Alguma coisa está fora da ordem...

Diante da derrota iminente nas eleições de outubro, o presidente da República volta a dar chilique e ataca a urna eletrônica e a Justiça Eleitoral. Mas o TSE reage: não vai se dobrar aos caprichos de quem quer que seja, nem ao Palácio do Planalto ou a generais

 

Desde 2020, a cada temporada de infortúnios, desastres na economia ou queda de popularidade, o presidente da República recorre a ataques ao Judiciário e integrantes dos tribunais superiores. Diante da possibilidade cada vez maior de uma derrota desmoralizante nas urnas para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o tenente da reserva Jair Messias Bolsonaro volta a dar um piti em público. Dessa vez, atacou as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral, num esforço para colocar em dúvidas o resultado das urnas. Só que dessa vez, o governo ouviu uma reação forte.

“Quem trata de eleições, são forças desarmadas. E, portanto, as eleições dizem respeito à população civil, que, de maneira livre e consciente, escolhe seus representantes”, disse o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luiz Edson Fachin,  na quinta-feira, 12. “Não mando e não recebo recado de ninguém. Quem investe contra o processo eleitoral, investe contra a democracia. E esse é um fato”.

Nas últimas duas semanas, Bolsonaro e generais que servem ao governo no Palácio do Planalto levantaram dúvidas, sem qualquer tipo de prova ou indício de irregularidade, sobre a segurança das urnas eletrônicas e da condução da Justiça Eleitoral na organização do processo eleitoral de 2022. As manifestações de Bolsonaro incluíram a defesa da participação das Forças Armadas no processo de apuração dos votos e a contratação de uma auditoria paralela.

Bolsonaro voltou a fazer novas críticas na sexta-feira, 13. “Vocês devem estar acompanhando o que acontece no centro do poder lá em Brasília. Uma luta pelo poder. Pessoas poucas, mas que saem das quatro linhas da Constituição para tumultuar o que vem acontecendo no Brasil”, disse em Campos do Jordão (SP). E voltou a cobrar a participação das FFAA no processo eleitoral. “Elas fizeram seu papel, não foram lá para servir de moldura para quem quer que seja, e hoje nos atacam como que as Forças Armadas estivessem interferindo no processo eleitoral”. No mesmo dia, Fachin voltou ao assunto e subiu mais um tom: “É preciso que todos os Poderes digam que vão respeitar o resultados das eleições de 2022”, declarou.

Alguma coisa está fora da ordem...

No sábado, 14, o ministro Alexandre de Moraes, que presidirá o TSE durante as eleições a partir de agosto, não só defendeu as urnas eletrônicas, mas garantiu que o candidato eleito em outubro será diplomado. “Vamos garantir a democracia no Brasil com eleições limpas, transparentes e por urnas eletrônicas. Em 19 de dezembro, quem ganhar vai ser diplomado nos termos constitucionais, e o Poder Judiciário vai continuar fiscalizando e garantindo a democracia”, afirmou no Congresso dos Magistrados Brasileiros, em Salvador.

Sem citar Bolsonaro, os filhos e os integrantes do chamado Gabinete do Ódio, o ministro disse que a principal ameaça ao processo eleitoral hoje são as “milícias digitais”, que tentam fazer com que a população duvide da mídia com fake news. “A internet deu voz aos imbecis. Hoje qualquer um se diz especialista, veste terno, gravata, coloca painel falso de livros (no fundo do vídeo) e fala desde a guerra da Ucrânia até o preço da gasolina, além de atacar o Judiciário”, advertiu.

E avisou que nada vai intimidar a Justiça Eleitoral. “Como não dá para atacar o povo, começaram a atacar os instrumentos que garantem a democracia”, disse. “De quatro em quatro anos tem eleições, e essas milícias digitais sabem disso. O Poder Judiciário não pode e não vai se acovardar perante essas agressões, eu tenho absoluta certeza disso”.

Principal adversário de Bolsonaro nas eleições e líder nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou sua confiança nas urnas eletrônicas. “Eu confio na urna eletrônica porque, se pudesse roubar na urna eletrônica, um torneiro mecânico não teria sido presidente da República duas vezes”, disse o petista, fazendo referência às suas consagradoras vitórias nas eleições de 2002 e 2006.

“Bolsonaro fala em golpe todo dia. Ele vai ver o golpe, vai sofrer. Dia 2 de outubro o povo brasileiro vai dar um golpe no autoritarismo dele e vai reestabelecer a democracia nesse país”, disse Lula durante sua viagem a Minas Gerais. “Vai ser o primeiro golpe democrático e popular. Um golpe sem fuzil, sem metralhadora, é o golpe da eleição democrática”.

Na semana anterior, em mais uma de suas transmissões pelas redes sociais, Bolsonaro voltou a questionar, sem provas, o sistema eleitoral brasileiro e disse que pediu ao presidente do PL, ex-deputado Valdemar Costa Neto, para o partido contratar uma empresa externa para fazer auditoria “antes das eleições”. O PL negou que pense em realizar auditoria, mas o presidente usou o termo em tom de ameaça à Justiça Eleitoral.

“Adianto para o TSE: essa auditoria não vai ser feita após as eleições. Uma vez contratada, a empresa já começa a trabalhar e vai pedir ao TSE, com toda a certeza, uma quantidade grande de informações”, afirmou. Ele só não explicou que o TSE já faz uma auditoria antes, durante e depois da votação, e partidos políticos podem participar de todo o processo. Tem sido assim desde a primeira eleição presidencial com urna eletrônica, realizada em 1998, quando Fernando Henrique Cardoso foi reeleito sem que Lula jamais questionasse o resultado eleitoral.

Na quarta-feira, 11, o comandante da Marinha, Almirante Garnier Santos, manifestou apoio a Bolsonaro sobre a necessidade de uma auditoria privada das urnas. Em entrevista ao jornal O Povo, de Fortaleza (CE), ele disse que quer que os brasileiros tenham certeza do resultado.

“O presidente tem feito críticas, mas não é só o presidente que faz crítica, muita gente faz críticas às urnas há muito tempo. O presidente da República é o meu chefe, é o meu comandante, ele tem o direito de dizer o que quiser”, disse o almirante.

No início do mês, a Reuters revelou que o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, enviou ofício a Fachin pedindo a divulgação dos documentos da Comissão de Transparência das Eleições, em especial as propostas feitas pelo representante das Forças Armadas no colegiado. Em abril, o TSE divulgou um documento com 81 páginas com as sugestões da comissão, inclusive do representante dos militares.

Em 4 de maio, o Estadão revelou que as Forças Armadas enviaram 88 questionamentos ao TSE nos últimos meses sobre supostos riscos e fragilidades que, na visão dos militares, podem expor a vulnerabilidade do processo eleitoral.

A maioria das perguntas reproduz o discurso de Bolsonaro, que tem colocado em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e mantido a própria atuação da Corte sob suspeita. Fachin respondeu à Defesa que quem havia pedido sigilo nos relatórios tinha sido ninguém menos que o representante das FFAA.

Desde então, um duelo vem sendo travado pelo presidente da República, que passa a questionar a cada momento a Justiça Eleitoral. Mas Fachin mostra a disposição dos tribunais superiores em assegurar o resultado das eleições, sem se deixar intimidar.

Na semana passada, Bolsonaro chegou a dizer que Fachin estava vendo fantasmas e que a democracia não está em risco. Recorreu ao velho morde e assopra, mas foi repelido de pronto pelo ministro do TSE. “Dizem que falo de fantasmas. A violência tem gênero e grau. A violência no Brasil é trágica. A desinformação tem nome e origem. Não é um fantasma”, disse Fachin, na Bahia. “Assistimos quase incrédulos a normalização de ataques às instituições impulsionadas por práticas de desinformações”. •