por Sofia Toledo e Ruan Bernardo

Uma segurança pública popular: refletindo além da militarização
José Cruz – Agência Brasil

A violência letal, tecnicamente entendida como homicídios e mortes violentas intencionais, constitui um entrave constante no cotidiano de grande parcela da população brasileira no quesito de acesso a direitos garantidos constitucionalmente. Está longe de ser novidade que parte significativa desses assassinatos são praticados por agentes de segurança do Estado, que atuam de maneira seletiva, com foco em favelas e periferias das diversas regiões do país. A forma de policiamento, fortemente militarizada, produz no imaginário social a ideia de que a atuação policial se resume a armamentos de alto calibre e seu uso ostensivo por meio de incursões, operações, abordagens violentas, que têm sua eficácia medida pelo número de prisões efetuadas. Assim, buscamos demonstrar em trabalhos recentes como a violência policial não é um caso isolado ou um desvio das normas de policiamento, mas um padrão sistêmico que reflete o racismo e as desigualdades que estruturam a sociedade, e consequentemente, as instituições de segurança pública.

A Polícia Militar de São Paulo (PMSP), por exemplo, é responsável por realizar o policiamento ostensivo, por meio de patrulhas e abordagens, atendendo ocorrências, em uma cotidiana busca ativa por suspeitos, mas sem um ordenamento legal ou orientação de um protocolo, fortalecendo assim a arbitrariedade evidenciada na filtragem racial. Quando olhamos os dados sobre prisões em flagrante realizadas pela PMSP, eles indicam que, em taxas populacionais de grupos de negros e de não-negros, os primeiros têm uma chance de serem presos em flagrante 2,4 vezes maior (Sinhoretto et al., 2021). Ou seja, a filtragem racial se torna uma ferramenta de trabalho, facilitando alcançar os objetivos de produtividade que compõem o cerne do policiamento ostensivo, enfatizando e reforçando estereótipos racializados de locais e pessoas suspeitas, visando ao cumprimento de metas (Lima e Costa, 2014).

No estado de São Paulo, a letalidade policial está diretamente vinculada às consequências do policiamento ostensivo promovido pela Polícia Militar, e, portanto, que muitas vezes parece ser a única forma de promover segurança pública. Este modelo é sustentado e justificado por uma narrativa que conclama o combate urgente a um inimigo interno, no formato da guerra constante. Esse discurso de “guerra ao crime” se materializa em políticas concentradas em investimentos em equipamentos, novos armamentos, aumento do

efetivo, sistema de informações e adoção de tecnologias de inteligência artificial. Assim, a militarização é promovida dada a sua necessidade para combate ao inimigo interno, personalizado nos homens jovens e negros, em detrimento de reformas necessárias nas políticas de segurança pública.

O resultado dessa combinação se manifesta nas periferias das grandes e médias cidades, nos altos índices de mortes em decorrência de ação policial, crescimento acelerado do encarceramento em massa, adoção de tecnologias como videovigilância e reconhecimento facial que reforçam injustiças, estereótipos e desigualdades em relação à juventude negra e periférica.

A efetividade deste modelo é amplamente questionada pela realidade. Basta ver que mesmo com os avanços de políticas sociais, de legislações protetivas de direitos coletivos, de políticas de proteção da cidadania, aumentou a violência, a superlotação de presídios e agravou-se a letalidade policial. As políticas sociais apontam numa direção, já as políticas de policiamento ostensivo têm como consequência o desmantelamento e enfraquecimento das políticas sociais nos territórios em que o policiamento ostensivo é mais acirrado. Por exemplo, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro divulgou recentemente que, após uma Operação Policial de combate ao crime organizado, pelo menos 20 mil estudantes ficaram sem aula, escolas do Complexo da Maré, Complexo da Penha, Complexo do Alemão e Morro do Trem foram fechadas e as aulas canceladas para própria segurança da comunidade escolar. No Complexo da Maré, escolas ficaram mais de 15 dias fechadas total ou parcialmente por conta da rotina diária de operações policiais.

Para além da forma como afeta o acesso à educação da população que vive nas favelas e periferias, esta política afeta também o acesso à saúde, postos de atendimento são fechados durante operações, o transporte é paralisado, comércios são fechados. O estado de tensão submete os moradores que estão expostos a esse tipo de violência a ter 42% mais chances de desenvolver hipertensão, como demonstram pesquisas. Além dos danos à integridade física e mental, as ações policiais em periferias têm prejuízos diversos para os moradores, no Rio de Janeiro são pelo menos R$14 milhões de prejuízo por ano, por não conseguir ir trabalhar, por fechamento dos comércios, produtos danificados em troca de tiros.

Por isso é necessário debater os efeitos da militarização da segurança pública e o quanto isso enseja a necessidade de uma segurança pública popular, como alternativa que trate a polícia como parte do povo trabalhador. O formato em que se organizam as políticas

públicas voltadas à segurança não estão dando e nunca deram retornos que satisfaçam as necessidades da população, principalmente dos grupos periféricos. Esse formato tem sido um obstáculo para políticas sociais, por um lado, e não tem apresentado resultados efetivos no enfrentamento do crime organizado.

Assim, é preciso aproximar o povo das políticas de segurança, da política e das instituições de justiça. A descentralização do debate da segurança pública deve considerar a participação das populações que residem nas periferias, tendo em vista que essas são as mais impactadas pela militarização. Uma possibilidade muito interessante para realizar esse processo é considerar as organizações e movimentos sociais das periferias por já estarem organizando-se em torno dessas pautas. Exemplos são encontrados no Mapeamento de Movimentos Sociais e Coletivos das Periferias Brasileiras, no qual 20% das organizações colocam a pauta da violência como um dos seus principais temas de incidência, entre essas quase metade são organizações que trabalham com temas da cultura e do trabalho, o que demonstra que essas organizações compreendem a necessidade de se debater segurança pública para além do policiamento e da violência.

Essas organizações são importantes não só pelo formato em que se organizam sobre o debate, mas por como se articulam territorialmente também. Nessa amostra, 91% das organizações realizam incidência em âmbito focalizado entre o próprio bairro, região da cidade, município e estado; e também 80% participam ou já participaram de atividades de outras organizações, dados importantes para compreender que essas estão articuladas territorialmente e que compreendem quais são os objetivos e necessidades populares. Tanto que 50% delas participam ou já participaram de conselhos de participação e controle social para conseguir incidir de maneira mais institucionalizada. Portanto, há de se enfatizar que a segurança pública a partir da militarização da polícia não é uma solução, tendo em vista os desgastes sociais que isso pressupõe, e a legitimação dos grupos periféricos nesse debate seria um caminho possível ao debate de políticas públicas conectadas às demandas dos territórios mais reprimidos.

*Sofia Helena Toledo: graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda em sociologia pela mesma instituição. Faz parte do grupo de pesquisa Mobilidades: teorias, temas e métodos (MTTM). É pesquisadora responsável pelo eixo de violência do Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo e no AFRO CEBRAP.


*Ruan Bernardo é graduando em Gestão de Políticas pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador da área Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo (FPA). Vinculado ao projeto Periferias na Pandemia do Centro de Estudos em Conflito e Paz (CCP), do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI), da Universidade de São Paulo (USP).


Referências

RAMOS, Silvia et al. Pele alvo: a cor que a polícia apaga. Rio de Janeiro: Rede de Observatórios da Segurança/CESeC, 2022.

RAMOS, P. et al. Periferias no Plural. Tradução: 1. ed. São Paulo, SP: Fundação Perseu Abramo e Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, [s.d.]. v. 1p. 487.

SINHORETTO, J. Juventude, controle do crime e racismo institucional. CESCONTEXTO , v. 32, p. 58-71, 2022.

SINHORETTO, Jacqueline (org.). Policiamento ostensivo e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime. 2021. Rio de Janeiro: Autografia.

SOUZA, L. Militarização da segurança pública no Brasil. In: MARTINS, H; e LOURENÇO, L (org). Criminalidade, direitos humanos e segurança pública na Bahia. Cruz das Alma, BA, Editora UFRB, 2014, p.(15 – 36).

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