Transformações na agricultura brasileira
O Brasil pode e deve continuar a exercer protagonismo na oferta global de alimentos, obtendo receitas cambiais importantes para o financiamento do desenvolvimento do país. Mas, ao mesmo tempo, precisa contribuir para o enfrentamento da fome e da crescente demanda alimentar global
De meados 2020 a meados de 2021 um grupo de estudiosos dos temas rurais e integrantes dos movimentos sociais do campo empreendeu reflexões em busca de interpretações e alternativas de enfrentamento político dos diversos fenômenos que definem a realidade agrária contemporânea do Brasil.
Foram momentos de debates e períodos de elaboração sob o abrigo do NAPP Agrícola e Agrário da Fundação Perseu Abramo (FPA) que gerou como primeiro produto o capítulo setorial do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil. Com foco no nivelamento das dimensões estruturais dessa realidade, buscou-se, também, lançar luz sobre os retrocessos sociais, econômicos, fundiários e ambientais observados desde o Golpe de 2016, com as proporções superlativas e motivações dolosas observadas no governo Bolsonaro.
Os desmontes processados reverteram o ciclo histórico virtuoso iniciado em 2003, marcado pelo reconhecimento e mitigação em algum grau dos danos sistêmicos associados à agricultura de larga escala; pelas políticas robustas de assentamento de trabalhadores rurais e de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa; e pela efetivação de direitos das populações indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de um modo geral.
Desse esforço resultou o segundo produto do NAPP Agrícola e Agrário incluído no livro da FPA sobre os desmontes recentes das políticas e instituições que no período inicial do século 21 deram suporte às estratégias de ascensão social no Brasil. Dado o grau de incontinência nos desmontes, a direção da Perseu Abramo resolveu orientar os NAPPs pela atualização do texto do plano.
No mérito, o processo de revisão levado a cabo pelo NAPP Agrícola e Agrário defende que o Brasil pode e deve exercer protagonismo na oferta global de alimentos, obtendo receitas cambiais importantes para o financiamento do desenvolvimento do país, ao mesmo tempo em que, via comércio ou ações humanitárias, contribua para o enfrentamento da fome e da crescente demanda alimentar global. Porém, rechaça o “vale tudo” interno que em grande medida move essa estratégia em benefício dos capitais que controlam o agronegócio exportador, à revelia de interesses nacionais.
O ensaio postula que acima dessa função externa da agricultura brasileira deva se impor os interesses da segurança alimentar e nutricional interna; a inviolabilidade territorial de minorias étnicas do campo; a democratização das políticas setoriais e a função ambiental da agropecuária em benefício dos brasileiros e dos esforços globais requeridos pelo estado de emergência climática.
As reflexões do NAPP corroboram o entendimento segundo o qual a diversidade e a gravidade das contradições, pobreza extrema, e demais iniquidades disseminadas nas áreas rurais do Brasil derivam, em última instância, da mãe de todas as desigualdades: a absurda assimetria na estrutura de posse da terra.
No Brasil, os minifúndios — imóveis com áreas insuficientes para o sustento de uma família — representam 66% do número total de imóveis rurais, mas ocupam apenas 7,5% da área total. No outro extremo, 2,3% dos imóveis — as grandes propriedades — controlam 61% das terras.
Este ‘monopólio’ da terra, que reverbera na política, em alguns casos, por meio de organizações seccionais hiperativas de extrema-direita, resulta em níveis excepcionais de controle sobre os poderes públicos e, portanto, na configuração de políticas públicas excludentes, alheias ao interesse do país, e na apropriação dos orçamentos públicos.
Assim, subjugam as demais classes sociais do campo e, particularmente na quadra atual, sentem-se livres para o cometimento de crimes de toda ordem. Claro que este perfil político não pode ser generalizado. Há contradições internas à própria base primária da agricultura e nos demais elos das cadeias do agronegócio — amplificadas com a consciência dos efeitos danosos da crise climática sobre o os interesses do setor — que propiciam importantes espaços de diálogo para a viabilização de um processo de mudanças indispensáveis na busca de atributos ambientais e democráticos pela agricultura brasileira.
Diante desse quadro, a atualização do conteúdo setorial do Plano de Transformação e Reconstrução do Brasil proposta pelos membros do NAPP Agrícola e Agrário sugere a revisão das bases de organização da agricultura brasileira obviamente numa perspectiva gradualista que, sem gerar riscos à estrutura produtiva do setor, conduza de forma efetiva:
- a) para a transição ecológica da sua base técnica;
- b) para fundamentos democráticos das políticas agrícola e agrária, em especial, na perspectiva do fortalecimento da funcionalidade da agricultura familiar para a garantia da segurança alimentar e nutricional da população brasileira; e
- c) visando ações de proteção das populações vulneráveis do campo e dos demais interesses da sociedade brasileira. •