A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro

José Luís Fiori

Reprodução

A competição capitalista é a força mais elementar que move o processo das inovações tecnológicas, e estas inovações são a chave do sucesso das grandes corporações na sua disputa permanente por “posições monopólicas” e “lucros extraordinários” em uma economia de mercado. A pesquisa tecnológica de “ponta” e as inovações tecnológicas revolucionárias verdadeiramente disruptivas sempre contaram com o apoio dos Estados nacionais, e foram orientadas por suas respectivas estratégias de defesa e preparação para a guerra.

Essas inovações e tecnologias não nascem da simples competição de mercado, e é por isso que elas se concentram invariavelmente nos países que ocupam as posições de maior poder dentro do sistema internacional, as chamadas “grandes potências”. Já os países que ocupam as posições inferiores na hierarquia do poder internacional, por sua vez, costumam acessar as novas tecnologias através da cópia, da importação ou de pequenas adaptações incrementais, obtidas mediante pagamento de “direitos de propriedade intelectual”. E é exatamente por isso que todos os países que se propõem, em algum momento, a mudar sua posição dentro da hierarquia internacional do poder, enfrentam resistências e bloqueios, sendo obrigados a reorganizar seus sistemas nacionais de pesquisa e inovação.

Foi o que aconteceu também com a China, que foi obrigada a deixar para trás rapidamente sua estratégia de “cópia tecnológica” dos anos 70 e 80, e montar um novo sistema de inovação tecnológica voltado para as “tecnologias duais”, pautadas, em última instância, pelas necessidades de seu sistema de defesa. Sobretudo após 1996, quando os chineses foram obrigados a suspender suas manobras militares de “protesto”, por dois porta-aviões norte-americanos enviados para o Estreito de Taiwan, depois que o novo presidente da Ilha, Lee Teng, recém-eleito e empossado, manifestou seu desejo de levar à frente o seu projeto de independência de Taiwan com relação à China Continental.

A partir daquele momento, a China mudou progressivamente sua estratégia de defesa e inovação tecnológica, adotando um modelo similar ao norte-americano de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias “duais” orientadas – na maioria dos casos – pelas necessidades estratégicas do país e utilizadas ao mesmo tempo por sua economia civil. No caso do “modelo norte-americano”, a colagem dos sistemas de inovação e de defesa aconteceu de forma definitiva durante a II Guerra Mundial, com a criação do National Defense Research Council (NDRC), o grande responsável pelo projeto Manhattan e pela reorganização da pesquisa cientifica nas universidades e empresas privadas reunidas em um mesmo “complexo-militar-industrial-acadêmico” estruturado a partir da competição geopolítica e estratégica com a União Soviética.

Neste sentido, pode-se afirmar que a Guerra Fria foi a força motora dos principais avanços tecnológicos norte-americanos, da segunda metade do século XX, no campo aeroespacial e da energia nuclear, nos setores da computação, das fibras óticas e dos transistores, assim como da química, da genética e da biotecnologia. Em todos esses casos, a estratégia militar dos Estados Unidos funcionou como a bússola e o primeiro motor das novas tecnologias “duais” que revolucionaram a economia mundial a partir dos anos 50. Hoje, a “Agência de Projetos Avançados de Pesquisa em Defesa” (DARPA) – que responde ao Departamento de Defesa dos EUA – conta com um orçamento de mais de 3 bilhões de dólares e financia investigações em todo e qualquer setor considerado estratégico para a segurança americana, independentemente do seu objeto específico, bastando se propor a obter “inovações radicais” situadas, sempre, na fronteira do conhecimento humano.

No caso da China, como vimos, o novo modelo é instalado a partir dos anos 90, mas se acentua e aprofunda radicalmente nas duas primeiras décadas do século XXI, quando os chineses tomam consciência da necessidade de modernizar seu sistema de defesa para poder assegurar sua soberania e competir dentro do seu novo habitat, o “sistema interestatal capitalista” inventado pelos europeus. O passo inicial foi dado com a criação da “Comissão de Ciência, Tecnologia e Indústria, para a Defesa Nacional”, mas o verdadeiro salto aconteceu em 1990, quando foi criado o “Programa 863” de financiamento à pesquisa de “ponta” e, em particular, em 2001, quando foi lançado o “Projeto de Segurança Estatal 998”, com o objetivo explícito de desenvolver a capacidade chinesa de contenção das forças norte-americanas no Mar do Sul da China.

Entre 1991 e 2001, o gasto militar chinês cresceu 5% ao ano, e entre 2001 e 2010, 13%. Hoje a China possui o segundo maior orçamento militar do mundo, mas o que importa, neste caso, é que os gastos com a “defesa” já alcançam cerca de 30% de todo o gasto governamental com pesquisa e inovação, e foram os grandes responsáveis pelo avanço dos chineses nas três últimas décadas em todos os setores da economia estrategicamente vinculados ao seu sistema de defesa. Mais à frente, o “Plano de Desenvolvimento Nacional Científico e Tecnológico de Médio e Longo Prazo”, para o período entre 2006 e 2020, aumentou a tônica nas tecnologias “duais”, com o objetivo central de conquistar a autonomia econômica e a soberania militar da China. E embora os chineses sigam utilizando as cadeias produtivas e comerciais globais, a verdade é que eles obtiveram avanços notáveis nas últimas três décadas.

Durante o governo de Barack Obama (2009-2017), mais precisamente em 2012, a secretária de Estado Norte-Americana, Hilary Clinton, apresentou a nova Estratégia dos Estados Unidos voltada para a Ásia (“Pivot to East Asia”). Depois disto, a administração de Donald Trump (2017-2021) declarou uma verdadeira “guerra econômica” contra a China (através de sanções financeiras e bloqueios comerciais), que prosseguiu durante o governo Biden. Simultaneamente, Joe Biden intensificou o cerco militar da China, através de sua inciativa “Quadrilateral Security Dialogue” – QUAD (com Japão, Índia e Austrália), e do seu “pacto de segurança estratégica” – AUKUS entre os próprios Estados Unidos, a Inglaterra e a Austrália. Um cerco econômico e militar que se somou ao impacto econômico da Covid-19, elevando à enésima potência entre tecnológica as duas potências, concentrando-se agora na tentativa de bloqueio americano e europeu do acesso chinês às tecnologias de informação e comunicação indispensáveis para a produção dos semicondutores utilizados no desenvolvimento da infraestrutura digital da industrial civil e militar da China.

Muitos analistas econômicos consideram quase impossível que a China possa alcançar e superar os Estados Unidos, ou mesmo que possa apenas alcançar sua autonomia neste campo indispensável para o desenvolvimento contínuo do seu sistema de defesa e exploração espacial. O que a história nos diz, entretanto, é que depois de 30 anos de esforço concentrado, a China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro, nos setores de defesa, aeroespacial, robótica, microeletrônica, telecomunicação, energia nuclear, meio ambiente, química, biotecnologia, inteligência artificial, materiais avançados e tecnologia quântica. Por isso, não é improvável que mais cedo do que tarde a China logre superar esta barreira fundamental para seu desenvolvimento econômico e militar autônomo. Sabe-se, contudo, que os norte-americanos e seus aliados consideram esta possibilidade como uma verdadeira “linha vermelha” na sua disputa com os chineses pelo poder global.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo)

Publicado originalmente no nº 6 do Boletim Observatório Internacional do Século XXI – NUBEA/UFRJ.

`