Cenas da distopia contemporânea

No Brasil, o debate sobre o aborto legal sofre tentativa de interdição e criminalização inéditas em audiência pública promovida pelo Ministério da Saúde em que aberrações científicas e jurídicas foram proferidas de cara limpa. Nos EUA, decisão da Suprema Corte revoga direito que vigorou durante quase 50 anos e deixa aos estados a responsabilidade de legislar sobre o tema. As guinadas conservadoras em torno do direito à interrupção da gravidez são apenas a ponta do iceberg de onda conservadora que pretende limitar direitos humanos das mulheres e impedir que políticas públicas mais humanizadas e que contemplem a diversidade da sociedade sejam implementadas

 

 

 

Tornou-se quase um clichê comparar a tratoragem do conservadorismo no que diz respeito aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres ao romance de Margaret Atwood, “O Conto da Aia”. Escrito em 1985, o romance antecipatório da escritora canadense imagina uma sociedade alguns anos no futuro dominada por uma teocracia, na qual mulheres jovens, férteis e pobres (as aias) são submetidas a estupro regular e ritualizado para servir de barriga de aluguel para mulheres de elite que não podem ter filhos — um desastre ecológico-biológico teria causado uma epidemia de infertilidade.

O livro de Atwood, que circulou por anos sobretudo entre leitoras mulheres e feministas, ganhou um público mais ampliado e entusiasmado quando virou série de plataforma de streaming mais de 30 anos depois — estreou em 2017 — e não apenas pela qualidade da versão ou pela atuação brilhante da atriz Elisabeth Moss como Offred/June. Gilead, o pedaço nordeste dos EUA em que se passa a história, estava perigosamente mais próximo da vida cotidiana nos anos 10 do século 21 do que nos anos 1980 do século 20 no mundo ocidental, com as guinadas direitistas nas Américas e na Europa.

Nessas últimas duas semanas, o Brasil teve seu momento de Gilead concentrado, que culminou com uma audiência pública no Ministério da Saúde. Com o objetivo de debater um documento publicado  no início de junho — “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” — a audiência pública acabou por revelar como a chamada “agenda dos costumes” da direita brasileira pretende perseguir e criminalizar todo e qualquer avanço aos direitos duramente conquistados por movimentos feministas, LGBTQIA+ e etc.

O tema do aborto ganhou ainda mais volume de atenção pública e midiática nas semanas que antecederam a audiência da última terça-feira, 28, por conta de duas histórias muito emblemáticas de gravidez indesejada e violência sexual.

Em 20 de junho, o país leu estarrecido a denúncia das jornalistas Paula Guimarães, Bruna de Lara e Tatiana Dias — do Portal Catarinas e publicadas no The Intercept — sobre a conduta agressiva e anti-ética da juíza Joana Zimmer. Ela coagiu uma criança então com 11 anos a “aguentar mais um pouquinho” uma gestação de risco decorrente de estupro.

Nos áudios aos quais a reportagem teve acesso, é perceptível a atuação tanto da juíza quanto de uma procuradora, desrespeitando a decisão da menina e da mãe pelo abortamento. Diante dos silêncios e negativas da menina, a juíza apela para chantagem emocional — “você já escolheu o nome do bebezinho?” —, quando não para a intimidação dura, quando descreve em detalhes os procedimentos físicos. Como se não bastasse a pressão sobre a menina, uma manobra jurídica afastou a menina da mãe. 

Nem bem esse escândalo tinha arrefecido, com a juíza afastada e investigada pelo MP, e o Brasil descobre, estarrecido, a história de Klara Castanho, uma jovem atriz de 21 que teve a vida devassada por um jornalista de celebridades, Léo Dias, e pela influencer e candidata a deputada pelo Republicanos Antônia Fontenelle.

Na pior tradição da imprensa marrom, Fontenelle deu a dica e Dias, colunista do portal Metrópoles, expôs o caso da atriz. No diapasão do escândalo e da maledicência, Klara foi acusada de “abandono de incapaz”, por ter levado uma gestação decorrente por estupro a termo e dado o bebê para adoção.

Diante das notas indignadas e contrariando sua vontade de manter a história sob sigilo, o que é a praxe nesse tipo de adoção, Klara publicou uma carta aberta em suas redes sociais, na qual conta sua versão e, ainda, relata que também sofreu agressões e intimidação no hospital privado por parte de equipe médica, mesmo sendo vítima de violência anterior.

Condenadas a priori

A repercussão de ambos os casos inflamou, mais uma vez neste ano, o debate sobre o aborto. Com todas as diferenças circunstanciais e sociais que separam a atriz carioca e a menina catarinense, ambas escancaram o fato de que a culpabilização e a revitimização da vítima ainda são a regra para as mulheres.

É como se, para o pensamento conservador de tintas religiosas e enorme carga moralista, não pudesse haver uma gravidez indesejada por nenhum motivo. Mais ainda: uma vez que ocorra a gravidez, haveria como um protocolo pré-estabelecido das atitudes consideradas adequadas, no qual a última pessoa a ser ouvida é a mulher que carrega o feto em seu corpo.

A vítima de estupro sofre pelo menos uma dupla violência; a do estupro em si e à qual se adiciona reviver várias vezes a situação do estupro no momento da denúncia, quando esta ocorre, e, sobretudo, ter sua palavra desacreditada ou motivo de desconfiança. Se a vítima fica grávida, o périplo médico e jurídico para conseguir um aborto legal, nos casos já previstos por lei — estupro, risco de vida da mãe e anencefalia —, transforma-se numa via crúcis de situações nas quais, mais uma vez, a menina ou a mulher tem de se haver, muitas vezes sozinhas, com suas decisões e dores. E, como mostrou o caso de Klara, mesmo se a vítima do estupro escolhe ou é convencida a não fazer aborto, as convicções morais e ou religiosas dos profissionais que lidam com a situação geram outros tipos de agressão.

O que os movimentos sociais reivindicam são mudanças na legislação e nos procedimentos para uma conduta mais humana, advinda do reconhecimento de que a escolha da mulher ou de sua responsável legal — no caso de menores de idade — seja considerada e respeitada por toda a cadeia de profissionais envolvidos. Em  segundo lugar, que amplie-se o direito ao aborto para que a maternidade possa ser uma opção consciente e não compulsória.

No Brasil, como no resto do mundo, abortos ilegais hoje em dia são vistos como uma questão de saúde pública, uma vez que, quando falham as tentativas de contracepção ou quando há gravidez não planejada ou desejada, mulheres de todas as idades, classes sociais e em condições sanitárias diversas recorrem a métodos variados para interrompê-la.

E, claro, dada a desigualdade social no Brasil e os índices de violência sexual, as consequências de abortos feitos de forma caseira, amadora, ou escondida acabam batendo nos sistemas públicos e privados de saúdes, com aumento de mortes e ou comprometimento da saúde reprodutiva de mulheres. 

O manual elaborado pelo Ministério da Saúde vai em sentido contrário. Contesta abertamente a noção de que o aborto é uma escolha livre das mulheres, que seja um problema de saúde pública e, no caso de estupro, condiciona os trâmites jurídicos que autorizam o aborto ao controle policial e do aparato do Estado.

Também prioriza-se a criminalização do estuprador, o que parece em tese razoável, mas acabaria acrescentando mais um  obstáculo para resolução do problema da vítima, uma vez que uma boa parte dos casos, sobretudo os das vítimas menores de idade, é de parente próximo — pai, irmão, tio, marido da mãe etc. E, claro, a tudo isso se sobreporia ainda outra camada de culpabilização da vítima, pois se a mulher, por medo ou por ter sentimentos contraditórios em relação ao criminoso, não quer ou não consegue denunciá-lo estaria sendo cúmplice do crime.

O manual, recebido com muitas críticas e questionamentos técnicos por estudiosas e ativistas do aborto a ponto de ser chamado de manual antiaborto, também foi apontado como um passo a mais no retrocesso na direção das leis atuais. E, portanto, um entrave sério na direção da descriminalização da interrupção da gravidez e a garantia da realização dos procedimento médicos de forma segura e sem questionamentos morais ou mais controle policial. Nos últimos anos, países como a Argentina e a Colômbia conseguiram vitórias importantes nesse sentido e, aqui, em eleições presidenciais o tema volta com força, para o bem e para o mal.

No entanto, a audiência pública foi um banho de água fria para mulheres e feministas. Entre outras coisas, procurou-se demonstrar que, ao contrário do que sustentam diversos especialistas, o aborto não é um problema de saúde pública e que atinge, com mais gravidade, mulheres mais pobres e população negra.

E, ainda, que todo o aborto é um homicídio, uma vez que, a partir da concepção, haveria ali um indivíduo autônomo cuja vida se sobreporia à vida da gestante e que, dados os avanços médicos dos últimos anos que permitem que um feto a partir da 25a semana de gestação possa sobreviver fora do útero, as políticas públicas devem aterrorizar meninas e mulheres para que “aguentem mais um pouquinho” e garantam a sobrevivência daquele bebê.

Além do discurso apelativo e sentimental — a representante de um movimento pro-vida levou bonecos de fetos em diversos estágios de desenvolvimento —, o circo antiaborto impediu a participação de ONGs feministas pró-descriminalização. Na tentativa de impor uma venda negacionista a evidências científicas, revelou sobretudo a crescente e pervasiva influência de grupos religiosos fundamentalistas católicos e protestantes nas decisões do poder público sobre direitos reprodutivos e sexuais das mulheres.

Para além dos efeitos imediatos, o avanço da agenda regressiva tem intenções eleitorais claras. Com o governo Bolsonaro acuado por escândalos de corrupção, tráfico de influência e vendo seu segundo mandato cada vez mais distante, insistir na pauta de costumes significa insuflar seu eleitorado fixo na lenga-lenga de que “a esquerda” advoga a destruição da família e é constituída de pessoas monstruosas que matam bebês que ainda nem nasceram sem direito à defesa.

Para azar da campanha bolsonarista, o espetáculo armado na terça-feira serviu de pouca coisa. Naquele mesmo dia, Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, ficou sob os holofotes de um novo e espinhoso escândalo de assédio sexual e moral.

Os relatos estarrecedores de funcionárias da Caixa de episódios agressivos e constrangedores, para dizer o mínimo, eram conhecidos há tempos por figuras-chave do governo, incluindo o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o próprio presidente.

A dupla moral do presidente que preconiza uma coisa naquilo que fala para seus eleitores sobre defesa da família tradicional ficou ainda mais evidente pela demora em demitir e pela recusa em se manifestar publicamente sobre Guimarães, figura de seu círculo de confiança.

Em Gilead, a distopia patriarcal e fundamentalista da escritora canadense, as regras para os homens no poder são outras, incluindo bordéis nos quais todas as restrições estão suspensas. Aqui, estão mais próximos disso do que muitas de nós gostaríamos. •