Tempos sombrios, vozes caladas

Livro-reportagem conta as histórias das canções brasileiras censuradas no país depois do AI-5, o ato de exceção que instaurou os anos de terror depois do Golpe Militar de 1964

 

 

Gilberto Gil e Chico Buarque, já no palco, começam a cantar uma música nova, uma parceria inédita. Os dois, no banquinho, com violão, estão no palco do Palácio de Convenções Anhembi, São Paulo em um show que se chamou Phono ’73. O evento anunciava a mudança do selo Phillips, que detinha quase todos os grandes e consagrados nomes da MPB e lançava nomes da nova geração, para a PolyGram. O espetáculo tinha artistas de peso, como Vinícius de Moraes, aos recém contratados Sérgio Sampaio e Raul Seixas.

Na hora que Gil e Chico começam a tocar a melodia e o refrão da canção “Cale-se”, cuja letra, sabiam eles, havia sido vetada pela Censura Federal, cortaram o som do microfone de Chico. Ele se irrita, dá uma reclamada ao vivo e, depois, acaba abandonando o palco. Se hoje podemos ver essa cena quantas vezes quisermos nas redes sociais, é por que os artistas e a sociedade civil resistiram contra as arbitrariedades dos censores, a quem foi dado o poder de vetar, cortar ou proibir obras de arte e eventos culturais de toda a sorte durante a ditadura militar.

O jornalista João Pimentel e o escritor Zé McGill entretecem histórias como essa e tantas outras de quando a música brasileira se viu tolhida e constrangida pelo poder do Estado. Está no livro “Mordaça – Histórias de música e censura nos tempos autoritários”, lançado pela Sonora Editora 2021. Eles contam como os artistas eram obrigados a obedecer os critérios nem sempre muito claros do que podia ser dito ou não em letras de músicas, depois do chamado golpe dentro do golpe: a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

Quando os militares tomaram o poder em 31 de março de 1964, já havia um órgão censor. Ele zelava pela moral e os bons costumes de shows, peças de teatro e filmes etc. Chamava-se Serviço de Censura de Diversões Públicas, estabelecido ainda no governo Dutra (1946-1951). No entanto, é justo no pós-1964 que as artes e a cultura brasileiras experimentam uma fase de explosão criativa em quase todas as áreas. E foi exatamente por conta do fechamento do regime, da crescente politização e radicalização estética dos artistas.

Na música, o clima de torcida — ou de comício — dos festivais da canção nas emissoras de televisão, sobretudo os da Record em São Paulo, acirrava o clima de confronto e de rebeldia aberta aos militares. Some-se a isso o efeito dos movimentos internacionais da contracultura, que tiveram seus ecos aqui e influenciaram os comportamentos em relação à liberdade sexual das mulheres, às drogas e à identificação com movimentos pacifistas contra a Guerra do Vietnã e pelos direitos civis nos EUA.

Ou seja, à crítica política, em atos ou maneiras de de se expressar, os movimentos sociais ligados à juventude mesclavam a crítica política ao inconformismo com a volta da “caretice” e a vitória daqueles que haviam, lá em março de 1964, marchado por “Deus, família e propriedade privada” e contra “o perigo comunista”.

Em outras palavras, moças de minissaia, rapazes de barba e cabelos compridos, a agitação contestatória da esquerda ou quaisquer críticas ao regime eram considerados “perigosos” para a ordem & progresso preconizada pelos generais.

Depois de sufocados os movimentos políticos que fizeram a escolha pela luta armada, entre 1968 e 1972, em um período muito duro da repressão, com seu rosário de prisões, tortura, assassinatos e desaparecimentos, a Censura, paradoxamente, recrudesceu.

Organizou-se melhor, inclusive recrutando profissionais mais aptos para ler nas entrelinhas e interpretar metáforas e, assim, consolidou seu projeto de controle sobre o imaginário. Ou seja, não bastavam a punição e a vigilância para que o clima de “baderna” se reinstalasse. Era necessário prevenir que aquelas ideias, comportamentos e atitudes exóticas voltassem a contaminar o país.

Com fartíssima documentação e mais de 30 entrevistas, Pimentel e McGill conseguem traçar as idas e vindas dos humores dos censores, os malabarismos que os departamentos jurídicos das gravadoras tinham de inventar para poder continuar lançando os discos de artistas que, à época, além do prestígio, eram grandes vendedores de LPs e lotavam shows.

Com habilidade e texto fluido, ambos costuram a extensa pesquisa aos depoimentos de maneira que cada uma dos capítulos dá uma dimensão dos aborrecimentos, da sensação de derrota, mas também dos desvios criativos, argutos aos quais compositores e letristas recorriam para driblar, convencer, enganar ou afrontar os pareceres datilografados que vinham do DCP, o famigerado Departamento de Censura Pública, nome que a máquina de Censura assumiu em 1973.

Há dois elementos particularmente preciosos no livro “Mordaça”. O primeiro é a farta documentação consultada e reproduzida em fac-símile que permite ao leitor “ver” com os próprios olhos as letras com anotações e sublinhados, os carimbos e argumentos.

O segundo é o fato de seus autores terem saído do senso comum e contado histórias de artistas tão díspares de estilo de letras como Paulinho da Viola e Evandro Mesquista ou como Jorge Mautner e Paulo Sérgio Pinheiro. O que fazia determinada letra ser ou não censurada era sempre uma incógnita, um terreno pantanoso no qual um vocábulo corriqueiro ou um verso aparentemente simples era capaz de levantar as desconfianças dos perigos contidos nas palavras.

Odair José, por exemplo, teve censurada sua canção “A Primeira Noite de um Homem” (1974): “A primeira noite de um homem/ é uma noite tão confusa/ é uma noite tão estranha”. Segundo o parecer emitido a partir de Brasília: “O autor descreve suas experiências de uma primeira noite de amor, expressando com detalhes as emoções por que passa e todo condicionamento físico experimentado (grifo meu).”

O cearense Odair José era então um dos campeões do que se chamava de “brega”, de música que se tocava em rádio AM — havia uma clara distinção de classe social entre a programação de rádio AM para FM. Em seu disco anterior, a canção “Uma Vida Só” tinha sido vetada por conta do refrão, no qual o apaixonado pede que a amada pare de “tomar a pílula”, indagando: “Por que ela não deixa nosso filho nascer?”

A moral das mulheres era objeto de muita preocupação por parte dos censores. Em 1981, uma letra da cantora Joyce, “Eternamente Grávida” (“É bom viver eternamente grávida/De filhos, ideias, de sons/Em plena criação no meio de uma festa/Que é essa a função de dar à luz/Parir para mim é um prazer”) causou espécie, apesar de o AI-5 ter sido revogado três anos antes.

“Dois trechos foram considerados inaceitáveis pela Censura”, conta Pimentel. “O primeiro não era nem um trecho, mas uma palavra (grávida) por ser considerada ‘imoral’. O outro era a frase “parir para mim é um prazer’.” Ainda que em 1981 o Brasil tivesse um número considerável de mulheres no mercado de trabalho, e criando sozinhas os filhos, não se podia falar de forma tão — ah — crua sobre “os mistérios” femininos.

Se a dupla moral do machismo brasileiro, aquela que ainda viceja e separa as mulheres para casar das para transar, não podia ser desafiada, o que dizer das letras que registravam a debacle dos projetos da ditadura? Não parece ser uma coincidência que a Censura tenha sido muito mais ativa a partir de 1973, quando a crise do petróleo começa a ameaçar o ‘milagre econômico’ prometido pelos militares que, na versão deles, junto com o esmagamento da oposição, evitariam a “ameaça comunista”.

Quaisquer referências às mazelas do Brasil no presente não deviam ser mencionadas, isso sabemos das histórias como a de “Cálice”. Mas, no passado também não podia. Aldir Blanc e João Bosco suaram para conseguir liberar “Mestre-Sala dos Mares”, composição brilhante cuja ideia inicial era chamar-se “Almirante Negro”, numa espécie de samba-canção-enredo sobre João Cândido, o herói da Revolta da Chibata (em 1910), que ainda continha a seguinte descrição dos castigos corporais sofridos pelos marinheiros revoltosos: “rubras cascatas jorravam das costas dos negros pelas pontas das chibatas”. A descrição, de resto, que se referia ao passado tortura e maus-tratos dos 300 anos de escravidão no Brasil.

Em entrevista ao livro, João Bosco conta: “No departamento de censura tinha um balcão e a gente ficava ali, com a letra na mão, esperando atendimento. Um funcionário passava de um lado para outro e, às vezes, botava o dedo em cima de um trecho da letra. (…) Aí o dedo do cara do cara do balcão apontou para a palavra ‘negro’ e para ‘as pontas das chibatas’. Assim, a música foi ganhando outras palavras. A sorte era que o Aldir era craque em mexer na música, em driblar os caras sem alterar a estrutura, sem perder a força das imagens”.

“Lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça” também se presta para destacar a importância registrar em forma de livro as histórias da história da Censura nesse período. Especialmente quando nesta outra página infeliz da nossa história, a que vivemos desde 2018 com a eleição do ex-deputado miliciano, ex-capitão do Exército e que afirma que o erro da ditadura foi não ter matado mais. Estamos sob ameaça constante de retrocessos semelhantes. •