Manobra falha e PL do estupro é abortado
No site da Câmara, a enquete que consulta a população brasileira sobre o PL já bateu um milhão de votos, com maioria contrária à proposta. São 918.249 votos contrários ante 112.352, ou 12%, que dizem concordar totalmente
O que você faz em 24 segundos? Este foi o tempo que levou a Câmara Federal a aprovar, em regime de urgência acatado pelo presidente da casa, o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), o Projeto de Lei “Antiaborto por Estupro” (PL 1.904/24), que equipara o aborto de feto com mais 22 semanas a homicídio.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vê inconstitucionalidade no projeto e se manifestou contrária. Deputados de PCdoB, PSOL e PT pediram para registrar votos contrários à urgência, que é perigosa para as mulheres brasileiras, pois acelera a tramitação e fura etapas. Com o requerimento aprovado, Lira permitiu que o PL seja pautado diretamente no plenário, sem necessidade de passar por comissões.
O projeto é de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, o ex-líder da bancada evangélica que bradou, entre versículos e retórica misógina, que críticas eram irrelevantes, que iria “pressionar para que a matéria seja votada [em plenário] ainda neste semestre.
Atualmente as normas brasileiras preveem três possibilidades legais de abortamento: por gestação derivada de estupro, por risco de vida da mãe ou por anencefalia.
Na prática, a Câmara discutiu matéria da maior gravidade, repleta de consequências em cadeia, de instâncias da saúde à segurança pública, representando as mulheres brasileiras, só que sem ouvi-las nas diversas instâncias e comissões previstas no protocolo parlamentar da casa.
Como tem se tornado comum no Congresso, o fundamentalismo religioso, que brinda os brasileiros com uma representação “diplomática” das igrejas neopentecostais no Congresso, a bancada evangélica, decidiu, neste tempo recorde, que qualquer mulher, criança, adolescente ou adulta, se tornaria imputável do crime de assassinato de um feto, ainda que ele tenha se desenvolvido no corpo da mulher em decorrência de um estupro.
Na segunda (17), as deputadas federais Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP) recorreram contra a manobra do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que levou a votação do PL a regime de urgência.
Na noite de ontem, o presidente da Câmara Arthur Lira, depois de grande pressão das ruas e de diversas entidades da sociedade civil, como ONG e Associações, além de movimentos sociais, decidiu empurrar para o segundo semestre a discussão em plenário. Este era o tamanho da urgência: gerar confusão valendo-se do direito das mulheres, dando protagonismo ao discurso fundamentalista religioso.
“Nada neste projeto vai retroagir nos direitos já garantidos, e nada vai avançar que traga qualquer dano às mulheres. Nunca foi e nunca será assunto do colégio de líderes. O colégio de líderes aceitou debater este tema, de forma ampla, no segundo semestre, com uma comissão colaborativa, após o recesso, sem pressa ou açodamento”, disse Lira, após ter agido com pressa e sem diálogo.
A instalação da Comissão Representativa, anunciada por Lira, e a escolha da relatoria do projeto, assim como os representantes de cada partido nos debates, só serão feitas a partir de agosto.
Reações contrárias
Na terça-feira, deputados discursam sobre projeto que equipara a homicídio o aborto realizado após 22 semanas de gestação A coordenadora-geral da Secretaria da Mulher da Câmara, deputada Benedita da Silva (PT-RJ), defendeu o debate sobre o prisma da saúde. “Precisamos considerar a promoção de medidas e de políticas de prevenção da gravidez na adolescência, planejamento familiar e combate ao abuso sexual e estupro”, afirmou.
Segundo ela, o debate precisa ser mais profundo com todas as camadas que envolvem o assunto, mantendo olhar cuidadoso pela vida e a saúde de mulheres e meninas vitimadas pela violência. “Não podemos transformar vítimas em criminosas”, afirmou.
Para a deputada Erika Hilton (Psol-SP), a proposta pune mulheres, meninas e pessoas que gestam. “Este projeto é um escárnio, uma barbárie, retrocesso que leiloa o direito das pessoas vulneráveis”, disse. Segundo ela, muitos parlamentares são hipócritas ao dizer que defendem a vida humana, mas não estão preocupados com a vida de crianças de 8 a 10 anos, que terão de levar adiante gravidez fruto da violência e do estupro.
Dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, do Senado Federal, indicam que o número de agressões sexuais no Brasil subiu 25% de 2021 a 2022. A maioria das vítimas eram pretas e pardas e crianças e adolescentes. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estima-se que ocorram 822 mil casos de estupro no País por ano. Deste total, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. Os dados foram citados por Benedita da Silva.
No Brasil, 67.626 ocorrências de estupros em mulheres foram registradas somente em 2022. “Isso equivale a, aproximadamente, um estupro a cada 8 minutos no país”: os dados e o excerto são do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam) lançado em abril do ano passado pelo Ministério das Mulheres.
O deputado Tadeu Veneri (PT-PR) afirmou que a votação da proposta poderia ter a intenção de “colocar o presidente Lula na parede”, para ver se ele veta ou não. “Nós não só votaremos contrariamente, nós vamos fazer todo o empenho para que projetos como esse tenham, pelo menos, o debate nas comissões, mas ninguém discutiu, não houve audiência pública, nenhuma mulher foi ouvida.”
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou que a proposta que equipara aborto de gestação acima de 22 semanas a homicídio é uma “irracionalidade”. “Já me antecipei, dado o tema sobre que ele versa, aborto, gravidez decorrente de estupro, que isso evidentemente jamais viria, na hipótese de aprovação pela Câmara dos Deputados, diretamente ao Plenário do Senado Federal”, disse o Senador.
O que diz o Governo
Na segunda-feira (17), o ministro Alexandre Padilha (Secretaria de Relações Institucionais) afirmou a jornalistas que governo não tem “compromisso” com esse projeto e, por isso, a gestão petista vai defender a manutenção da legislação atual sobre aborto.
“Nunca houve compromisso nosso, inclusive dos líderes, não só do governo, para votar. Acredito que não tem ambiente para se continuar o debate sobre um projeto que estabelece uma pena para o estuprador menor do que para a menina ou mulher estuprada”, disse Padilha.
De acordo Padilha, o presidente Lula vai manter o compromisso que assumiu com lideranças religiosas durante a campanha presidencial, a de que seu mandato não tentará mudar a lei que trata das possibilidades de aborto no Brasil.
O presidente Lula, por sua vez, endureceu o tom durante entrevista à rádio CBN, que concedeu nesta semana após retornar ao Brasil de compromissos internacionais. ‘É crime hediondo um cidadão estuprar uma menina de 10, 12 anos e depois querer que ela tenha um filho. Um filho de um monstro’, afirmou o presidente, que defendeu a “educação sexual nas escolas para meninos e meninas”. “Você não pode continuar permitindo que a madame vá fazer um aborto em paris, e que a coitada morra em casa tentando furar o útero com agulha de tricô. Esse é o drama que estamos vivendo.”
“Estamos no Século 21 e estamos retrocedendo. Por que uma menina é obrigada a ter um filho de um cara que estuprou ela? Que monstro que vai sair do ventre dessa menina? Essa discussão é um pouco mais madura, não é banal como se faz hoje”, disse o presidente.
No site da Câmara dos Deputados, a enquete que consulta a população brasileira sobre o PL já bateu um milhão de votos, com maioria contrária à proposta. São 918.249 votos contrários ante 112.352, ou 12%, que dizem concordar totalmente