A democracia é para todos
Carta em defesa do Estado Democrático de Direito chega a 1 milhão de assinaturas e inaugura uma nova frente de defesa das instituições e do processo eleitoral. De estudantes a professores, juristas e sindicalistas, empresários e bangueiros, todos estão juntos em defesa das eleições de 2022. Bolsonaro desdenha: “Carta em defesa da democracia vale menos que papel higiênico”
O Brasil assistiu na quinta-feira, 11, a um capítulo importante da nossa história e ao nascimento de uma nova etapa da organização social brasileira: a defesa intransigente da democracia por amplos setores da sociedade civil. Milhares de brasileiros estavam atentos ao que acontecia no pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Ali, num ato carregado de simbolismo e força política, oradoras e oradores se revezaram na leitura da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. O recado foi claro: “no Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários”.
Os pronunciamentos foram marcados por declarações em defesa do sistema eleitoral brasileiro, das urnas eletrônicas, da Justiça Eleitoral e da Constituição. E contra o autoritarismo e os retrocessos nas políticas sociais. Os oradores se emocionaram e comoveram o público na leitura da carta. Não houve menção direta ao presidente Jair Bolsonaro. Nem precisava.
“Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira”, diz um trecho da carta. “São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”.
A comparação entre os ataques promovidos por apoiadores de Donald Trump em janeiro de 2021 na chamada invasão ao Capitólio – sede do Congresso dos Estados Unidos – também foi lembrada no documento. “Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão”, aponta a carta.
Foram escolhidos como oradores do manifesto as professoras Eunice de Jesus Prudente e Maria Paula Dallari Bucci, o ex-ministro Flávio Bierrenbach – ex-presidente do Superior Tribunal Militar e um dos juristas que subscreveram o documento de 45 anos atrás – e a vice-diretora da faculdade, Ana Elisa Bechara.
A “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” é uma epístola organizada pela Faculdade de Direito e ultrapassou a marca de 1 milhão de assinaturas. Trata-se de uma atualização da “Carta aos Brasileiros” lida em 1977 pelo professor Goffredo da Silva Telles Junior, um marco na luta contra a ditadura militar. Entre os signatários estão os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso.
O recado dos signatários ao presidente da República ficou evidente: “Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática”, diz o manifesto.
O mandatário reagiu com a repulsa de sempre. Na noite de quinta-feira, foi às redes sociais para expressar sua repulsa aos signatários da carta em defesa da democracia. E disse que o texto “vale menos que papel higiênico”. O asco do presidente aos vigorosos atos na Faculdade de Direito da USP não impediu o sucesso do evento, que ganhou ampla repercussão dentro e fora do país.
No pátio interno, foram penduradas as faixas “Para que não se esqueça”, “ditadura nunca mais” e “Estado de Direito sempre!”. Antes mesmo de o ato começar, a mestre de cerimônias pediu para que não houvesse gritos contra Jair Bolsonaro nem em defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No fim do ato, porém, um grupo numeroso de participantes puxou um “Fora, Bolsonaro” e “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”.
A manifestação foi organizada como resposta às recorrentes ameaças feitas pelo presidente e seus apoiadores radicais, que têm atacado reiteradamente a lisura do processo eleitoral, insinuando que as urnas eletrônicas estariam sujeitas às fraudes para impedir a sua reeleição. Um delírio de quem sabe que vai perder as eleições em outubro para Lula.
Antes deste ato, ouve ainda a leitura de outra carta pró-democracia, liderado pela Fiesp e que conta com a assinatura de 107 instituições, como instituições financeiras, centrais sindicais, universidades, ONGs e outras organizações. A leitura foi feita pelo ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. Ele lembrou da época em que ajudou na confecção da carta contra a ditadura militar.
“Hoje é outro momento grandioso, em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia”, disse. “Estamos celebrando aqui com alegria, com entusiasmo, o hino da democracia”. Discursaram ainda professores, sindicalistas, líderes de movimentos populares, empresários e advogados.
Horácio Lafer Piva, ex-presidente da Fiesp, e Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, dividiram o microfone com Telma Aparecida, presidente da CUT-SP, Beatriz Lourenço do Nascimento, da Coalizão Negra por Direitos, e Raimundo Bonfim, da Central dos Movimentos Populares e Frente Brasil Popular, entre outros.
Nenhum representante de partido político falou no evento. Mas vários deles circularam no local, como Fernando Haddad, Márcio França, Guilherme Boulos e Marina Silva. Ou o agora ex-vereador Renato Freitas (PT), de Curitiba. Além de artistas, como Daniela Mercury, o ex-jogador e comentarista esportivo Walter Casagrande Jr., e o coordenador nacional do MST João Paulo Rodrigues.
A uma pergunta sobre o fato de, após quase meio século do ato de 1977, a sociedade brasileira ainda precisar sair em defesa da democracia, o ex-ministro do Superior Tribunal Militar, 82 anos, formado em Direito justamente em 1964, comentou com tranquilidade: “Daquela vez deu certo, desta vez vai dar também”.
A professora Eunice Prudente, da USP e da Faculdade Zumbi dos Palmares, se diz esperançosa de uma mudança na atmosfera política. “Por onde vou, vejo uma atenção muito grande com a questão da democracia”, afirmou. Ao mesmo tempo, ela disse não acreditar em golpe ou algo dessa natureza. “Não vejo isso, não. Acho que a gente vai conseguir”, disse à Rede Brasil Atual.
No ato que precedeu a leitura da Carta, o diretor da Faculdade de Direito, Celso Fernandes Campilongo, formado em 1980, lembrou que Estado de Direito consiste, basicamente, em respeito às leis. “Tudo isso que não estão querendo fazer com o nosso processo eleitoral”, disse. Ele lembrou que, no caso das eleições há apenas uma autoridade competente, o TSE. “O resto é gente sem competência jurídica e sem competência moral para se intrometer no processo eleitoral brasileiro”, completou. •