Quem era o Cabo Anselmo?

Série documental na HBO, “Em busca de Anselmo” reconstitui, em ritmo de reportagem, a vida do agente duplo do período mais repressivo da ditadura

 

 

O primeiro capítulo de “Em Busca de Anselmo”, que estreou na terça-feira, 12, no serviço da HBO, começa com um conjunto impressionante de depoimentos sobre José Anselmo dos Santos (1942-2022). A série documental com cinco episódios de uma hora tenta contar quem era o Cabo Anselmo, agente duplo da repressão, responsável pela revolta dos marinheiros que antecedeu o Golpe de 1964 e, depois, por um dos episódios mais sanguinários da Ditadura Militar, que ficou conhecido como o “massacre da Granja São Bento”.

Pronto desde 2018, o documentário dirigido e roteirizado pelo jornalista Carlos Alberto Jr. teve seu lançamento definido a partir  da morte de Anselmo, em 15 de março. A série foi produzida por Camilo Cavalcanti. O ex-militar concedeu várias horas de entrevista à equipe de filmagem. Carlos Alberto Jr parte de um mote, quase sem resposta até hoje: como o ex-marinheiro entusiasmado e idealista se transformou nessa espécie de espião para as forças repressivas, inclusive protagonizando cenas de puro horror?

Nem os companheiros da associação dos marinheiros, da qual Anselmo, um sujeito falante e bem apessoado, era, segundo um dos entrevistados, menos do que um líder e mais uma espécie de porta-voz, de relações públicas, conseguem remontar a persona de José Anselmo. Nascido em Sergipe, como filho bastardo de um casal religioso e de classe média, ele teve infância protegida e privilegiada, podendo estudar e, depois, seguindo para a carreira militar na Marinha.

Já no Rio de Janeiro, o jovem começou a participar da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil em 1962. Depois, portanto, da renúncia desastrada de Jânio Quadros à Presidência da República, em agosto de 1961, e durante o conturbado período em que João Goulart foi presidente do Brasil. Em meio à luta política por apoio às chamadas Reformas de Base, uma série de medidas de cunho social e trabalhista que incluía reforma agrária, Jango era combatido ferozmente por um Congresso de maioria conservadora e pelos militares de alta patente, já urdindo o golpe.

Nesse quadro, a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais em 13 março de 1964, que teve liderança decisiva de Anselmo — abaixo, à direita, em foto da época —, foi mais do que um pretexto para que as tropas do Exército tomassem as ruas da antiga capital do Brasil. Considerado um dos estopins do golpe que se daria em 31 de março e 1º de abril, a movimentação dos marinheiros e soldados assustou aqueles que temiam que, com as reformas, o Brasil se tornasse um país “comunista”. 

Com reconstituição minuciosa, a série documental não cai na esparrela que tem sido habitual de documentários recentes, como aquele exibido pela Globoplay sobre a morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel. O documentário não trata de “ficcionalizar” cenas com fins de didatismo e de entretenimento.

Carlos Alberto Jr. conduziu dezenas de entrevistas com militantes, historiadores e jornalistas em ritmo jornalístico. E, com isso, consegue amarrar as controvérsias e interpretações com pulso firme. O mais impressionante, no entanto, são as entrevistas de Anselmo, um homem quase octagenário no momento das filmagens e que, malandramente, reconta as suas histórias e das diversas identidades pela quais vai trocando a sua original de maneira tortuosa,  vaidosa — e, em várias cenas, sinistra.

Ora levando a sério seu papel de homem que não tem mais nada a perder, vivendo sozinho no interior de São Paulo, ora voltando à condição de mentiroso profissional, como o velho agente infiltrado, Anselmo se mostra tão disposto a falar e sabe que ainda está criando camadas arqueológicas de enganos.

Em entrevista ao crítico Mauricio Stycer, jornalista do UOL, o diretor da série afirma: “É uma grande reportagem, no fundo, com muitas histórias desencontradas. Chegou uma hora em que falamos: não vamos ficar desmentido ele o tempo todo porque vira uma confusão. Ele vai contar a história dele, a mentira dele”.

Depois do Golpe de 1964, Anselmo tentaria asilo na embaixada do México, ficaria preso até chegar a Cuba, voltando para o Brasil apenas em 1970. Nesse período, começava a se organizar no Brasil o aparato repressivo que vai caçar, prender, torturar e matar as células que, mesmo depois de decretado o AI-5 em 13 de dezembro de 1968, tentou resistir à ditadura recorrendo à luta armada.  Há divergências entre historiadores e estudiosos do período sobre o exato momento em que o ex-militar fez o acordo com as forças repressivas para entregar companheiros.

Há documentos que sugerem que já em 1964, ele seria um provocador e infiltrado no movimento dos marinheiros, tese sustentada pelo jornalista Flávio Tavares. Mesmo sem provas documentais decisivas sobre o período anterior à prisão, o próprio relato de Anselmo sobre sua fuga da delegacia no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, é do tipo boa demais para ser verdade.  O fato é que, entrada a década de 1970, Anselmo já é um auxiliar precioso da repressão.

No caso mais emblemático, que será objeto de um dos episódios da série, Anselmo conseguiu entregar para Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979) seis militantes da VPR, inclusive sua então namorada, Soledad Barret Viedma, grávida de quatro meses (foto abaixo, à esquerda). Fleury, delegado responsável pelo DOPS de São Paulo, que conduziu inúmeras ações de prisão e tortura, e formou o infame Esquadrão da Morte, teria traído o traidor, prometendo que a pouparia.

Nunca saberemos, pois Fleury morreu — ou foi morto — antes de ser julgado. O que a série documental “Em Busca de Anselmo”, no entanto, promete é contar quem Anselmo ainda achava que era, poucos anos antes de morrer. Se não fosse pelo valor jornalístico que, a partir do primeiro episódio pode ser inferido, valeria só por esse registro do homem que, ainda que confrontado com a verdade, continua a gargalhar quando tem de responder à pergunta: “Você já matou alguém?” •