Um Dylan quase argentino
Em “Engenheiro Fantasma”, o poeta paulista Fabrício Corsaletti parte de um enigma para percorrer Buenos Aires como se fosse o cantor e compositor norte-americano
O Engenheiro Fantasma” inicia com uma espécie enigma: Fabrício Corsaletti conta um sonho no qual Bob Dylan, na verdade, teria fixado residência em Buenos Aires “trinta anos antes” para viver uma vida “pacata, ao mesmo tempo que não deixava de ser o autor de todas as canções que lhe renderam a glória”. O sonho leva o autor a sentar no computador e arriscar um soneto e assim prosseguir por mais nove dias, escrevendo sem parar até atingir a marca dos 56 sonetos.
É o que basta saber do prólogo para mergulhar nas páginas seguintes, onde os sonetos, forma meio esquecida, mas com métrica bastante rígida, vão se sucedendo, recontando os fragmentos dessa vida que Dylan teria escolhido em algum momento entre o final de 1980 e 1990.
Corsaletti, poeta & escritor, surgiu naquele bolo de escribas da chamada “geração 90” — paulista do interior, ele vive na cidade de São Paulo desde 1997 —, momento em que parecia relativamente fácil publicar, de forma independente ou não, e havia, por parte das editoras, uma tentativa real de descobrir novos talentos.
Uma parte razoável dessa geração não passou de um conto publicado em coletânea, um romance do qual todos os amigos em postos-chave do jornalismo cultural falaram bem ou um poema publicado em blog.
Corsaletti, no entanto, persistiu perseguindo a poesia que, num certo sentido, é o gênero literário aparentemente mais espontâneo e, ao mesmo tempo, o mais difícil. É preciso se afastar da espontaneidade para que cada poema não seja um amontoado de clichês, ou pior, de coisas já ditas por outros/as poetas.
A aposta deste “Engenheiro Fantasma” é bastante ousada: Bob Dylan teria, como morador de Buenos Aires, escrito por lá um volume intitulado “200 Sonnets”, que seria vendido pelas ruas da capital argentina em bancas de jornal e, portanto, esses 56 que Fabrício escreveu no ano um da pandemia quase como se fosse uma escrita automática ou de fluxo de consciência, de acordo com o prólogo, fariam parte dessa coletânea de 2000.
Contar mais do que isso é dar spoiler e tirar a graça de percorrer o olhar de Corsaletti tornado Dylan numa Buenos Aires literária, musical e mítica, no qual se misturam memórias inventadas de uma certa nostalgia dos Estados Unidos folk, aquele que formou o Bob Dylan real.
Imaginativos, vigorosos e engraçados, os versos plasmam essa vertigem real da criação artística, da certa embriaguez epifânica que faz da solidão do sujeito que percorre uma cidade nova com olhos velhos descobrir beleza em detalhes, em palavras novas, em línguas que ele não domina.
O que há de mais notável em “Engenheiro Fantasma” é o fato de que a forma do soneto, com métrica precisa e que data do século 14, se aproxima do esforço que as letras das canções tem de fazer para entrar no ritmo e na dinâmica do som.
Quando Dylan ganhou o Prêmio Nobel em 2016, o mundo da literatura ficou surpreso e chocado. O fato de ele não ter ido receber o prêmio foi considerado um ato de arrogância. Depois, muito cortesmente, mandou uma carta para a Academia Sueca agradecendo o prêmio, na qual ele afirma: “Nem uma vez eu tive tempo de me perguntar: ‘Minhas canções são literatura?’”
Num certo sentido, o que Fabrício Corsaletti, fã confesso do Dylan — compositor, poeta e escritor — é responder, com uma espécie de timidez sussurrante: “Putz, é tanta literatura que tive de inventar um duplo Dylan quase sul-americano para dar conta de todo esse amor.” Sim, porque todo poema é um canção desesperada de amor em suas múltiplas faces. •