Algumas coisas a gente ainda faz de uma maneira alternativa. E por que a gente faz de uma maneira alternativa? Porque a gente não tem a força do capital. Eu conheço, por exemplo, o próprio Grupo Quilomboge, que é um grupo que há 45 anos publica cadernos negros, é pobre de marré de si. Cada escritor tem que pagar uma cota, uma cota que é dividida em cinco prestações. E acontece muitas vezes, na terceira, na quarta prestação, acontece alguma coisa que a pessoa não pode pagar. Para mim, aconteceu várias vezes. Aí o processo caminha, a dura apenas, então uma editora pequena, uma mídia pequena, é como você falou, ela está lutando contra o capital de uma luta mil vezes maior. Mas quando falo com você que é possível é pelo seguinte: porque hoje, se tenho essa projeção, vim de editoras pequenas, vim de Cadernos Negros, vim de Mazza. Cadernos negros é um coletivo de São Paulo, só de escritores negros. Minhas primeiras publicações aconteceram com a Mazza Edições, que é uma editora de uma mulher negra, lá de Belo Horizonte, vim da Nandyala, de uma editora negra de Belo Horizonte e aqui no Rio, quem me publica é a editora Palas, que sem sombra de dúvida deu um impulso à publicação, à distribuição de minha obra e venho da editora Malê, que é uma editora também de um homem negro. E são editoras que se formam devido à dificuldade de uma autoria negra no mercado editorial.

São quilombos editoriais…

Justamente, são quilombos editoriais. Então, aí eu digo, a luta é possível. Agora, os resultados são muito recentes. Os livros dessas editoras chegarem, por exemplo, aos grandes concursos literários, é muito recente. Ano passado, a Malê chegou com um livro no Jabuti, não me lembro se a Nandyala já chegou. Então, lógico, se tem um livro ali na livraria com o título de uma grande editora e tem um livro lá com o título da Malê, as pessoas são seduzidas a comprar esse da grande editora, que também é muito bom, mas tem essa luta, porque o capital também, vocês sabem disso melhor do que eu até, o poder do capitalismo ele forma preferências, ele forma gostos, ele forma escolhas. Forma o consumo. E aí, por mais que a gente conquiste, por mais que tenha tido um avanço, falta ainda muita coisa.

Para encerrar: “palavra”, que apareceu por aqui, qual a palavra para 2025?

Lucidez. 

Por quê? 

É porque nós estamos, no momento, muito confusos. Muito confusos. E aí eu vou dizer um discurso que para mim foi totalmente louco, mas louco não do ponto de vista da positividade, da loucura, ela tem também uma positividade. Mas o discurso do Donald Trump. Se uma parte do mundo não tiver lucidez, estaremos todos perdidos. Eu acho que, mais do que nunca, as sociedades precisam se organizar com lucidez. Porque a loucura está solta.