Entrevista | Fernando Haddad – “A elite brasileira tem que cair na real”
Ex-prefeito de São Paulo e o mais longevo ministro da Educação da história do país, Fernando Haddad não se conforma com a destruição do MEC. Líder na corrida pelo governo de São Paulo, Haddad diz que é hora de os democratas se unirem em torno de Lula para barrar o fascismo
O “balcão de negócios” montado dentro do Ministério da Educação é apenas mais um caso absurdo dentro do governo Bolsonaro. As negociações protagonizadas pelo quarto ministro da Educação do governo desde 2019 — e os dois pastores evangélicos — causam espanto em Fernando Haddad, o titular da mais longevo da história do Brasil. Ex-prefeito de São Paulo, Haddad não se conforma com os atuais nomes que comandam o MEC e lamenta a destruição de políticas públicas e instituições que o governo federal promove no Brasil.
Pré-candidato ao governo do estado de São Paulo, cargo para o qual o Partido dos Trabalhadores nunca elegeu um representante, Haddad afirma que é preciso ter responsabilidade com o capital político que somou até aqui. Por isso, espera que todos os democratas declarem apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Com fascista não se brinca”, alerta.
Na visão do professor, um eventual segundo turno entre Lula e Jair Bolsonaro seria marcado por estratégias de baixo nível do atual presidente da República, seu adversário em 2018. Haddad ainda não descarta que Bolsonaro atente contra a democracia brasileira e contra as instituições.
Focus Brasil — Como o senhor está vendo essa transformação do MEC em um balcão de negócios, tal como já foi flagrado no Ministério da Saúde e em outras áreas?
Fernando Haddad — É o maior escândalo de corrupção da história do Ministério da Educação. Veja, eu passei oito anos no MEC como secretário-executivo e ministro. O orçamento saltou de R$ 20 bilhões para R$ 100 bilhões. E nesse tempo todo, não existiu uma notícia sequer levantando suspeita sobre a conduta não só do ministro, mas de qualquer colaborador do ministério. Então, nas gestões dos governos petistas, falo por mim e pelos que me antecederam e sucederam nos nossos governos, foram 13 anos irretocáveis do ponto de vista da lisura no trato com o dinheiro público destinado à educação. Aquilo ali era um templo sagrado.
Para se ter uma ideia, um dos meus colaboradores, o presidente do FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] – órgão que está 100% aparelhado hoje – foi convidado para compor a equipe do Programa Mundial de Alimentos da ONU que dois anos atrás recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Esse é o nível dos colaboradores que tinhamos no MEC. Hoje, é essa aberração. O quarto ministro [Milton Ribeiro] de Bolsonaro, não deveria ter “dormido” no cargo desde que aqueles áudios vieram a público.
E é um drama horroroso. Estamos falando de dinheiro de merenda, de ônibus escolar, de livros didáticos… É disso que estamos falando quando nos referimos a emendas parlamentares. Esse ministro não poderia ter sido sequer nomeado. O pior de tudo é que nós não temos a menor segurança de que, com a sua queda, ele seria substituído por alguém melhor. Muito pelo contrário. Bolsonaro tem sido cruel nas substituições. Sempre consegue achar gente igual ou pior ao ministro que cai.
— A gente não tem nem a segurança de que a história vai ser devidamente investigada.
— Bom, o governo não tem mais controle interno, né? Não existe mais CGU [Controladoria Geral da União]. É bem verdade que isso já está assim desde o [Michel] Temer. Eu não sei se o Ministério Público terá ânimo de apurar a conduta do ministro e o descalabro na gestão do Ministério da Educação.
— Lula costuma dizer que o governo Bolsonaro é um governo de destruição. A gente pode mencionar aí, sem se aprofundar, Ibama, ICMBio, Funai, Receita, PF… Agora tem o próprio MEC. Como avalia esse processo de reconstrução que teremos caso Lula vença as eleições de 2022?
— E só não destruiu o SUS porque a pandemia não deixou. Sou a favor de uma ampla frente em torno da liderança do Lula. Acho que essa é a condição sine qua non para uma frente porque foi a pessoa mais vitimada pelo golpe. Mais até do que a própria Dilma, que foi a segunda maior vítima. Lembrando que Lula passou 580 dias naquela sede da Polícia Federal, em Curitiba. Quer dizer, o submeteram ao absurdo. No caso da Dilma, foi um crime também contra a soberania popular porque era um mandato legitimamente conquistado nas urnas e que não pôde ser concluído. Lula sequer pôde disputar a eleição. Há uma sucessão de crimes contra a soberania popular e nacional. Aliás, as duas coisas estão combinadas, venda de patrimônio público e corte de direitos. É nisso o que se resume a “Ponte para o Futuro”. Então, eu defendo uma ampla frente em torno da liderança do Lula, norteado pela restituição dos direitos do povo brasileiro e do país enquanto Nação. É disso que se trata, um processo de reconstrução. E quem quiser colaborar: bem-vindo. Muita gente está acordando… Eu fico um pouco surpreso com pessoas que ainda não acordaram para o risco que estamos correndo. A democracia corre risco diante das intenções de voto que Bolsonaro alcança depois de três anos destruindo o país. Ele aparece com algo entre 25% e 30%, independentemente da pesquisa. É um absurdo um cara desse disputar uma eleição. E um segundo turno de quatro semanas tendo do outro lado um fascista, podemos imaginar o que pode significar. Então, acho que todo gesto em torno do Lula é muito bem-vindo. Se a centro-direita tiver juízo, ela vem com o Lula no primeiro turno. Ela toda.
— O senhor falou sobre a emergência desse momento e gostaria de pedir que se aprofundasse um pouco. Os retrocessos no país são gigantescos. Mais quatro anos de Bolsonaro seria brutal.
— Mais quatro [anos]? Não. Não é que é brutal. Você nunca mais vai ter o Brasil como era projetado. Não vai acontecer a eleição de Bolsonaro, mas nos tornaríamos uma republiqueta pseudofundamentalista porque tudo isso é charlatanismo puro. É uma República de Charlatões, é disso que se trata. Esse é o projeto do bolsonarismo. Fiz um comentário na eleição de 2018 em que falei: “auri sacra famis”. É uma expressão conhecida que é a “fome sagrada por dinheiro”, por ouro. E está aí o cara pedindo propina em ouro. Achei que eu estava fazendo uma metáfora, só que não. Era uma previsão.
— Em 2018, o senhor surpreendeu o país ao conseguir mais de 30 milhões de votos em apenas 25 dias de campanha. Agora, é pré-candidato ao governo de São Paulo. Existe um grande entusiasmo nesse processo. Assim como o Lula, você também é pré-candidato de um movimento?
— Olha, eu acredito que esteja se constituindo… porque quando começa o processo você não sabe o que vai ser. Tem muitas pretensões legítimas de companheiros que podem postular o cargo, que foram candidatos, foram para o segundo turno de eleições importantes. Mas eu creio que os gestos, até aqui, do PCdoB, mais recentemente do PSOL, eventualmente a federação com o PV… Quem sabe a Rede “federe” com o PSOL e sente à mesa para negociar conosco um programa para São Paulo? Estamos trabalhando programaticamente. Vamos nos sentar à mesa para discutir programa. Eu acho que São Paulo pode ter pela primeira vez uma postulação progressista, ampla e competitiva. Estou falando de uma novidade no estado.
— Para além do movimento de partidos, existe uma movimentação das forças antifascistas, uma aliança social.
— Eu já estava sentindo isso da parte de setores organizados da sociedade, uma espécie de convocação para que a gente faça uma campanha diferente de tudo o que conheceu até aqui em São Paulo. E São Paulo tem que decidir se quer ser a Califórnia ou o Texas. Há quanto tempo estamos na retranca aqui? E a gente pode ser um estado inovador, que puxe ciência e tecnologia, indústrias de ponta, empregos de qualidade. Não vejo essa preocupação aqui. E é o que deveríamos nos preocupar. São Paulo precisa se modernizar, a cabeça precisa mudar, a transição ecológica precisa acontecer, as indústrias tecnologicamente avançadas precisam vir para cá… Eu não vejo iniciativa nessa direção e depende de um “estalo de dedos”. Você faz parcerias para trazer o que existe de melhor no mundo. São Paulo é um país, pô! Não é uma brincadeira isso aqui. É um país. A participação de São Paulo no PIB nacional faria do estado um grande país latino-americano por si só. Temos que ter a consciência de que São Paulo tem potencial de ajudar o subcontinente a atrair investimentos, grandes empresas e, também, de fomentar empresas locais. Tem muita criatividade em São Paulo que não encontra canal de expressão e o papel do Estado é criar esses canais.
— O senhor se referiu à aliança para governar o estado de São Paulo como ampla e competitiva. Como é isso?
— O PT sempre foi importante em São Paulo, mas o fato é que nós fomos uma única vez para o segundo turno com o [José] Genoíno em 2002. Em 1998 e 2010, tivemos candidaturas competitivas. Em 1998, a Marta [Suplicy] e, em 2010, o [Aloizio] Mercadante. Foram candidaturas que “chegaram junto”. Mas nós nunca começamos uma eleição beirando 25%, 30% dos votos. Hoje, temos condição de demonstrar uma força criativa para mudar o estado que, na minha opinião, é inédita. Isso pode, efetivamente, nos levar para o segundo turno numa condição em que a eleição nacional, com muita chance, estará sendo disputada por Lula e Bolsonaro. Isso é um contexto que a gente precisa ter a responsabilidade de administrar bem. É um capital político acumulado que exige muita maturidade para administrar e levar São Paulo à mudança.
— O desafio continua sendo aumentar o diálogo com a população do interior do estado?
— Olha, mais ou menos. A gente já governou quase 200 cidades do estado de São Paulo. Isso não é pouca coisa. Se você fizer um recorte pelo número de habitantes, já governamos 60% desse estado, talvez mais. As cidades que foram governadas pelo PT são as maiores. É Campinas, Santos, São José dos Campos, Ribeirão Preto, São Paulo, Osasco, Guarulhos, São Bernardo, Diadema e assim por diante. E nós também governamos pequenas e médias cidades, mas em número menor, proporcionalmente. Isso significa que o povo paulista sabe das experiências exitosas dos nossos governos, para não falar do governo federal. Só pra se ter uma ideia, um programa nosso, um único programa nosso, o PROUNI, já ofereceu para os paulistas quase 1 milhão de bolsas. É disso que estamos falando. Um programa só. E os outros? Pro-infância, institutos federais, Caminho da Escola… Só estou mencionando os da área da educação. Os governos federais que mais investiram no estado de São Paulo foram os nossos. Lembrando que nunca governamos o estado. Demos mostras de republicanismo porque mesmo quando era [José] Serra e [Geraldo] Alckmin], Lula fazia questão de investir e sempre teve boa relação com os governos paulistas. Chegamos ao ponto de comprar a Nossa Caixa pelo Banco do Brasil e o [José] Serra era candidato a presidente quando isso aconteceu. Ainda assim, bancamos a compra.
— Sem contar que o governo Bolsonaro não fez nenhuma obra ou programa para São Paulo.
— Nada. Não fez em lugar nenhum. Ele está aí fazendo propaganda da transposição [do Rio São Francisco] que o Lula e a Dilma realizaram 88% da obra. O Temer acho que fez 7% e ele fez uns 5% e está dizendo que fez a obra. Bolsonaro não tem o que apresentar. Então, como sempre, ele fica tentando roubar alguma coisa. Está sempre pensando em roubar, veja a Wal do Açaí falando claramente que o salário dela ía todo para o Bolsonaro.
— O que o senhor espera da campanha eleitoral sendo que existe um candidato bolsonarista que já aparece com força? A campanha em São Paulo pode repetir a polarização nacional?
— Eu acredito que isso possa acontecer. Não sei qual é a capacidade de transferência do Bolsonaro para o candidato dele [Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura]. Não sei a capacidade de transferência do [governador de São Paulo, João] Doria para o candidato dele. O que sei é que os dois governos, o de Bolsonaro e Doria, estão muito desgastados no estado. E são os candidatos à direita mais competitivos. Não temos que escolher adversário. Temos que saber o seguinte: são dois governos que fizeram mal ao estado de São Paulo. E na briga dos dois, quem pagou o pato foi a população. Bolsonaro e Doria vivem um “vidão” e o povo não consegue comprar feijão. Essa coisa de vida mansa para o Bolsonaro e para o Dória e vida sofrida para todo mundo, não dá.
E respondendo à primeira pergunta, eu acho que [a campanha] vai ser uma baixaria. O que o Bolsonaro vai fazer é uma grande baixaria. Os outros eu não sei. A chamada terceira via está muito fragmentada. Eles não têm unidade programática nem política e nem nada. Se somar tudo, não dá 20% [dos votos]. É um caso curioso em que a soma das partes é maior do que o todo. Se eles firmarem uma aliança em torno de um, cai de 20% para 10%. Então, o dilema é grande.
— A pandemia foi uma tragédia nacional que salvou o SUS. E, em São Paulo, a pandemia salvou o Butantan, porque antes o Doria tentou vender o instituto.
— Ele queria se livrar de tudo. Doria tem pavor do que é público. Até uma rua lá em Campos do Jordão ele quis se apropriar. Quer dizer, até rua pública é um problema para ele. Mas o povo conhece o Doria hoje melhor do que em 2016. A gente alertava sobre ele quando as pessoas deram um voto de confiança. Acho que hoje a situação é outra.
— O senhor era prefeito quando o Geraldo Alckmin era governador. Essa aproximação dele a partir das conversas com Lula, a filiação ao PSB e o próprio discurso dele enaltecendo o ex-presidente e PT. Como vê isso tudo?
— Eu torço para todo mundo fazer o que o Alckmin fez. Essa é a minha torcida, que todo mundo apoie o Lula. Se todo mundo apoiar o Lula, eu vou ficar feliz da vida. Deixa os fascistas do lado deles e os democratas todos deveriam seguir o exemplo do Alckmin. Todos deveriam apoiar Lula no primeiro turno. É isso o que deveria acontecer. Essa é a minha opinião. Não se brinca com fascista. Isso é o que a história ensinou. Se todo democrata apoiar o Lula no primeiro turno, todos devem ser aplaudidos. Essa é a minha opinião, do fundo do meu coração. Não é raciocínio eleitoral, é do fundo do meu coração.
— Se não fosse a reação das forças democráticas, da mídia e do STF, Bolsonaro tentaria um golpe?
— Ele tentará. Não é que tentou. Vai tentar. Enquanto ele tiver chance, vai atentar contra as instituições democráticas. Agora, polarizou de uma vez. Esse negócio de terceira via já era uma piada dois anos atrás. Em 2019, dei uma entrevista dizendo: “não existe possibilidade de acontecer nada disso que vocês estão imaginando”. Ainda me perguntaram do Ciro [Gomes] e do Doria. Na época, não tinha nem Moro. Eu dei uma entrevista ao UOL dizendo que era muito difícil Doria e Ciro decolarem porque eles vivem uma crise de identidade, você não sabe o que eles são mais. Doria é uma espécie de plano B do Bolsonaro. E o Ciro, uma espécie de plano B do Lula. Não tem viabilidade. São cálculos quase infantis que ficamos fazendo quase dois anos. A mídia forçando, discutindo o que não existe. É o famoso terraplanismo. Nada contra terem tentado também, mas quantos “terceiravaiers” teve aí no planeta? Foram uns 15: [Luciano] Huck, [José Luiz] Datena, [Luís Henrique] Mandetta… testaram tudo.
— Com relação à corrida presidencial, o senhor foi advogado de Lula e acompanhou de perto a Lava Jato. Como o senhor vê essa normalização da candidatura de Sergio Moro?
— Não, mas não tem nada normalizado. Me desculpe…
— Mas a imprensa o trata como se ele não tivesse sido considerado suspeito pelo STF, como se a Vaza Jato não tivesse exposto que ele combinava o jogo.
— Ah, bom. Mas a imprensa se não tratá-lo com credibilidade, ela própria vai se descredibilizar. Foi a grande imprensa que deu credibilidade a ele. É difícil para ela fazer uma autocrítica e reconhecer que Moro não tem nenhuma credibilidade nem no Brasil nem no exterior. Ele está dando entrevistas na frente de prédios públicos lá na Alemanha, não sei se você viu… Fica nos jardins de prédios públicos porque não consegue mostrar com quem se reuniu. Não tem contraparte nos países que ele está visitando. Lula foi lá, o [Emmanuel] Macron o recebeu. No México, o [Juan Manuel] Lopez Obrador o recebeu. Na Argentina, a Cristina [Kirchner] e o Alberto Fernández o receberam. Moro foi recebido pelo gramado do Reichstag [parlamento presidencial alemão]. E aparece um cidadão ao lado dele que ninguém sabe quem é e que está comentando a visita. Rapaz, nós estamos numa encrenca. Essa elite brasileira precisa cair na real porque ela fala em meritocracia, mas escala os piores para representá-la.
— Existe uma grande discussão com relação aos cargos executivos que estão em disputa nessas eleições, mas é preciso que se tome consciência e que se fale sobre a importância de eleger legisladores progressistas.
— É. Tem que vir de ponta a ponta. Vem com a nossa federação. Nós temos candidatos para todo gosto.
— Inclusive, temos na esquerda um candidato a deputado que não é do PT, mas que apoia sua candidatura e a do Lula e que pode ser um campeão de votos progressistas em São Paulo: Guilherme Boulos.
— Sim. O nosso campo tem grandes nomes. O PT tem uma bancada extraordinária e espero que todos reconheçamos o trabalho desses companheiros e companheiras. Temos que dar um voto de confiança a todos. Temos que ampliar nossa bancada e temos os companheiros do PV e do PCdoB que compõem uma federação com a gente por quatro anos. Ou seja, é um casamento muito mais sólido do que aquela brincadeira que era a coligação . E temos a chance de fazer uma coligação de federações. No plano nacional, a coligação em torno do Lula. E, quem sabe aqui em São Paulo, vamos fazer um esforço grande para estarmos coligados também. •