Câmara amordaçada, democracia em xeque
Graças às manobras de Arthur Lira e do Centrão, as minorias estão sendo silenciadas. Na casa do convencimento político, onde o debate deveria ser o ponto central, agora se carimbam projetos de interesse do governo para demolir conquistas civilizatórias
O deputado Arthur Lira, o presidente Jair Bolsonaro e o Centrão vêm se aproveitando de um momento excepcional na vida do país – a tragédia sanitária da covid-19, que já ceifou mais de 658 mil vidas – para implantar um verdadeiro regime de exceção no Parlamento.
Esse golpe foi dado por meio de uma mudança intempestiva no regimento da Câmara, com a alteração de ritos e procedimentos que vinham garantindo, ao longo da história, os direitos das minorias, aqui e em qualquer parlamento democrático do mundo.
A reforma regimental, liderada pelo presidente da Câmara, com apoio do Centrão, transformou o diálogo livre e plural, fundamento das democracias, num triste monólogo da maioria parlamentar, construída e alimentada com dinheiro público.
O novo Regimento, aprovado a toque de caixa, reduziu o tempo destinado à discussão das matérias em plenário. Minou-se, assim, o espaço para o debate, numa casa que se destina, paradoxalmente, ao confronto de projetos e de ideias por meio da fala, do ato de parlar.
Esse novo regimento também esvaziou o sentido de outra fase central do processo legislativo: as orientações de bancada. Por até um minuto, cabe a cada líder a prerrogativa de comunicar ao plenário e orientar seus liderados acerca da posição oficial do partido na votação a seguir.
Como, nas regras antigas, essa era uma fase, necessariamente, anterior ao processo de votação, o tempo que se levava da primeira à última orientação permitia, muitas vezes, a influência de um líder sobre o outro, com impacto habitual no resultado das votações.
O novo regimento alterou essa dinâmica e passou a permitir que a fase das orientações ocorra paralelamente às votações. Com as votações virtuais, acessíveis pelo celular, tem sido comum que todos os deputados já tenham concluído seus votos nos primeiros cinco minutos, muito antes das orientações dos, hoje, 28 líderes constituídos na Câmara dos Deputados. Esvaziou-se não só o sentido lógico da fase de “orientação”, mas também a possibilidade de os líderes exercerem influência um sobre os outros, numa casa destinada ao convencimento.
Outro atentado grave foi o fim dos limites temporais para as sessões deliberativas, que poderão ser mantidas indefinidamente, segundo o arbítrio do presidente, até que a pauta desejada seja vencida. Com tal medida, o regimento sepulta ainda mais um sagrado direito das oposições, em qualquer plenário: o exercício à divergência.
Com o fim da duração regimental das sessões, que poderiam ter durações máximas de cinco ou seis horas, impossibilitou-se que a parte interessada em adiar a votação da matéria buscasse embaraçar a realização de várias sessões sucessivas, uma seguida da outra. Isso porque, agora, só poderá haver uma sessão, pela duração que o presidente da Casa desejar. Sem se poder adiar uma votação, pelo fim do prazo de uma sessão, inviabiliza-se as divergências e açoda-se o aperfeiçoamento do debate no espaço em que ele deveria ser, por princípio, fomentado.
Trata-se de seríssima agressão às minorias, com evidente prejuízo a seu papel opositor, que tem mandato de parcela da soberania popular que, dessa maneira, acaba ficando sem a devida representação no Parlamento.
Rasgou-se um pacto que girava em torno do regimento da Câmara, que garantia o equilíbrio no funcionamento da casa. A onda despótica transformou a Câmara, onde o debate deveria ser o ponto central, em espaço para carimbar projetos de interesse do governo e demolir conquistas civilizatórias. E o golpe não para por aí.
Para um presidente que governa por medidas provisórias, é muito conveniente que o Congresso não instale as comissões mistas, instrumento constitucional e regimental para o debate e análise cuidadosa dos projetos. Tais comissões não vêm sendo instaladas mesmo com o funcionamento atual das comissões permanentes e temporárias.
Sem justificativa plausível, as medidas provisórias na Câmara vêm sendo levadas à votação diretamente em plenário, sem a necessária discussão e deliberação em comissões mistas, conforme prevê o artigo 62, parágrafo 9º, da Constituição Federal de 1988.
O amplo debate em tais comissões, entre deputados e senadores, é essencial para o amadurecimento dos temas junto à sociedade brasileira, sobretudo em relação a atos imbuídos de natureza urgente e relevante, como é típico das medidas provisórias.
Arthur Lira, ao fim e ao cabo, eliminou o principal espaço de discussão e do contraditório, transformando a aprovação dos projetos do governo, praticamente, num rito sumário. Ao mesmo tempo, também subverte a ordem cronológica de análise das medidas provisórias, pinçando ao seu bel prazer as matérias que entende relevantes, deixando outras mais urgentes, mais relevantes e anteriores para trás.
Assim, o parlamento discutiu a privatização da Eletrobrás, mas deixou de votar o valor do auxílio emergencial. Em outras palavras, no novo rito, vota-se e aprova-se o que o governo quer e não o que o povo precisa.
Por outro lado, foi também implantado o “voto surpresa”. A reunião do colégio de líderes, na qual se discutia previamente a pauta da semana, foi abolida. Exatamente ao contrário do que pregava Lira quando era candidato à Presidência da Câmara. Agora, as oposições vêm sendo surpreendidas por projetos e relatórios apresentados no dia da própria votação, sendo eliminada a possibilidade de quaisquer debates sérios e responsáveis, com a participação ativa da sociedade – o mínimo que se poderia esperar de um parlamento plural e democrático.
E o que dizer dos discursos de ódio? Das ameaças explícitas a deputados e deputadas? Das agressões físicas dentro do parlamento? São verdadeiras “milícias legislativas” em ação, que agem com a complacência e cumplicidade do presidente da Câmara.
Quando instado a se manifestar, Lira, cujo dever seria zelar, mais que qualquer deputado, pela manutenção da ética e decoro parlamentar, assustadoramente propõe que “os ofendidos procurem seus direitos”. Direitos que ele mesmo elimina, mantendo engavetadas, em sua mesa, todas as representações contra seus aliados, dirigidas à Comissão de Ética da Câmara.
O grave é que alterações desse tipo se revestem de legalidade, se aplicam “nos termos da lei” e “com o apoio da ampla maioria consolidada”. O golpe que agora amordaça a minoria, criando um verdadeiro regime de exceção na Câmara, coloca em xeque a democracia fundada no equilíbrio entre os Três Poderes. •