O nome dele era Prince
O cantor e compositor, morto em 21 de abril de 2016, aos 57 anos, fez uma pequena revolução em muitos estereótipos da música. Pequeno grande homem de talentos múltiplos e produtor dos próprios discos, o norte-americano ainda sacudiu as noções de masculinidade e do lugar da música negra nos EUA
O ano de 2016, definitivamente, não foi bom para a música. Em 10 de janeiro, David Bowie morreu. Poucos meses depois, em 21 de abril, vimos estarrecidos a morte do artista que era chamado de Prince. No Natal do mesmo ano, se foi George Michael. O efeito dessas mortes para o pop internacional foi devastador. Perdemos músicos fazedores de sucessos, como “Let’s Dance”, “Kiss” e “Freedom ’90”. Perdemos a chance de ver performers inspiradores no palco e, ainda, personalidades artísticas que foram além de seu tempo e, como diríamos hoje, influenciaram comportamentos no mundo inteiro.
Embora nenhum crítico ou jornalista de música coloque os três no mesmo lugar em termos de importância, o efeito dessas mortes foi devastador para milhões de fãs no mundo todo — efeito bastante amplificado pela comoção que causaram e provocaram nas redes sociais. Se em termos de relevância artística talvez Bowie e Prince estivessem mais ou menos no mesmo plano e George Michael um tantinho abaixo, o fato é que os três eram pop o suficiente para que contassem seus fãs na casa dos milhões.
Por mera coincidência, os três também estiveram em shows no Brasil bem no início da década de 1990. David Bowie com a turnê Sound+Vision em setembro de 1990 para shows no Rio de Janeiro e São Paulo. E Prince e George Michael em janeiro de 1991 na segunda edição do Rock in Rio. Naqueles modorrentos anos 90, em que o grunge dominaria a cena e antes da estréia da MTV no Brasil, a aparição de estrelas desse porte foi uma fulguração que não passou despercebida.
Sobre aquele que se chamou Prince, Focus conversou com dois jornalistas de cultura e um curador de música para audiovisual para tentar situar quem era esse multiinstrumentista talentosíssimo nascido em Minneapolis, cidade do meio-oeste dos EUA, em 1958.
Numa breve sinopse de uma carreira complexa e cheia de reviravoltas, Prince, velho demais para ser um artista das cenas do soul ou do funk que dominaram o pop negro dos anos 1970, lançou seu primeiro disco em 1978 influenciado pela new wave. Com “1999”, álbum de 1982, no entanto, o mix de funk, soul e rock dele já não causa tanta estranheza nem no público branco, nem no público negro — isso, nos Estados Unidos, país cujas últimas lei de segregação caiu em 1967, não é uma coisa ordinária.
Prince era uma figura provocante e provocadora, ao mesmo tempo. “Ele rompeu todos os paradigmas”, diz Cláudia Lima, atualmente pauteira e pesquisadora do programa Saia Justa, do GNT. Para a jornalista, uma das primeiras mulheres negras a escrever numa revista de música de circulação nacional, a Bizz, além de destacar suas habilidades múltiplas como cantor, compositor, produtor e letrista, a facilidade com a qual Prince transitava entre gêneros musicais e a ambiguidade sexual foram o que mais chamou a atenção de início. “Ele era preto, mas aí fazia rock e também funk. Foi esse o estranhamento que a gente teve quando ele apareceu. Não sei se ele foi o primeiro, mas ele era queer. Era um cara, mas não era tão masculino. Pegava as maiores gatas da época e ao mesmo tempo tinha uma coisa feminina e afeminada”.
Pedro Noizyman, pesquisador de música para audiovisual, relembra: “Eu era moleque e gostava de metal. O que primeiro me chamou a atenção, no único programa de videoclipe que tinha na época, na TV Gazeta, foi a habilidade dele como guitarrista, ele tinha muita técnica. Se o Prince fosse só um guitarrista, ele seria considerado uma dos maiores guitarristas do mundo”.
No entanto, à medida que sua carreira prossegue e, sobretudo depois de “Purple Rain”, disco que não apenas o lançou para o topo das paradas, Prince começou a exigir das gravadoras o controle total sobre os seus discos — coisa que pega muito mal na indústria. Num movimento ousado, o artista mudou seu nome para um símbolo impronunciável e teve de passar a ser chamado de “the artist formerly known as Prince” — ou o “artista antes conhecido como Prince”.
Ainda que com diferenças, os três entrevistados são unânimes em afirmar que o homem com nome de título de nobreza vem do vasto e enorme legado da música negra norte-americana.
Alexandre Matias, jornalista e curador de música, chega a usar a palavra genealogia, para explicar de onde ele vem. “Ele está na genealogia da música negra: vem do gospel, o R&B, junto com o blues vai dar no rock, mas também divide aí e dá no soul, no funk e aí vai. O Prince tinha uma coisa de ser senhor de si mesmo, como artista, como empresário, como produto”.
Lima, mais uma vez, lembra o papel fundamental de quebrador de paradigmas. “Numa era em que as imagens de videoclipes e shows ao vivo eram essenciais, ele ainda se apresentava com mulheres instrumentistas sensacionais: uma super baterista. Ou seja, era ele, com seu 1,58m de altura, usando aquelas botinhas de salto e as gatas. Só que em vez de elas estarem em posições clássicas de backing vocals, estavam no centro do palco. Tem um dado forte, nas diversas bandas que ele formou, de exibir e incentivar o empoderamento feminino”.
Quando numa pergunta livre e afetiva — pois música passa por tantos e tantos afetos —, peço para que digam o que mais “gostavam” em Prince, é surpreendente ouvir de Noizyman uma descrição quase poética do rosto do performer: “Aquelas fotos de capa, com aqueles olhos amendoados… Ele era um cara muito bonito e sabia disso. Sedutor e seduzível. Além de ser um grande letrista e dançarino, fazia baladas como ninguém, bem na tradição dos grandes cantores e compositores do soul, como Ottis Redding e Sam Cooke. Pensa em ‘When Doves Cry’ ou mesmo ‘Kiss’. Fora a influência direta de James Brown, tanto na expressão corporal como dançarino, como nessa coisa de inventar esse soul jam em que a banda fica tocando e atiçando a platéia em show ao vivo para que o personagem principal entre na hora certa”.
Lima também recorda da enorme influência de James Brown. “Eu vejo no Prince tanto Little Richard quanto James Brown. Ou seja, o bofão e o queer. E ele sai desse caldeirão de cultura negra e vai parar em Earth, Wind and Fire, em Quincy Jones e em toda aquela cena de funk do final dos anos 1970 e que vai dar onde? Na disco”.
Por fim, pedi para que esses especialistas em Prince fizessem um ranking de cinco melhores músicas do artista. Tarefa dificílima, dado que, na opinião desta modesta jornalista de música aqui, não há um disco da longa discografia do Prince que não tenha pelo menos uma meia dúzia de canções excelentes.
Matias, que também fazia como DJ as Noites de Trabalho Sujo, se esquivou: “Eu não consigo fazer o ranking e na ordem. Óbvio que tem ‘When Doves Cry’, tem ‘Controversy’ que não é tão óbvia, “I Wanna Be Your Boyfriend’, mas para mim tem uma música que está lá no panteão que não tem o que falar: ‘Purple Rain’. É o grande hit, a grande influência, o grande solo de guitarra… E fora a quantidade de paixões que essa música já embalou”.
Lima cita: “Pela ordem? ‘Take Me With You’, ‘New Power Generation’ (amo essa música!), ‘Pop Life’e uma que é estranha de jogar na pista para as pessoas dançarem, mas eu também adoro é ‘Sexymotherfucker’”.
“Fui consultar minha playlist e, sei lá, eu não sei se sei fazer isso. Vou te falar aqui das uma de cada fase que eu gosto muito: ‘I Wanna Be Your Lover’, do segundo disco, ‘1999’, seguida de ‘When Doves Cry’. Daí a balada mais linda que eu já ouvi, ‘Sometimes Snows In April’, do disco ‘Parade’ e vou encerrar com ‘I Could Never Take the Place of Your Man’”, relata Noizyman.
Morto há seis anos, Prince não deixou filhos e morreu quietamente, quase que sem causar alarde. Estava recluso e detestava paparazzi. No entanto, seu tamanho na música, como diz Noizyman, “ainda está acontecendo”. Isso é a marca de um grande artista; mudar uma época e se projetar no futuro. •