A homenagem de Alceu ao grande Jackson do Pandeiro
Em 1971, o pernambucano Alceu Paiva Valença, advogado e jornalista nascido em São Bento do Una, mas vivendo em Recife, decide abandonar as lides jurídicas e da imprensa e enveredar de vez pela carreira artística. Largou a profissão de repórter na sucursal do Recife do Jornal do Brasil e embarcou para a Cidade do Rio de Janeiro. Levava na mão um violão, algumas canções e muitos sonhos. Dava assim início a uma jornada de sucesso na Música Popular Brasileira. Fez o certo!
Lá se vão cinco décadas de carreira. Coerente com suas tradições nordestinas, Alceu sempre fez questão de publicamente exaltar esse traço de brasilidade e de compromisso com as raízes da cultura brasileira. Recentemente, em 31 agosto, escolheu a comemoração do 102º aniversário do cantor e compositor Jackson do Pandeiro (1919-1982) para render nova homenagem.
“Conheci Jackson do Pandeiro em 1972, quando o convidei para cantar comigo e Geraldo Azevedo no Festival Internacional da Canção daquele ano”, lembra. “Eu havia composto ‘Papagaio do futuro’, que falava em metáforas sobre a crise do petróleo vivida no período e, por se tratar de uma embolada, achei que Jackson traria algo de especial à canção”. Eles foram procurá-lo e quase não sai a parceria. Ao ouvir Alceu cantar o coco, um arredio Jackson abriu o sorriso e deixou a desconfiança de lado. E gritou para o povo de casa: “Venham ouvir isso aqui. Esses dois cabeludos não são cabras safados, não”.
Alceu apresentou a canção em estilo da embolada e virou um cult. Diz a letra: “Estou montado no futuro indicativo/ Já não corro mais perigo, nada tenho a declarar/ Terno de vidro costurado a parafuso/ Papagaio do futuro num para-raio ao luar/ Eu fumo e tusso fumaça de gasolina”.
Começava ali uma brilhante carreira do músico, cantor e compositor que o levaria em pouco tempo ao sucesso. Sua estreia no Rio se deu com a música “Planetário”, no Festival de música da extinta TV Tupi. O debut não foi muito alvissareiro, pois a orquestra que fazia as bases musicais do festival não conseguiu tocar o arranjo feito por Alceu.
Em 1972, junto com o amigo e parceiro Geraldo Azevedo, Alceu lançava o álbum “Quadrafônico”, pela Copacabana. Dali passou pelo cinema em 1974, estrelando o filme “A Noite do Espantalho”, dirigido por Sérgio Ricardo (1932-2020). O filme foi indicado ao Oscar de 1975, na categoria filme estrangeiro. A canção “A Noite do Espantalho” foi lançada em disco também em 1974.
Pela Som Livre, Alceu grava três LPs: “Molhado de Suor”, “Vivo” e “Espelho Cristalino”, todos com mais de 100 mil cópias vendidas, dando a ele “discos de ouro”. Um sucesso merecido. A letra de Espelho mostra um Alceu inspirado: “Essa rua sem céu, sem horizontes/ Foi um rio de águas cristalinas/ Serra verde, serra molhada de neblina/ Um olho d’água sangrava numa fonte/ Meu anel cravejado de brilhantes/ São os olhos do Capitão Corisco/ E é a luz que incendeia meu ofício/ Nessa selva de aço e de antenas/ Beija-flor, tô chorando suas penas/ Derretidas na insensatez do asfalto/ Mas eu tenho um espelho cristalino/ Que uma baiana me mandou de Maceió/ Ele tem uma luz que alumia/ Ao meio-dia clareia a luz do sol”.
A presença de palco sempre foi um diferencial na trajetória do conterrâneo de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Influência que tanto Alceu faz questão de destacar. Em “Vivo”, gravado no show “Vou Danado Pra Catende”, grande sucesso de público e de crítica, Alceu permaneceu em longa temporada no teatro Tereza Raquel, no Rio. Nesse espetáculo também se inicia uma parceria com o lendário guitarrista Paulo Rafael (1955-2021), responsável acordes e solos em dezenas de canções inesquecíveis.
Incontáveis sucessos nas rádios por todo o Brasil e até pelo mundo surgiram nos 50 anos de carreira de Alceu. Os álbuns “Cavalo de Pau”, “Anjo Avesso” e “Estação da Luz” passaram de 2 milhões de cópias vendidas. Ao todo, lançou entre discos de estúdio e gravações ao vivo, 38 álbuns do cancioneiro popular.
Em julho, Alceu lançou o álbum “Saudade”, onde faz releituras de canções de outros discos e também uma música inédita. Gravado na pandemia do Covid-19, o trabalho aponta sua saudade dos palcos e sua crença no futuro do país. Sem negacionismo e com democracia.