Ex-presidente da Petrobrás, o economista baiano diz que o governo está destruindo a maior estatal do Brasil, ao promover seu desmonte, em meio à mais grave crise geopolítica desde o fim da Guerra Fria. “Precisamos ampliar o parque de refino no Brasil. Hoje, importamos 30% do GLP e do diesel, e 20% da gasolina porque estamos com dificuldades de produzir derivados, apesar de termos petróleo”, alerta

 

 

Os preços dos combustíveis estão explodindo no Brasil desde antes da eclosão da guerra da Ucrânia. O conflito só piorou a situação, já fez o preço do barril de petróleo atingir US$ 139 e deve subir ainda mais. A proibição da importação do petróleo russo para os EUA é um dos fatores que vão provocar mais aumento. Os preços no Brasil pipocaram: aumentos anunciados na quarta, 9, pela Petrobrás variam entre 18% e 25%.

A tentativa de controle dos preços é algo inédito no governo Bolsonaro e, apesar de anunciado pela mídia, não ocorreu. Desde o Golpe de 2016 o Brasil adotou uma política de paridade com os preços internacionais, o que permitiu que o litro da gasolina chegasse a R$ 8 em alguns estados. A eventual mudança de atitude é resultado da pressão eleitoral, de acordo com o ex-presidente da Petrobrás José Sérgio Gabrielli.

O fortalecimento do real frente ao dólar é um dos fatores que ajuda no amortecimento das pressões sobre a Petrobrás para o aumento dos preços dos combustíveis. O problema é que o desmonte da estatal provocado pela Lava Jato, mas também por decisões estratégicas tomadas internamente, fez com que o Brasil ficasse dependente da importação de derivados de petróleo e com pouca atuação no setor.

“Hoje, somos um país que passou a ser importador de derivados de petróleo e exportador de petróleo cru, o que é o pior dos mundos”, afirma Gabrielli, que esteve à frente da Petrobrás entre 2005 e 2012. A situação agora faz com que acionistas da Petrobrás ganhem “rios de dinheiro” e o país fique com pouco.

A movimentação de Jair Bolsonaro para tentar reduzir os preços ou evitar que subam ainda mais depende da eleição do Conselho Administrativo da Petrobrás, que ocorre em abril. “É preciso tirar parte do lucro dos acionistas”, defende o ex-presidente, que explica ainda que essa é uma decisão que depende apenas de uma opção política.

Apesar disso, ele não acredita que Bolsonaro vá tomar as medidas necessárias para resolver o problema. Nesta entrevista à Focus Brasil, Gabrielli diz ainda que não acha possível que a Europa proíba importação de gás natural da Rússia. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

 

Focus Brasil — A Rússia está entre as maiores exportadoras de petróleo do mundo. Como fica a crise agora?

Sérgio Gabrielli — É verdade que a Rússia é um dos grandes exportadores de petróleo do mundo. Ela é mais exportadora de gás do que de petróleo. Tem uma característica que vale a pena chamar a atenção: a maior parte do petróleo russo é pesado e com alto teor de enxofre. Esse petróleo pesado é usado em refinarias menos sofisticadas, menos complexas. É usado, predominantemente, nas refinarias do Leste da Europa, em algumas da China e em algumas asiáticas antigas e na África.

Dentro dos EUA, o petróleo pesado também é utilizado por algumas refinarias e é misturado com o petróleo leve quando você tem uma planta com alta capacidade de trabalhar com transformação do petróleo pesado em derivados leves como querosene de aviação, gás de cozinha, gasolina e diesel.

Então, o mercado atendido pela Rússia atinge um conjunto de refinarias no mundo que tem no petróleo pesado a maior parte da sua carga a processar. É mais barato do que o petróleo leve e, portanto, acaba sendo um petróleo que baixa o custo de produção do refino nesses países.

 

— O jogo mudou no mercado com a proibição dos EUA.

— Com a guerra, que é apenas um agravamento da crise da oferta de petróleo no mundo, principalmente, da redução de investimentos da década de 2010, essa retirada do petróleo russo já provocou uma elevação dos preços de petróleo. O Brent atingiu US$ 139. O valor é alto e a velocidade de crescimento também está muito alta.

O anúncio do presidente Joe Biden impedindo a importação de petróleo russo para os EUA vai provocar mais impactos negativos sobre os preços que vão subir mais, principalmente porque a alternativa ao petróleo russo, ironicamente, é Irã e Venezuela. Os EUA estão numa situação complicada. Já mandaram uma missão para negociar com a Venezuela, outra para o Irã e agora querem radicalizar contra a Rússia. Mas o efeito será dramático.

 

— O senhor falou do petróleo, mas e o gás natural que a Rússia exporta para a Europa? Há possibilidade de proibição?

— É impossível a Europa deixar de usar o gás da Rússia. Ele é quase 50% da oferta de gás da Europa. Evidentemente que há volume de terminais de regaseificação nos portos europeus que permite a entrada de gás natural liquefeito (GNL), vindo da Austrália, do Qatar, de Trinidad e Tobago e dos próprios EUA. Mas o volume é insuficiente para substituir o gás transportado pelos gigantescos gasodutos que ligam a produção russa à Europa. Depois das crises de 2009 e de 2014, várias alternativas foram tentadas para ampliar a oferta de gás vinda do Norte da África, da própria Rússia para a Alemanha pelo Mar Báltico, o gasoduto NordStream 2, que está pronto, mas sem operar por razões geopolíticas.

 

— Não é uma questão simples.

— A situação de dependência da Europa ao gás russo é muito grande. Estamos vivendo uma situação especial porque com a retomada do crescimento da China, que também é um grande consumidor do gás russo por gasoduto… a China acelerou seu crescimento em 2021 e ao fazê-lo passou a ser uma grande consumidora de GNL.

Com isso, os preços do gás no mercado asiático subiram muito, extraordinariamente, e continuam subindo em 2022. Isso faz com que o preço da energia elétrica na Europa já esteja em condições extremamente elevadas para os consumidores europeus. Essa situação faz com que a saída do GNL seja extremamente cara e, portanto, inviável do ponto de vista econômico.

 

— A partir da ascensão de Michel Temer e, depois com o Bolsonaro, a Petrobrás mudou o eixo. Um dos objetivos centrais da Lava Jato foi destruir a Petrobrás. Criada por Getúlio Vargas para ser uma empresa estratégica no desenvolvimento nacional. A empresa teve papel estratégico, nos governos do PT. Como o senhor avalia o desmonte do setor? Tem geopolítica por trás disso?

— Eu concordo, mas acho que é mais ainda.  A Lava Jato não teve só o objetivo de destruir a Petrobrás. Quis quebrar a engenharia nacional e derrubar o governo. É mais do que destruir a Petrobrás. A engenharia brasileira de grande porte estava começando a competir com a americana e europeia na América do Sul, África e até dentro dos EUA, antes de ser desmontada pela Lava Jato.

E foi desmontada não só pela Lava Jato, mas também por mudanças de estratégia da própria empresa. Mudanças levaram a reduzir o tamanho da empresa e dar prioridade aos pagamentos da dívida de curto prazo e de dividendos. Estamos hoje pagando esse preço. A crise é mais absurda porque temos produção de petróleo maior do que necessitamos. Somos exportadores. Exportamos quase 1 milhão de barris por dia em 2021. Na margem, somos hoje um grande exportador de petróleo. Produzimos mais do que usamos nas refinarias: 70% vem das áreas do pré-sal desenvolvidas nos governos Lula e Dilma. O que a Petrobrás tem hoje de produção é graças à herança bendita que recebeu dos governos Lula e Dilma.

É bom lembrar que os opositores diziam que o pré-sal era um mito, não existia, era algo economicamente inviável. Mas isso é outro problema mais grave para o consumidor brasileiro. As refinarias estavam para ser construídas… Nós precisamos ampliar o parque de refino no Brasil. Hoje, estamos importando quase 30% do GLP brasileiro, quase 1/3 do diesel e 20% da gasolina porque estamos com dificuldades e limites na capacidade de produzir derivados, apesar de termos petróleo. Não temos capacidade no refino para produzir os derivados necessários. Os governos Temer e o Bolsonaro optaram por, em vez de tentar continuar a montagem das refinarias, ampliar o número de importadores de derivados. O Brasil tem mais de 390 empresas que importam gasolina, diesel, GLP, querosene de aviação, óleo lubrificante e etc. Somos um país que passou a ser importador de derivados de petróleo e exportador de petróleo cru, o que é o pior dos mundos. Com isso, podemos até ganhar quando o preço do petróleo sobe, porque vendemos a preços de exportação mais caros, mas como importamos, pagamos o frete de ida e o de volta, e o valor final fica mais caro. Consequentemente, estamos tendo perda social enorme com tal política.

Para compensar, precisamos ampliar a capacidade de refino e isso não se faz de um dia para o outro. Uma refinaria leva de quatro a cinco anos para sair do projeto para a produção e mais ou menos um ano para projetar uma planta de refinaria. Então, consequentemente, são cinco ou seis anos para construir uma.

 

— Tem saída?

— É preciso tomar medidas de curtíssimo prazo para minorar os impactos da alta do preço sobre os consumidores. Não é possível fazer isso com uma medida só. É preciso uma combinação que vai desde tirar parte do lucro dos acionistas da Petrobrás — e tem que tirar — até tirar parte da tributação porque tem que haver um pouco de transferência de recursos fiscais para diminuir o impacto sobre o consumidor final. E temos que viabilizar a expansão e a melhor eficácia do sistema de logística e de produção nacional de tal maneira que tenhamos mais armazenagem, mais capacidade de gerir a variação dos preços no curto prazo. Não precisamos passar todas as variações de preço a cada dia ao mercado interno. Se não fizer isso e ficarmos só tentando conter o preço do combustível, vamos criar uma bomba de efeito retardado. Dizíamos isso em 2018 quando houve a greve dos caminhoneiros.

Aquela medida era paliativa, mas se não fosse acompanhada de outras medidas de médio e longo prazo — tanto do lado da oferta como do lado da demanda… porque você também tem que eletrificar a frota, aumentar a eficiência dos rotores, você tem que fazer controles de qualidade do uso do combustível. Toda uma série de medidas para ter um impacto de curto prazo e de médio prazo porque os preços do petróleo sobem e descem.

 

— Biden decidiu proibir a importação de petróleo russo. Você disse que isso vai fazer com que os preços subam muito, mas não existe uma lógica para o cálculo desse preço?

— O petróleo é como jogo de futebol. Você compra o ingresso mais caro na mão do cambista. Quando tem um “jogo extraordinário”, uma demanda muito grande… O petróleo é isso. O preço não é dado pelo custo de produção, mas pela disposição do consumidor de pagar um preço mais alto. Portanto, o preço do petróleo dá uma renda gigantesca a quem produz com baixo custo. A Petrobrás está ganhando uma baba de dinheiro. Hoje, para tirar o petróleo de fundo do mar e colocar em cima do navio, o custo de extração é de US$ 2 a US$ 3 por barril. Se você pegar todos os custos, segundo a própria Petrobrás, o chamado CTPP, deve ser em torno de US$ 29 por barril. Isso incluindo todo o custo. E o barril está sendo vendido hoje a US$ 129. O ganho é de US$ 100 por barril. É uma baba de dinheiro. Você pode diminuir isso sem ter prejuízo para o acionista. Não tem porque o acionista ter prejuízo. Agora, não precisa ganhar esse absurdo.

 

— Quer dizer, o país joga riqueza fora.

— Sim. E não só isso. Aconteceu com as refinarias, as Fafens [Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados]. A Petrobrás fechou as Fafens na Bahia e em Sergipe, vendeu a fábrica do Paraná, suspendeu a construção das plantas em Mato Grosso, Espírito Santo e Minas Gerais. Com isso, ficamos dependentes 85% da importação de ureia e amônia, dos fertilizantes nitrogenados. Estamos totalmente dependentes da importação do exterior. Por coincidência, grande parte é importada da Rússia. Consequentemente, com a guerra, temos um problema gravíssimo para o agronegócio. No potássio, também estamos com situação grave. Nossas principais jazidas conhecidas estão em Sergipe e no Amazonas e produzem muito pouco. Os investimentos são baixos e a lógica foi de importação. Então, do NPK, nós só temos o K que é o fosfato que o Brasil tem uma participação um pouquinho maior na cadeia da produção de alimentos, o que vai levar ao aumento do custo, à inflação e a mais problemas para o povo.

 

— No momento, Bolsonaro vem negando tudo o que sempre fez e começou ainda a falar em mudar a lógica do cálculo dos preços dos combustíveis. Isso é possível para esse governo?

— Possível, é. Mas quem define o preço dos combustíveis é a diretoria da Petrobrás que, evidentemente, segue as orientações estratégicas do Conselho de Administração. E o governo tem maioria no conselho, mas escolheu, nos últimos anos, pessoas ligadas ao mercado financeiro para compô-lo. E o conselho tem limitações, não pode definir estratégia de prejuízos. Tem que definir estratégia e optar por valorização de médio prazo do capital da empresa versus valorização de curto prazo. Mas não pode definir uma política de prejuízo aos acionistas. Só que pode diminuir a lucratividade de curto prazo visando aumento do valor do capital no médio e longo prazo. Se vai fazer isso ou não, acho que vai depender… Mas o atual conselho dificilmente vai fazer isso. Vai haver mudança. Em abril ocorrem as eleições e o conselho vai mudar. Os novos integrantes parece que serão menos ligados ao mercado financeiro do que o atual. Mos últimos dois anos, a Petrobrás vem diminuindo a dependência do mercado dentro do conselho e voltando mais para uma lógica industrial, produtiva. Se isso vai levar a uma mudança da política de preços, eu não sei.

 

— A acusação que Bolsonaro faz contra os estados, de que a culpa é deles pelos altos preços dos combustíveis, é mentira?

— É mentiroso, sim. Os governos ganharam aumento da arrecadação de ICMS. Isso é fato. Mas o ICMS não aumenta o preço. Ele captura o aumento do preço que veio da Petrobrás que ajusta os valores na refinaria. Dada a falta de competição maior na distribuição, porque a Petrobrás saiu da distribuição com a venda da BR Distribuidora, e na ponta os postos de gasolina acabam tendo um comportamento cartelizado regionalmente, você tem uma situação em que os preços foram pressionados para cima. Os governadores decidiram congelar em termos nominais o valor do ICMS. E nem por isso os preços deixaram de subir.

 

— As eleições estão se aproximando e há possibilidade real de uma vitória do ex-presidente Lula. É preciso um processo de reestatização para que o país possa voltar a ter tranquilidade?

— Não é uma questão eleitoral. Se nós pensarmos que queremos crescer, com inclusão social, com o povo melhorando as condições de vida, vamos aumentar o consumo de derivados de petróleo. Isso é inevitável. As pessoas vão andar mais, comer mais, usar mais transporte, mais diesel, mais gasolina… Vai ter que ter mais gás de cozinha. E, portanto, vamos aumentar a demanda por derivados. Com isso, vamos estrangular mais ainda a situação da capacidade de refino que temos. Se não tivermos capacidade, criaremos um problema de limitação da expansão. Portanto, o papel do Estado e do Estado através da Petrobrás é estratégico. O fornecimento de derivados de petróleo, a questão energética e alimentar não podem ser tratados como mercadorias. São produtos estratégicos, parte do projeto de segurança nacional e de segurança energética.

A guerra da Ucrânia está demonstrando isso de forma clara e o comportamento do mercado internacional em relação à geopolítica mostra que mesmo que alguns que acreditam em fadas digam o contrário, o petróleo, o gás e a energia são fundamentais para qualquer política de crescimento. Portanto, o papel do Estado é indispensável na retomada de um modelo de crescimento com garantia de abastecimento de combustíveis e de alimentos.

 

— No curtíssimo prazo não há muita solução.

— Não. Isso é uma solução de médio e longo prazo. No curto prazo, vamos ter uma arbitragem dos ganhos e o governo precisará se meter nesse negócio, tirando um pouco dos acionistas, dos governos e dos consumidores. A proporção de cada coisa é uma opção de governo. Bolsonaro vai caminhar, dada a pressão eleitoral, para aumentar a contribuição dos governos e parte, de forma insuficiente, dos acionistas. Mas vai manter um certo custo para o consumidor. Poderíamos ter um mix diferente. Poderíamos penalizar os acionistas que estão recebendo R$ 100 bilhões de dividendos e vão pagar zero de Imposto de Renda. Poderíamos criar alguma coisa que é comum, nada socialista, uma tributação especial para ganhos extraordinários. Isso permitiria capturar parte desses recursos e redirecioná-los a reduzir o impacto sobre o consumidor dos preços dos derivados.

É uma opção política. A discussão que está ocorrendo no Senado vai levar a essa opção. Do jeito que está… o projeto foi muito modificado, inicialmente tinha um imposto sobre exportações que me parece uma coisa importante porque temos que diminuir o ganho já que o lucro das exportações brasileiras é obsceno, é gigantesco. Teríamos que diminuir esse ganho de exportações para ajudar o consumidor e teríamos que pensar em diminuir a lucratividade do acionista. Não apenas do dividendo do governo, mas do acionista como um todo. •