Desde 2019, governo tentou destruir todos os colegiados da administração pública federal. Mas os que resistem demonstram a importância de sua atuação. Futuro governo Lula vai trazê-los à ativa

 

 

Os conselhos e fóruns de participação social na administração pública federal devem retomar protagonismo, caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja eleito em outubro. Esse compromisso está exposto nas Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, conjunto de medidas elaborado pela frente de sete partidos que apóiam a chapa Lula-Alckmin.

A importância prática desses espaços de participação política na vida da população pode ser constatada a partir do exemplo de alguns que permanecem ativos, mesmo após sofrerem tentativa de destruição completa por parte do atual governo.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), que escapou à sanha bolsonarista, destaca-se pela atuação durante os períodos mais críticos da pandemia de Covid-19. Suas intervenções, articuladas com outras instâncias de formulação política, ajudaram a colocar em prática medidas como o orçamento extraordinário para o enfrentamento da crise sanitária.

A provisão orçamentária para a saúde contornou a redução de gastos imposta pelo teto de gastos — aprovado pelo Congresso ainda no governo Temer, que engessa por 20 anos os investimentos sociais — e pela indiferença do governo Bolsonaro. Sem isso, a crise e o número de 670 mil mortos teriam sido maiores.

Por resolução do CNS, foi criada também a Câmara Técnica para Acompanhamento da Covid-19, com participação de representantes de usuários e de trabalhadores e trabalhadoras do sistema de saúde, de especialistas da Fiocruz, da Anvisa e da Organização Panamericana de Saúde. A câmara inclui ainda  representantes das secretarias de saúde municipais e estaduais e de empresas privadas de prestação de serviços na área.

O grupo funciona como uma espécie de bunker antinegacionismo. De lá, saíram 30 resoluções e 80 recomendações que auxiliaram estados e municípios a adotar ações que combinam respaldo científico e pragmatismo administrativo. A câmara foi antídoto para a falta de coordenação que marcou a gestão do Ministério da Saúde, cuja estrutura administrativa abriga o CNS.

Aí reside uma das forças de atuação de parte dos conselhos. Poder encaminhar medidas capazes de contrariar a linha político-ideológica de determinado governo quando isso se fizer necessário. A pandemia de Covid-19 explicitou esse papel e demonstrou sua importância, para além de preferências partidárias.

Tal poder também explica em grande medida porque Bolsonaro decidiu esvaziar e tirar os conselhos e fóruns de cena. Muitos dos colegiados que existiam antes do Golpe de 2016 – 446, segundo estimativa – foram extintos. O Decreto 9759, de abril de 2019, pretendia acabar com todos.

Só não teve êxito completo porque posteriormente o Supremo Tribunal Federal decidiu que os espaços de participação popular que haviam sido criados por lei específica não podiam ser extintos por decreto. O STF julgou ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo PT.

Além do CNS, outros permanecem, mas alguns enfraquecidos ou inertes. O arcabouço legal que estrutura os conselhos é uma diferença importante entre os que resistem ativos e os demais. O Conselho Nacional de Saúde foi criado por lei em 1937. De lá pra cá, de simples órgão consultivo, tornou-se órgão deliberativo, com poder de elaborar resoluções que funcionam como normas.

Os integrantes do CNS são eleitos, e não nomeados, o que lhes confere dose importante de autonomia e prevenção a exonerações arbitrárias. E o órgão é dotado de corpo técnico de assessoria e orçamento próprio.

No entanto, o aspecto mais decisivo é a penetração política do conselho ou do fórum junto à comunidade que atua no segmento. Isso depende da pluralidade de representação e, especialmente, da decisão dos participantes e das organizações que representam de defender o colegiado como espaço privilegiado de disputa e formulação. No caso do CNS, a existência de sólidos consensos em torno do Sistema Único de Saúde (SUS) ajuda bastante. Esses são fatores destacados pelo estudo “Desinstitucionalização e Resiliência dos Conselhos no governo Bolsonaro”, produzido por quarteto de pesquisadores ligados ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e à Universidade de Brasília (UnB).

Ao contrário do que pode parecer quando se observa a conjuntura a distância, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) é apontado pelo estudo como um exemplo de instância participativa resiliente ao desmonte bolsonarista. Mesmo vulnerável a intervenções, o CNDH vem desafiando o governo, amparado, justamente, na participação social.

Uma das maiores fragilidades institucionais vem do fato de a Presidência do CNDH ser ocupada por titular do ministério. Damares Alves foi presidenta do conselho até se licenciar do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para concorrer às eleições deste ano. Mesmo assim, nesse período, a ação política dos conselheiros, com o apoio de organizações e movimentos sociais, conseguiu barrar a indicação de um extremista de direita para o cargo de procurador do CNDH.

Articulado com o Conselho Nacional de Saúde, o CNDH produziu ainda relatório em que denunciou os abusos cometidos pelo governo federal contra os direitos humanos durante a pandemia de covid-19. Esse relatório foi apresentado diante da comunidade internacional, na 48º Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em outubro.

Tais ações driblaram a estratégia do governo Bolsonaro, que enfraqueceu a participação popular na área de direitos humanos com a desativação de outros colegiados que atuavam em segmentos específicos, como a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Sim, no país em que uma juíza tenta impedir menina de 11 anos de interromper gravidez causada por estupro, essa comissão foi extinta.

Quando não desativado, um colegiado pode perder sua função a partir de ingerência política. Foi o caso do Conselho Nacional de Educação, atacado antes mesmo de o pesadelo bolsonarista se concretizar. Uma das primeiras medidas de Michel Temer, após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, foi revogar 12 conselheiros nomeados por ela e, na sequência, nomear outros, todos alinhados a um conceito privatizante da educação. “Desde então, o conselho se apequenou, virou um órgão de governo e deixou de desempenhar papel de órgão de Estado”, comenta Luiz Dourado, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e ex- conselheiro entre 2012 e 2016.

Neste caso, a importância da participação social se demonstrou pela ausência. Na avaliação de Dourado, o atual conselho não formulou diretrizes para um plano educacional que enfrentasse a pandemia de covid-19 e minimizasse os prejuízos sofridos por alunos e educadores.

Sem falar no controverso currículo do chamado Novo Ensino Médio, em vigor graças à concordância dos atuais conselheiros do CNE e ausência de debate público. Outro caso significativo de ingerência se deu no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), ocupado por alinhados à política de devastação. •