Há um problema na análise do resultado fiscal de 2021. Há muito tempo os analistas trocaram o estímulo de demanda por uma abstrata ideia de aumento da confiança. O resultado está aí: a cada dia, aumenta o número de famintos  e desempregados

 

 

A equipe econômica fundamentalista de Jair Bolsonaro comemorou com grande entusiasmo o resultado fiscal de 2021 no qual o conjunto do setor público obteve um superávit primário de 0,75% do PIB — cerca de R$ 64 bilhões — e o governo central reduziu a diferença entre arrecadação e receita de R$ 743 bilhões em 2020 para R$ 35 bilhões em 2021. No início do ano, a meta era de um déficit de R$ 331,6 bilhões. 

Rapidamente, após o anúncio do resultado, diversos analistas econômicos apontavam para o óbvio ululante: a diminuição do déficit havia contado um um generoso empurrão da inflação que atingiu os dois dígitos, inflando as receitas.

A ajuda inflacionária é velha conhecida da economia brasileira. Ao longo dos anos 1980 e primeira metade dos anos 1990, a inflação foi responsável por mascarar um desequilíbrio orçamentário estrutural no país. Parte importante do debate sobre estabilização monetária se lastreava nesta interpretação. Não à toa, são os herdeiros desta tradição econômica que hoje — acertadamente — dizem que o governo está “vendendedo gato por lebre”.

Explicitar a fragilidade do resultado primário como sendo originado principalmente pelo efeito do aumento nominal das receitas é importante para denunciar o oportunismo característico da atual equipe econômica. Uma equipe que não é capaz de entregar o que promete há anos e nem de gerar qualquer melhora na economia do país. Entretanto, o que escapa mesmo aos analistas que se colocam na crítica do ufanismo do ministro Paulo Guedes é um olhar para a vida do povo.  

De um lado, se a inflação contribuiu para um aumento das receitas, na vida cotidiana ela representou aumento da fome. Enquanto os estados acumularam recursos por conta aumento do ICMS, a realidade enfrentada pelo trabalhador era da gasolina à R$ 7 e do botijão de gás passando dos R$ 100. Entre analistas para os quais a miséria não faz parte do cenário econômico, os comentários são descolados das urgências da população, defendendo sem mediações elevação do juros e reforçando o pedido por mais cortes.

Ainda mais grave é a ausência de qualquer menção à triste realidade desvelada pelos números apresentados pelo próprio Tesouro Nacional. Se em 2020, R$ 334 bilhões foram destinados ao pagamento do Auxílio Emergencial, em 2021 este valor caiu para R$ 63 bilhões.

Dos R$ 296 bilhões da diferença celebrada pelo governo e pelo mercado entre meta e resultado primário, R$ 271 bilhões tem nome: fome. Enquanto se acumulam famílias inteiras dormindo na rua, sem comida e nem condições dignas de vida, as páginas dos jornais celebram o corte do Auxílio Emergencial ao comemorarem que, em meio a uma pandemia e crise social sem precedentes, estejamos diminuindo a distância entre gastos e receitas.

Se há algum consenso entre economistas não fundamentalistas é de que precisamente nas crises existe uma importância fundamental do Estado, via política fiscal, de garantir renda e demanda para amenizar o impacto recessivo.

Há muito tempo os analistas brasileiros trocaram o estímulo de demanda — que 2020 está aí para provar como essas medidas são efetivas — por uma abstrata ideia de aumento da confiança.

O resultado está aí, a olhos nus. Não há nenhuma melhora de expectativas. E, além disso, a cada dia que passa, aumenta o contingente de famintos, desempregados e miseráveis. Ao lado dos quais agora se somam as vítimas das tragédias climáticas, agravadas por uma política que implica em cortes nos recursos destinados à prevenção de enchentes e deslizamentos. 

Não há confiança possível em um país que se omite diante do quadro social dramático em que vivemos. A política fiscal não existe para ajustar uma conta de subtração entre receitas e gastos, mas sim para garantir crescimento econômico e prosperidade compartilhada, aliando transparência e previsibilidade com responsabilidade social. •

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