Acordo brasileiro e julgamento em Londres marcam nova fase para atingidos por barragem em Mariana
Governo federal homologa mais R$ 100 bilhões em repasses para recuperação da bacia do rio Doce, enquanto justiça britânica julga responsabilidade da BHP
A partir de dois eventos, a última semana foi bastante movimentada e decisiva para os atingidos pelo crime ambiental provocado pela mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais. O rompimento da barragem do Fundão, da empresa controlada em consórcio pela Vale e BHP, em novembro de 2015, afetou diretamente o modo de vida de milhares de pessoas, alterou drasticamente a qualidade do rio Doce, da costa marítima do Espírito Santo e do sul da Bahia, e deixou 19 mortos.
Em Londres, na segunda-feira (21), começou o julgamento da responsabilização da empresa anglo-australiana BHP, que se perder o caso, poderá pagar o maior valor indenizatório da história da justiça britânica, 36 bilhões de libras (R$ 266 bilhões).
No Brasil, o governo federal assinou, na sexta-feira (25), um acordo de reparação no valor de R$ 132 bilhões, que inclui indenizações individuais e coletivas e valores destinados à recuperação do meio-ambiente. Antes disso, as negociações para reparação eram conduzidas, desde 2016, a partir do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) entre a União, os governos mineiro e capixaba e as empresas Vale e BHP, com a criação da, agora extinta, Fundação Renova.
Indignação e luta
Nove anos depois, os efeitos nas regiões por onde a lama contaminada passou seguem sentidos pela população em diversos aspectos, principalmente, em questões relacionadas à saúde, física e mental, e na dificuldade de sobrevivência com a impossibilidade do plantio, da pesca e da criação de animais.
“É inadmissível, é cruel. Nove anos depois do crime e ainda não existe um protocolo em saúde para tratar as pessoas atingidas”, desabafa Simone Silva, atingida em Barra Longa, Minas Gerais.
Liderança quilombola da comunidade ribeirinha de Gesteira, Simone ficou bastante conhecida por sua luta por justiça no âmbito das indenizações, mas, principalmente, nas questões relacionadas à saúde das pessoas afetadas pelo crime. A filha Sofya, de 9 anos, era um bebê quando entrou em contato com a lama de rejeitos de minérios e, de acordo com Simone, sofre até hoje com um quadro de inflamação cerebral.
De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB, o total de pessoas atingidas chega a 2,5 milhões. O movimento defendeu em nota que, além dos acordos financeiros para compensação dos danos, a justiça deve ser feita com a punição dos responsáveis. No dia 5 de novembro, data do rompimento da barragem, serão realizadas atividades e atos de protesto.
Em pronunciamento, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, apontou que a tragédia não foi evitada por “irresponsabilidade e ganância”. Lula também afirmou que espera que as imposições financeiras às empresas “sirvam de lição”.
Na avaliação do governo, a assinatura da repactuação foi positiva. “Esse é um acordo histórico, que permitirá compensar não apenas as pessoas afetadas diretamente pela tragédia de Mariana, que são o foco principal das nossas atenções, mas reparar os danos causados ao meio ambiente, e que também prevê apoio aos municípios e estados envolvidos”, destacou o ministro Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Acordo do governo
A cerimônia no Palácio do Planalto, na sexta-feira (25), contou com diversas autoridades, dentre ministros, representantes do judiciário, além dos governadores Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Renato Casagrande (PSB), do Espírito Santo, e os presidentes das mineradoras envolvidas.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em sua fala, apontou que o julgamento em Londres acelerou as tratativas, pois seria “ruim para a justiça brasileira” ver o caso solucionado a partir de uma corte estrangeira.
Na coletiva de imprensa, o responsável por detalhar os valores foi o Advogado Geral da União, Jorge Messias, que apontou erros e descumprimentos de acordos da Renova no antigo acordo compensatório. O valor total homologado ficou em R$ 170 bilhões, contando com o que já foi utilizado nos últimos anos (a companhia alega foram gastos R$ 38 bi pela Renova com ações na bacia do Rio Doce). Com relação ao valor das indenizações, o montante será de R$ 32 bilhões.
Do dinheiro novo, serão R$ 100 bilhões administrados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico, o BNDES, com a divisão da destinação da seguinte forma, em linhas gerais: R$ 40 bi em ações focadas nos atingidos; R$ 16 bi para recuperação do meio ambiente; R$ 17 bi para fins socioambientais; R$ 15 bi para obras em rodovias e de saneamento; R$ 7 bi diretamente para os cofres dos municípios.
Dentre os repasses mais detalhados até agora, estão:
- R$ 32 bilhões em indenizações para cerca de 300 mil pessoas (R$ 35 mil para atingidos e R$ 95 mil para agricultores e pescadores).
- R$ 3,7 bilhões em auxílio mensal a pescadores por quatro anos (1,5 salário mínimo nos três primeiros e 1 salário mínimo no quarto ano);
- R$ 5 bilhões para o Fundo Popular da Bacia do Rio Doce;
- R$ 8 bilhões para comunidades tradicionais e indígenas;
- R$ 1 bilhão para mulheres vítimas de discriminação de gênero;
- R$ 12 bilhões para investimentos em estudos, equipamentos e custeio adicional do SUS.
- R$ 4 bilhões para melhorias em rodovias;
- R$ 11 bilhões para obras de saneamento e R$ 2 bilhões para fundo de emergência para enchentes.
- R$ 12 bilhões para recuperação ambiental;
- R$ 17 bilhões para ações de projetos socioambientais;
Além disso, as mineradoras ficam responsáveis pela reconstrução integral dos dois distritos que foram soterrados na tragédia, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. A primeira parcela, no valor de R$ 5 bilhões, deverá ser paga 30 dias após a assinatura do acordo e seguirá um cronograma de pagamento contínuo até 2043.
O MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens, reconheceu a força-tarefa e os avanços, mas demonstrou insatisfação com o acordo, em especial com os valores considerados baixos para as indenizações individuais e com o prazo estendido para o pagamento.
Julgamento em Londres
“Eu me senti empoderada. Fizemos uma manifestação na sede da BHP, eu só sabia que tinha sido atingida por ela, mas não tinha tido a oportunidade de estar em frente ao escritório”, diz Simone Silva.
A atingida pelo crime, em Barra Longa, foi a Londres prestar seu depoimento no julgamento e levou consigo a filha Sofya. “Me senti com as forças renovadas, mesmo diante de uma empresa que matou, retirou direitos, que apagou nossas identidades, matou nossos entes queridos. Eu olhei para aquele prédio e falei ‘não posso retroceder’, quero justiça”, comenta.
Além de Simone, um grupo com dezenas de pessoas representou os atingidos na corte britânica, dentre eles indígenas do povo Krenak. A ação judicial foi movida por 620 mil pessoas, 46 municípios, mais de 2 mil empresas e 65 instituições religiosas afetadas pela tragédia e pede uma indenização de 36 bilhões de libras, o equivalente hoje a cerca de R$ 267 bilhões.
Com o acordo de repactuação a partir do governo brasileiro, as expectativas, segundo juristas ouvidos pelo jornal O Globo, é de que a justiça inglesa leve em consideração a conciliação já assinada, apesar de ter soberania para decidir pela condenação. A alegação das empresas é de que as vítimas não podem ser duplamente indenizadas pelo mesmo dano. Há ainda uma ação em fase inicial, também relacionada ao mesmo crime ambiental, a ser julgada na Holanda.
Fundação Renova
Principal alvo de controvérsias durante a luta por justiça e reparação, a Fundação Renova, criada em 2016, entidade sem fins lucrativos gerida pela Samarco, foi extinta com o novo acordo.
Ao divulgar as informações sobre o caso de Mariana, o Palácio do Planalto acusou a fundação de “descumprimento sistemático das deliberações do Comitê Interfederativo” e destacou que a judicialização excessiva dos temas relacionados à tragédia causou lentidão no julgamento das ações. As críticas à Renova estiveram presentes, inclusive, na fala do governador Zema que disse que as medidas “não deram resultado”.
Criada ainda em 2016, a entidade sem fins lucrativos é desde então responsável por conduzir as ações de reparação e indenização aos atingidos. o divulgar as informações do acordo de Mariana, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acusou a Renova de “descumprimento sistemático das deliberações do Comitê Interfederativo (CIF)”, o que levou a pactuação a não funcionar. “Além disso, a judicialização dos temas relativos à tragédia causou lentidão no julgamento das ações”, acrescentou o Palácio do Planalto.
Com relação à participação social nos próximos passos após o acordo, o ministro da Secretaria Geral da Presidência, Márcio Macedo, respondeu ao Brasil de Fato que existe um planejamento nesse sentido.
“Nossa proposta é que seja um conselho paritário, isto é, 50% representantes do governo federal, 50% dos movimentos sociais organizados na bacia e os atingidos. E que esse conselho possa deliberar, a partir dos editais formados no próprio conselho, para um fundo poder tomar as decisões políticas e técnicas dos projetos que serão encaminhados para a execução e operacionalização do BNDES”, explica Macedo.