Entrevista – “Lula está certo: o Teto de Gastos tem que acabar”
O economista carioca que esteve no FMI entre 2007 e 2015 diz que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acerta ao defender a suspensão da atual política fiscal, que está estrangulando o país. “Essa regra fiscal adotada em 2016 é sui generis, mal pensada e só foi celebrada na mídia corporativa e no mercado porque a ignorância econômica viceja no Brasil”
O economista Paulo Nogueira Batista Jr. coloca o governo Bolsonaro como o pior da história nacional. Trata-se da associação de um presidente despreparado com um “ideólogo neófito” à frente da economia. A dupla Bolsonaro/Guedes produziu desajustes graves. Economista carioca, diretor executivo no FMI entre 2007 a 2015 e vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, entre 2015 e 2017, diz que país está prisioneiro de uma agenda econômica neoliberal que agravou os problemas do país.
Titular da Cátedra Celso Furtado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Paulo Nogueira Batista Jr. aponta os motivos pelos quais o teto de gastos adotado no Brasil depois do golpe em Dilma Rousseff, que a afastou da Presidência em 2016, precisa ser derrubado. À Focus Brasil, ele também analisa a relação dos BRICS, o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, com EUA e União Europeia. E ainda avalia o que pode mudar nas finanças dos países a partir das sanções que os EUA impuseram à Rússia através do uso político do dólar e do sistema financeiro.
Focus Brasil — Ainda faltam alguns meses para que o mandato do governo chegue ao fim, mas enquanto isso não acontece, é possível avaliar o resultado do que a atual administração significou para o país?
Paulo Nogueira Batista Jr. — Esse governo, na minha opinião, é o pior da história brasileira até onde eu posso enxergá-la. Não tem precedentes. É um governo marcado por profundo despreparo do presidente e da quase totalidade dos seus ministros e integrantes, pela ignorância de questões centrais para a administração do país e da gestão pública, por ideias retrógradas, ultrapassadas e até perniciosas – uma mistura de ignorância com perversidade, em muitos casos. É um governo desastroso. Em três anos e meio isso já ficou amplamente demonstrado.
O Brasil é muito forte, entretanto. Aguenta muito desaforo e não é um governo ruim ou mesmo dois, se você considerar que antes houve o do Temer, que conseguem destruir o país. Mas abalaram, sim, a economia. Abalaram o aparato estatal porque houve muita destruição, desorganização, sobretudo no governo Bolsonaro, mas também no governo Temer. O aparato estatal brasileiro, que tem muitos pontos fortes, ficou meio avariado em áreas como economia, planejamento, cultura, educação e saúde. Foi um retrocesso nos últimos dois governos.
Mas começa, na verdade, no meu entender, em 2015 quando o Brasil entra numa crise econômica e política da qual o governo Dilma, no seu segundo mandato, não conseguiu sair. Ela foi vítima de um ataque político que teve consequências econômicas muito pesadas. Então, o Brasil está desde 2015 numa situação muito delicada. E o pior foi a eleição de Bolsonaro e o seu governo, como se poderia prever. Não precisava ser nenhum gênio, bastava olhar o candidato, o que ele dizia, o grau de despreparo dele para entender que era um absurdo pensar em elegê-lo. Para quem olhou o que era o Bolsonaro, a trajetória dele, o que ele dizia, as pessoas com as quais se cercava, não foi surpresa o que vimos desde janeiro de 2019.
— O pior é pensar que Paulo Guedes foi um elemento que chancelou, que serviu como uma garantia para o Bolsonaro. O próprio Paulo Guedes é um pensador antiquado.
— Bolsonaro e ignorante? É. É despreparado? É. É perverso? É. Mas não é burro. Ele tem as suas espertezas. Uma delas foi apontar, já durante a campanha, para um economista que “agradaria” [faz sinal de aspas com os dedos] o chamado mercado. E inventou essa figura do “Posto Ipiranga”, do economista que cuidaria da economia e teria resposta para tudo. Agora, o Paulo Guedes tem duas características problemáticas. Primeira: ele é um ideólogo com ideias econômicas antigas, um adepto do ultraliberalismo, do fundamentalismo de mercado que vicejou em certos setores da academia americana, não em todos. Nos anos 1970, estudou nos EUA, em Chicago, que era o reduto da versão mais radical do neoliberalismo econômico, influenciado sobretudo por Milton Friedman, mas também por [Friedrich] Hayek. Pelo que posso observar, Guedes não fez nenhuma atualização. Ele ficou preso àquelas ideias antigas, que os americanos ensinam, mas não praticam.
O radicalismo neoliberal da Escola de Chicago não é a única vertente da ortodoxia americana. Mas essa ortodoxia americana, mesmo nas suas vertentes mais moderadas, não é para consumo interno, é para exportação. Eles trazem os estudantes latino-americanos, africanos, asiáticos, incutem certas ideias neles e depois devolvem os estudantes, devidamente aculturados, a seus países para representar ali os interesses estratégicos da metrópole imperial. Paulo Guedes é um entre muitos, só que com esse agravante: formou-se na vertente mais radical do ideário neoliberal.
A segunda característica problemática é que o Paulo Guedes, que tem 72 anos, nunca exerceu nenhuma atividade no setor público antes de ser o ministro da Economia, “todo poderoso”, do governo Bolsonaro. Ou seja, não tem experiência relevante acumulada. E o pior é que Bolsonaro cometeu o erro de juntar os ministérios, Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio, Previdência e Trabalho e colocou o comando na mão de um neófito. Um ideólogo neófito. Velho, mas neófito em termos de administração pública. Não podia dar certo. E não deu.
— Lula tem dito que no governo dele não vai ter teto de gastos.
— Lula está afiado. Ele disse o que tinha que dizer. Deixou claro que no governo dele, caso se eleja, não haverá o teto de gastos aprovado no governo Temer. No meu entender, ele tem razão porque essa regra fiscal adotada em 2016 é sui generis, mal pensada e só foi celebrada na mídia corporativa e no mercado porque a ignorância econômica viceja no Brasil e é propagada sistematicamente pela mídia e pelos economistas que têm acesso à mídia. Essa regra não tem precedentes. Não tenho conhecimento de nenhum país que adote uma regra desse tipo. Ela congela os gastos primários, os gastos não financeiros do governo, por até 20 anos em termos reais. E essa regra foi colocada na Constituição. [Ri] Constitucionaliza a política fiscal introduzindo na Constituição uma regra de longo prazo rígida. Se o gasto ficar congelado em termos reais, como a população cresce e o PIB real cresce também, então o gasto per capita e como percentagem do PIB vai cair ao longo do tempo. Esse teto constitucional não é só uma regra de disciplina fiscal, tem o objetivo de diminuir o tamanho do Estado. E tem dois objetivos distintos. E não se mostra viável.
Na época, Temer e [Henrique] Meirelles definiram o teto de tal maneira que ele se tornaria uma restrição real a partir do governo seguinte. Não era tão difícil lidar com ele na fase inicial, do jeito que foi desenhado. Era sacrifício para o governo seguinte. E a partir de 2019 Bolsonaro já teve dificuldade de cumprir. Imediatamente, se viu isso. Como as reformas “estruturais” [fez sinal de aspas com os dedos] são difíceis, o gasto obrigatório continua crescendo, aí o gasto não obrigatório, o gasto discricionário vai sendo comprimido cada vez mais. Bolsonaro se viu nessa situação e passou a adotar a partir de 2019, uma série de expedientes para, na verdade, furar o teto. É uma situação em que, por causa da rigidez do teto, a política fiscal passou a ser governada por emendas constitucionais, o que é um absurdo. É um absurdo que decorre do absurdo que foi a regra fixada no governo Temer. Então, conduziu-se a política fiscal por emenda constitucional, o que coloca o Executivo na mão do Congresso, evidentemente. E o governo se desmoraliza porque tem uma regra rígida que é desobedecida recorrentemente.
— Alguma regra tem que ter.
— O Brasil tem uma profusão de regras. Tem a regra de ouro que está na Constituição desde 1988, tem a Lei de Responsabilidade Fiscal que prevê metas de resultado primário e tem esse teto ao qual o Lula se referiu. Você pode, em tese, não ter regra nenhuma. É uma posição heterodoxa talvez meio extremada, mas é possível. No meu entender, seria interessante repensar todo o arcabouço fiscal. Concordo com o Lula, deve-se suprimir o teto de gastos. Deve-se rever a regra de ouro, eventualmente, substitui-la também. E rever a questão da meta de resultado primário prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal. Não sei para que ter várias regras. O melhor seria encontrar uma ou duas regras que sejam flexíveis, não estejam no texto constitucional, pelo amor de Deus, [risos] pois isso cria uma rigidez irracional. Regras infraconstitucionais, flexíveis, com horizonte razoável e bem pensadas. Eu imagino que o PT esteja pensando nisso, porque é melhor não improvisar, é melhor ter um caminho traçado. Nas circunstâncias atuais do Brasil, seria interessante não deixar tudo solto. Suprime o teto constitucional, mas coloca algo no lugar. Esse algo é que ainda não está muito claro como seria.
— O Teto de Gastos é um ponto importante das discussões atuais e outro são as medidas do governo chamadas de “populistas”, elevando gastos e diminuindo a arrecadação. Existe uma crítica de diferentes setores de que essas medidas vão gerar um grande problema ao próximo governo. O senhor também tem essa avaliação?
— Eu não tenho dúvida de que o Bolsonaro está promovendo um desajuste importante nas contas públicas. Aliás, o que ele não desajustou, não é? É difícil encontrar uma área que não tenha sido desajustada, e as finanças públicas não são exceção. Então, o próximo governo vai herdar o que os economistas chamam de tensão fiscal em grau elevado. Terá de fazer face a gastos reprimidos e aos efeitos de medidas de ampliação do gasto ou redução de receita que afetam de modo duradouro as contas públicas. Há uma certa bagunça na área fiscal que o próximo governo vai ter que enfrentar. Não é, entretanto, uma situação impossível. Dá para consertar. Porque também há um pouco de exagero quanto à extensão do problema fiscal no Brasil. Isso faz parte da ideologia econômica dominante, superenfatizar a restrição fiscal. Ela existe, mas o Estado não está quebrado, não está em colapso. Tem condições de se organizar.
— Em 2010, quando o Lula saiu, a economia crescia a 7,5%. Isso é algo quase inédito na história. É possível retomar o crescimento, não em 7%, mas com uma política de investimento partindo do Estado se atingir já no primeiro ou no segundo ano um patamar de crescimento em torno de 4%, 5%?
— Diria o seguinte: o Brasil foi dos anos 1930 até a crise da dívida externa nos anos 1980, uma das economias mais dinâmicas do mundo. O Brasil teve uma trajetória de crescimento espetacular. Uma média de 7% ao ano. Depois veio a crise da dívida externa, o período Collor até Fernando Henrique, e entramos numa fase prolongada de estagnação e de perda de dinamismo. O governo Lula começou a reverter esse quadro, nos dois mandatos dele, culminando com esse crescimento que você mencionou de 7,5% em 2010. A partir de 2011, entretanto, nós tivemos dificuldades e o desempenho já não foi tão brilhante. E veio depois a piora brutal em 2015, 2016, aquela grande recessão da qual não nos recuperamos ainda.
Não é uma coisa que eu possa fundamentar estatisticamente com precisão, mas é importante ter em conta que temos capacidade ociosa, ou seja, máquinas e equipamentos não utilizados, trabalhadores desempregados ou subempregados em grande número, a taxa de subutilização da força de trabalho supera 20%. Nós temos recursos naturais a explorar, uma fronteira ampla. O Brasil é um país continente, um dos gigantes do mundo. Não tenho dúvidas de que este país, bem administrado, pode voltar a crescer. Não 7% ao ano, mas pensando no médio prazo, podemos ter uma taxa de crescimento de 4% ao ano, por que não? Parece perfeitamente viável. Vão dizer, “ah, os economistas estimam o produto potencial brasileiro muito abaixo disso”. É verdade que as estimativas de produto potencial tendem a mostrar uma taxa de crescimento potencial bem inferior a 4%. Mas as estimativas são objeto de grande incerteza e motivo de controvérsias infindáveis entre economistas. A dispersão de resultados é muito grande e asß estimativas são muito influenciadas pela trajetória recente da economia. Então, é meio enganosa essa ideia de que as estimativas de produto potencial nos condenam a crescer 2%, 1%. Nós vamos criar esse produto potencial, entende?
Esse produto potencial teórico, que os economistas ficam tentando estimar, o próximo governo tem que criar na prática, com ação forte, vigorosa, tomando iniciativas importantes. Sem perder o sentido de responsabilidade, é claro. Não é só “tocar pau na máquina”, é saber que existem restrições e levá-las em conta, mas o Brasil pode, perfeitamente, crescer mais do que tem crescido. Perdemos peso relativo no mundo porque a Ásia cresceu muito no século 21 e porque, a partir de 2011, o Brasil cresceu menos, especialmente, a partir de 2015. Mas podemos reverter isso e voltar a ser uma das economias dinâmicas do mundo.
— Com relação à possibilidade de o Brasil voltar a crescer, o senhor apontou a necessidade de investimento do Estado. Gostaria de lhe perguntar de que forma esse investimento deve ocorrer e também sobre como o debate público relacionado à economia é empobrecido pela mídia.
— A mídia corporativa brasileira e as pessoas que nela são ouvidas e opinam, estão fora do mundo. Uma mídia que vive de ilusões, de doutrinas ultrapassadas. Se o Brasil se pautar por isso, não vai mais sair do lugar. Sobretudo as televisões, mas também a mídia escrita, estão muito atrasadas, reverberando um ideário que os principais países já abandonaram. Então, temos que ter uma visão equilibrada. Não estou dizendo que o Brasil vai depender só de investimento público ou de bancos públicos, mas que esses investimentos e bancos públicos têm papel estratégico e que, em complemento a isso, teremos a ação forte do setor privado também, do nacional e das empresas estrangeiras que operam aqui, que vão ser estimulados com a ampliação do mercado a também aumentar a sua atividade, a também investir.
É o famoso tripé: Estado, setor privado nacional, setor privado estrangeiro. Os três têm que atuar para que a economia cresça de forma sustentável ao longo do tempo. Não há conflito entre os três no processo de desenvolvimento. Esse conflito pode ser até estimulado ideologicamente, mas a ampliação do investimento público e das transferências sociais vai gerar mercado, esse mercado vai aumentar as vendas e os lucros do setor privado que poderá então investir mais, contribuindo também para o aumento da formação bruta de capital.
Então, precisamos esquecer essas falsas dicotomias: “público ou privado? Estado ou mercado?”. Não, não é isso. É ao mesmo tempo público e privado, numa economia como a brasileira. E é claro que público e privado, mas sobretudo nacionais, porque não vamos poder contar muito com a contribuição externa. Um país da dimensão do Brasil não pode ser dinamizado de fora para dentro. Volto a dizer, o Brasil é um gigante. Países dessa dimensão não conseguem se desenvolver a partir de fatores externos, investimento estrangeiro, atuação de agências públicas externas. Isso é para país pequeno. País grande tem que contar com a sua própria formação de capital, e o que vem de fora é complementar. Assim será no caso brasileiro.
Há muita confusão conceitual. Então, por exemplo, na ânsia de atacar o governo Bolsonaro, às vezes a oposição usa argumentos errados ou duvidosos. Por exemplo, no excelente discurso no lançamento da chapa, Lula disse, repetindo coisas que se publicam por aí, que a economia brasileira, que já foi a 6ª do mundo na época dele ou da Dilma, agora despencou por causa do governo Bolsonaro para a 12ª posição no ranking das economias. Essas afirmações estão baseadas em métodos enganosos de comparação, que transformam os PIBs em dólares pela taxa de câmbio de mercado. O critério correto, que é paridade de poder de compra, mostra que a economia brasileira continua a ser a 8ª maior do mundo, um pouco acima das economias do Reino Unido e da França. O Brasil, juntamente com Rússia, China, Índia e EUA, faz parte de um grupo de cinco países — só cinco! — que integram a lista dos dez maiores territórios, das dez maiores populações, e dos dez maiores PIBs comparados por paridade de poder de compra.
— A emergência dos BRICS pode ter estimulado que setores mais conservadores defendessem o golpe em 2016?
— Esse ataque em várias frentes que atingiu a presidente Dilma, o Lula, a Petrobrás, as empreiteiras brasileiras e pode ter sido estimulado de fora para dentro. Há indícios de atuação de interesses ligados aos EUA, interesses domésticos e estrangeiros. Aí entramos no terreno da conjectura, onde as coisas não são transparentes, mas diria que a questão dos BRICS pode ter contribuído para gerar uma inquietação nos EUA. Os BRICS são um grupo de cooperação que existe e atua continuamente desde 2008 e do qual participam o maior país da América Latina e dois países que são vistos pelos americanos como rivais, até como ameaças, a China e a Rússia. Isso era válido antes, quando formamos o mecanismo, mas se tornou cada vez mais pesado com o passar do tempo. Os americanos foram ficando mais inquietos com a ascensão da China e, sobretudo depois de 2014, entraram em rota de colisão com a Rússia também, por causa da Ucrânia, culminando agora com a guerra. Então, o Brasil pode ter sido visto em Washington como um país que estava assumindo um protagonismo indesejado, gerando inquietações e reações.
Mas vou dizer uma coisa: em toda a minha vida sempre me impressionou o peso e o dinamismo da quinta coluna aqui dentro do Brasil. No setor público, nos debates fora do setor público, a grande dificuldade que sempre tive foi com a quinta coluna. Também tive embates e divergências com estrangeiros. Mas a quinta coluna é especialmente terrível porque ela fala português, não tem um sotaque aparente. Só tem sotaque espiritual, como dizia o Nelson Rodrigues, não o sotaque físico. Eles se apresentam como brasileiros, mas operam contra o país. Isso é uma grande realidade contra a qual nós vamos ter que continuar lutando.
Agora, voltando aos BRICS, é importante notar, olhando para o futuro, que o bloco não é uma aliança política. Nunca pensamos os BRICS como uma aliança política plena. Quando trabalhamos a partir de 2008 com Rússia, China, Índia e depois a África do Sul, estávamos formando um mecanismo de cooperação com propósitos importantes, mas limitados e, não, uma aliança política plena.
O Brasil tem interesse em manter relações importantes com Rússia, China, Índia, África do Sul, é claro. Tem interesse de continuar com esse mecanismo de cooperação e inclusive de fortalecer os BRICS. Mas o Brasil não tem interesse de comprar como suas as brigas da Rússia com os EUA, as brigas da China com os EUA. A China não compra as nossas brigas. A Rússia também não compra nossas brigas. É preciso entender que os BRICS são um mecanismo de cooperação importante, mas muito diferente, por exemplo, da União Europeia que é um bloco econômico e político. Não temos pretensões nem condições de formar um bloco econômico e político com os BRICS.
— Esse processo da Guerra da Ucrânia acabou evidenciando o uso político que os EUA fazem da sua própria moeda. E isso vem projetando mudanças substanciais na geopolítica. É desafio para um governo Lula?
— Morei oito anos nos EUA, de 2007 a 2015. Tem muitas qualidades, admiráveis até, mas tem também certos traços problemáticos. Eles não se conformam com a realidade de um mundo multipolar, que já existe. E estão esperneando contra essa realidade. Eles têm essa mania. E é muito perniciosa porque é uma grande potência, em declínio relativo, que não se conforma com o mundo multipolar. E tem reações perigosas. Começou a confrontar a China, processo que remonta ao governo Obama e que se intensificou com Trump, continuando em Biden. Partiu para a confrontação com a Rússia, dando sequência desde os anos 1990 à ampliação da OTAN e colocando os russos numa posição complicada. Não digo que isso justifique, mas acabou levando Vladimir Putin à decisão extrema de invadir a Ucrânia. Tudo isso tem origem num processo de expansão da OTAN que contraria compromissos que assumiram com o Mikhail Gorbatchev quando houve a reunificação alemã. Compromisso esse que não está por escrito, Putin já lamentou publicamente o fato de Gorbatchev não ter exigido que isso fosse posto no papel. Mas existia esse compromisso, existia a expectativa.
Agora, os americanos desencadearam uma guerra econômica sem precedentes contra a Rússia, que inclui o uso hiperpolítico do dólar e do sistema financeiro americano. Consequência: quebra a confiança dos países, especialmente daqueles que estão em rota de colisão com o Ocidente, no dólar e no sistema financeiro ocidental. No dólar e também no euro, porque os americanos arrastaram os europeus para o mesmo tipo de comportamento hiperagressivo no uso das moedas e do sistema financeiro.
Qual é a posição do Brasil? O Brasil tem que preservar a sua soberania monetária. Nós temos reservas internacionais consideráveis acumuladas nos governos Lula e Dilma, e elas não correm risco imediato porque o Brasil não está em conflito com o Ocidente. Mas nós temos que observar o que está acontecendo.
Caso Lula vença as eleições, será importante reexaminar com cuidado e rever a Lei do Marco Cambial, aprovada no governo Bolsonaro. Passou batido e sem discussão adequada. O marco cambial tem vários problemas. Ele autoriza o Banco Central a permitir a abertura de contas e operações em moeda estrangeira no território nacional por livre decisão. Poderes que antes estavam no Conselho Monetário Nacional foram transferidos para o Banco Central, esvaziando-o. Isso precisa ser repensado. O marco cambial é um perigo para a soberania monetária brasileira, não pode ficar como está. •