Dona do Instagram e Facebook retirou ferramenta de checagem de suas redes para atender aos anseios imperialistas do presidente estadunidense; especialista explica ponto a ponto a decisão 

Dona do Instagram e Facebook retirou ferramenta de checagem de suas redes para atender aos anseios imperialistas do presidente estadunidense; especialista explica ponto a ponto a decisão
Fotos: Shutterstock

Antes mesmo de tomar posse, ocorrida nesta segunda-feira (20), o presidente estadunidense Donald Trump já havia dado uma mostra de como será seu segundo mandato à frente da maior economia do mundo. 

Além dos delírios imperialistas, como comprar a Groenlândia e anexar o Canadá, o mandatário ganhou um forte aliado para seguir como o porta-voz da extrema direita global e manter o controle da narrativa nas redes – isso sem ter de se preocupar se a informação é verdadeira ou não.

O mais novo cordeiro do exército trumpista é Mark Zuckerberg, dono do Facebook, Instagram e Threads, que decidiu retirar a checagem de notícias falsas de suas redes com uma justificativa que beira o absurdo. Num dos trechos de seu pronunciamento, carregado de elogios ao republicano eleito, Zuckerberg disse que as agências de checagens são enviesadas e mais atrapalham do que ajudam. Nenhum especialista apareceu para concordar com ele.

Pelo contrário. Quem entende das ferramentas utilizadas pelas redes para conquistar audiência, o famoso algoritmo, tem mostrado enorme preocupação com os efeitos globais das chamadas fake news e suas consequências na disputa democrática de países como o Brasil, que já comprou a briga e cobra explicações da big tech.

É importante lembrar que as mudanças ocorrem inicialmente somente nos Estados Unidos, mas tudo indica que as redes perderão a checagem gradualmente em todo o mundo. 

A Revista Focus conversou com Veronyka Gimenes, travesti, hacker, fundadora da Código Não Binário, do Núcleo Digital e do Podcast Entre Amigues, que desenvolve plataformas digitais desde 2008 para saber o que de fato muda com as decisões da Meta.

“O anúncio inicial de Zuckerberg teve impacto global e criou um horizonte terrível, especialmente para grupos vulneráveis. No comunicado, o fundador da Meta claramente se posiciona contra judiciários e governos mais soberanos, como o brasileiro, que estão finalmente agindo para evitar o pior cenário causado pelo potencial destrutivo desses algoritmos, especialmente após a pandemia. Embora o foco imediato da nova política seja fora do Brasil, a resposta da Meta à Advocacia Geral da União (AGU, que contou explicações da Meta) indica uma tentativa de conciliar os interesses globais da empresa e a governança local”, explicou.

Para Veronicka, essa implementação parcial pode ter sido apenas uma estratégia para ganhar tempo e reduzir o desgaste público, já que em todo o mundo, aumentaram as buscas sobre como desinstalar plataformas da Meta.

“A comunidade LGBTQIA + também reagiu fortemente à possibilidade de que a “política da comunidade” da Meta facilite mais ataques criminosos contra nós. A moderação já funciona muito mal: grupos vulnerabilizados continuam sendo amplamente atacados, e o discurso de ódio circula livremente – documentos internos vazados no Facebook Papers indicaram que a inteligência artificial da Meta detecta e remove menos de 5% das publicações contendo discurso de ódio na plataforma Facebook, por exemplo”.

a especialista acredita, ainda, que  recomendação de conteúdo político (que havia sido barrada no ano passado) e a flexibilização no combate ao discurso de ódio já chegaram ao algoritmo brasileiro e pode ter influenciado o enorme alcance da campanha mentirosa sobre uma suposta taxação do PIX nos últimos dias, que gerou o recuo do governo federal.

Muito além da checagem

Quem estuda colonialismo, especialmente o digital, sabe que o problema vai além. “Essas plataformas funcionam dentro de um modelo extrativista, que explora pessoas, dados e economias locais. Tem função geopolítica e ideológica. Não por acaso nesse exato momento os EUA estão banindo o TikTok (chinês) de seu território. Compreender essas dinâmicas é essencial para enfrentar os desafios que ela impõe.

O que a empresa ganha com isso?

Notícias falsas, desinformação e discurso de ódio geram ganhos financeiros para empresas como a Meta e seus investidores. Isso é comprovado pelos Facebook Papers, vazamento que mostrou os bastidores da empresa.

 “O algoritmo da plataforma amplifica conteúdos polêmicos, incluindo discursos de ódio, para aumentar engajamento. E conteúdos conservadores carregam um viés ideológico alinhado com privilégios de classe, raça e gênero, e esses privilégios se traduzem em mais recursos financeiros para publicidade e promoção de conteúdos. Isso cria uma desigualdade de alcance. 

Um exemplo próximo é o Brasil Paralelo no YouTube, que, com uma produção altamente profissionalizada e financiamento direcionado, consegue ocupar espaços desproporcionais na plataforma, promovendo narrativas que reforçam valores conservadores”, esclarece Veronika.

Além disso, prossegue ele, desativar iniciativas como checagem de fatos e moderação reduz custos operacionais significativos, eliminando a necessidade de equipes especializadas. “A mudança recente da Meta, que transferiu parte de suas operações da Califórnia para o Texas – um estado mais conservador –, é emblemática desse movimento.

Contudo, é fundamental entender, nesse momento de declarações como “é preciso mais energia masculina nas empresas” como o Zuckerberg deu, que há outros tipos de ganhos, que o capitalismo não é um sistema isolado; ele se sustenta de outras estruturas sociais, como o patriarcado, a branquitude e as normas de gênero e sexualidade. As recentes mudanças nas plataformas refletem a defesa dessas bases estruturais”.

Outra prova da estratégia da Meta é o abandono de programas de diversidade e inclusão pelas grandes empresas não é um desvio, uma anomalia, mas uma reafirmação dos valores que sustentam essas corporações. “Como o próprio Zuckerberg disse, um “retorno às raízes”. Só que não é um retorno somente às raízes da empresa em si”.

Saída do armário 

Para Veronicka,  os movimentos recentes com foco em figuras como Zuckerberg ou Elon Musk, o é uma “saída do armário” ideológica dessas pessoas, desses homens cisgênero, que por serem super poderosos e concentrarem muito poder, acabam por impactar o rumo das mega corporações que dirigem e consequentemente as vias de comunicação de bilhões de pessoas consumidoras de seus serviços e produtos. 

“Esses homens estão se identificando mais abertamente com o conservadorismo, extremismo e a masculinidade hegemônica. Se sentem autorizadas por movimentos como a eleição do Trump. Um ex-advogado da Meta inclusive falou recentemente logo após abandonar o cliente que Zuckerberg parece estar sofrendo uma “crise de meia idade” ao se render a “masculinidade tóxica e a loucura neonazista”.”. 

Como se preparar para o fim da checagem 

Crises como essa frequentemente geram debates na esquerda sobre abandonar as redes sociais, seguidos pela dúvida de como nos comunicar com a população. Esse curto-circuito precisa ser superado.

É o que pensa Veronicka. “Em nosso trabalho na Código Não Binário e no Entre Amigues, temos procurado aumentar as vozes dissidentes desses sistemas todos e a sua influência online, inclusive usando as redes sociais da Big Tech, que é onde todo o mundo está – já que eles compraram e privatizaram todos nossos principais territórios digitais e nos viciaram em seus algoritmos”, esclarece.  

Para a hacker é Importante também continuar trabalhando, como ela própria tem feito no Núcleo Digital desde 2008, na criação de plataformas alternativas, que sejam livres, abertas, descentralizadas, cooperativas, públicas.

“Se organizar em coletivos, setoriais de partidos (PSOL e PT possuem grupos ativos), movimentos de direitos humanos, digitais, de defesa da pessoa consumidora, coalizões (como a Coalizão Direitos na Rede), também é muito importante nesse momento (…) É hora de pensar em software público, livre e aberto, como resposta aos modelos corporativos que priorizam o lucro em detrimento de valores democráticos.

Big Techs com diversidade

Ampliar a presença de pessoas diversas (em classe, raça, gênero, neurodivergência, deficiência, etc.) nas Big Techs pode ser um caminho importante para a contenção de danos, segundo Veronicka.

“Um exemplo disso é o CEO da Apple, cuja orientação sexual (gay) contribuiu para conter parte da recente onda de ataques à diversidade, recusando mudanças nesse sentido na empresa. Outro exemplo foi o protesto de pessoas programadoras do Google, se rebelando contra o Projeto Nimbus e seu contrato com Israel”.

Notas da comunidade funcionam?

Quando anunciou o fim da checagem em suas redes, a Meta explicou que a ferramenta “notas da comunidade” cumprirá esse papel. A hacker discorda. “É importante escapar da falsa dicotomia, do falso binário, que a Meta nos coloca com o “sai a checagem de fatos e entram as notas da comunidade”. Esse é um falso dilema. Precisamos de uma abordagem que inclua múltiplos recursos para combater desinformação e discursos de ódio. Embora as notas da comunidade possam parecer uma solução democrática, estudos mostram que elas não são eficazes em combater a desinformação em larga escala”.

A solução, prossegue, é que a checagem de fatos seja mantida e expandida. “Como está hoje parece ser algo implementado para cumprir exigências legais, e não um esforço genuíno para corrigir o rumo da plataforma. No final das contas, o problema é o conflito entre essas iniciativas e o modelo de negócio e a ideologia da empresa e das pessoas, que são intrinsecamente incompatíveis com o combate efetivo à desinformação e ao discurso de ódio”.

Quem é Veronicka Gimenes

Entenda o que está em jogo na parceria Meta e Trump
Foto: Reprodução/MyBio

Veronyka Gimenes é travesti, não binária e hacker. Especialista em Tecnologia, Software, Política e Diversidade. Atua no front contra a extrema-direita e colonialismo com comunicação popular digital (ex. Memes) alcançando milhões de pessoas por mês. É da Setorial de Tecnologia do PSOL, que ajudou a fundar. Participou das principais eleições desde 2012, como as de Haddad, Boulos e Lula. 

Fundou coletivos como a Casa de Cultura Digital de Porto Alegre, o Núcleo Digital e Código Não Binário. No Núcleo, desenvolve desde 2008 tecnologias para o setor público e terceiro setor como a plataforma GestãoUrbanaSP da Prefeitura de São Paulo. Na Código, desde 2022, faz tecnologias LGBTQIA+ como o podcast que é âncora, o Entre Amigues. Já foi premiada pelo World Summit Award, Projeto Covid19 Adesampa e ONU Habitat.