Padre Ricardo: denúncias contra trabalho escravo em fazenda da Volkswagen durante a ditadura levam a ação no MPT
Ação Civil Pública foi embasada nas denúncias de padre Ricardo Rezende que atuava na Comissão Pastoral da Terra da região na década de 1980
A Volkswagen do Brasil foi acionada na Justiça pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em um processo por trabalho escravo em uma de suas propriedades, a Fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia (PA), durante as décadas de 1970 e 1980. A ação civil pública, protocolada na quarta-feira, 4/12, pede que a empresa assuma a responsabilidade pelos casos e pague R$ 165 milhões por danos morais coletivos.
Após as investigações, que revelaram jornadas exaustivas, servidão por dívida, e a existência de alojamentos insalubres, o MPT promoveu cinco audiências entre 2022 e 2023 com a empresa, sugerindo a assinatura de um termo de ajuste de conduta. No entanto, a Volkswagen se retirou das negociações em março de 2023.
Além da reparação financeira, o MPT exige que a Volkswagen implemente medidas para combater o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e outras violações de direitos humanos em suas cadeias de suprimento.
O procurador do Trabalho responsável pelas investigações, Rafael Garcia Rodrigues, destacou que as evidências obtidas comprovam graves violações de direitos humanos, e que os responsáveis agiram deliberadamente e com motivação discriminatória. A Fazenda Volkswagen, que se estende por 140 mil hectares, foi beneficiada por recursos públicos e incentivos fiscais.
Arquivo reúne 40 anos de pesquisa
O MPT investigou o caso após receber documentos sobre condições degradantes de trabalho na fazenda reunidos pelo padre Ricardo Rezende, da Comissão Pastoral da Terra, após mais de 40 anos de espera.
A primeira denúncia organizada pelo padre foi feita no início da década de 1980, através de uma coletiva de imprensa convocada pelo então Secretário Geral da CNBB, Dom Luciano Mendes de Almeida, lembra ele. “Acontece que os jornais não publicaram nada, mas uma pequena notícia nas páginas secundárias do jornal O Globo, foi lida pela imprensa internacional e acabou repercutindo na Alemanha, na França, na Itália, nos Estados Unidos, no Japão, teve uma repercussão internacional, mas não no Brasil”.
Para o padre Ricardo, embora houvesse alguma abertura naqueles momentos finais da ditadura, o silêncio da imprensa foi motivado pelo poder financeiro da Volkswagen. “Era uma empresa que fazia muita publicidade naqueles veículos”, conta. “Eu recebia telefonema de jornalistas de diversos países do mundo, alemães, ingleses e americanos. Houve, sim, uma repercussão internacional. Mas no Brasil não houve nada”.
A luta de um padre contra uma multinacional
O padre Ricardo viveu 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia, no Sul do Pará, trabalhando na Comissão Pastoral da Terra (CPT) e hoje é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, coordena um grupo de pesquisa sobre este assunto e colabora com o poder público na denúncia e na erradicação do trabalho em condições análogas à escravidão.
Durante 18 anos, viveu sob ameaças constantes pelos crimes que denunciava. “Meu lugar social mudou. Eu era muito ameaçado, especialmente em função dos conflitos fundiários, mas foram assassinados muitos trabalhadores rurais e lideranças”, revela.
Padre Ricardo recorda de alguns nomes com os quais conviveu e que estiveram presentes em sua ordenação sacerdotal. Entre elas estão os advogados, Paulo Fonteles e Gabriel Pimenta, a irmã Dorothy Stang, padre Josimo Tavares, “várias pessoas que estavam presentes em minha ordenação em 1980 foram mortas ao longo dos anos. As principais razões pelas quais fui ameaçado estavam ligadas aos conflitos fundiários”, explica.
A propriedade de fazendas por grandes empresas era uma prática comum. “A gente tem uma relação, no grupo de pesquisa, de mais de mil fazendas no sul do Pará que se envolveram com trabalho escravo ao longo dos anos”, explica.
O número de vítimas pode ser bem maior, aponta. “Estou discutindo com professores da Universidade Federal do Sudoeste do Pará, da Universidade Federal também do Pará e Universidade Estadual do Sudoeste do Pará, que é necessário ir atrás das vítimas, não só da Volks, mas de outras grandes empresas que atuavam na região e que naquela época também sobre elas se falava em trabalho escravo”.
Muitas das vítimas do período também não estão mais vivas para serem indenizadas.
Para o pesquisador, a reparação financeira deve vir acompanhada de um pedido de desculpas. “Possivelmente, alguns estão mortos. Mas as famílias deveriam ser indenizadas. Essas pessoas deveriam também ser reembolsadas, deveria ter uma ação reparadora, deveria ter um reconhecimento público das empresas dos crimes que cometeram e uma ação reparadora, tanto individual quanto coletiva, pois o crime do trabalho escravo é imprescriptível”.
Ele ressalta que a multinacional “tem que reconhecer o crime e tem que indenizar. Não é justo que essas pessoas que sofreram e sofrem tanto, pois tem as consequências psicológicas e emocionais do crime, que elas não sejam reparadas. Principalmente porque a Volks recebeu, em valores atualizados, mais de R$ 500 milhões do governo brasileiro. Então, R$ 165 milhões, é nada”, conclui.