Hora de combater a desinformação
As eleições presidenciais de 2018 foram caracterizadas pela disseminação em massa de notícias falsas. As chamadas fake news tiveram como maior beneficiário o candidato da extrema direita Jair Bolsonaro. Fazia parte de uma estratégia global, liderada por Steve Bannon, então consultor de Donald Trump. Por conta disso, a campanha de Bolsonaro responde a quatro ações por abusos econômicos e uso indevido de redes sociais junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Uma das ações, que pode resultar na cassação da chapa Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, investiga justamente o uso de nomes e CPFs de idosos para registrar chips de celular, usados para disparos em massa feitos pela equipe de campanha do então candidato do PSL. Ainda durante a campanha, a Folha denunciou a existência de um esquema de compra de pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp por empresas alinhadas ao bolsonarismo, como a Havan.
De acordo com a reportagem de Patrícia Campos Mello, cada contrato fechado pelos bolsonaristas chegou a atingir R$ 12 milhões. A prática da campanha do candidato da extrema direita, contudo, é ilegal. A iniciativa viola a legislação eleitoral brasileira. É que a prática é considerada pela Justiça Eleitoral uma doação não declarada por empresas.
A campanha bolsonarista usou e abusou da prática irregular. A estratégia, além disso, representa uma grave contaminação do processo democrático, fortemente impactado pelas fake news. Também aponta para necessidade de um aprimoramento dos mecanismos legais, que permitam aos eleitores o acesso a informações verdadeiras sobre os candidatos e a propostas de governo na hora de decidir o voto.
Pesquisa de opinião do DataSenado revelou que, em 2018, 45% dos entrevistados decidiram o voto levando em consideração informações vistas em alguma rede social, especialmente o Whatsapp. Dados da organização Avaaz apontam que 98,21% dos eleitores de Bolsonaro foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a eleição — e 89,77% acreditaram que os fatos eram verdade.
Um caso emblemático de uso da mentira para manipular a verdade, que marcou as eleições de 2018, foi a entrevista de Bolsonaro ao Jornal Nacional, em 28 de agosto daquele ano. Na ocasião, ele mostrou, ao vivo, um livro que faria parte de um suposto “kit-gay”, disponível nas bibliotecas das escolas públicas. Uma mentira. Mas o ex-capitão não foi confrontado pelos apresentadores da Globo e a fake news prevaleceu.
Para se ter uma ideia do volume de mentiras de Bolsonaro nas eleições presidenciais, nos 70 dias iniciais da campanha de 2018, os institutos de checagem tiveram que desmentir mais de 100 boatos lançadas pelo bolsonarismo contra o então candidato Fernando Haddad (PT). Foram dois boatos desmentidos por dia, conforme pesquisa do Congresso em Foco. Outro dado relevante está em levantamento da Transparência Internacional, segundo o qual quatro em cada cinco brasileiros acreditam que notícias falsas foram disseminadas para influenciar a eleição de 2018.
O uso de instrumentos de distribuição em massa de mentiras não é exclusividade do Brasil, mas configura uma estratégia global da extrema direita para influenciar comportamentos e corromper a democracia. Outros escândalos foram desmascarados pela imprensa, como a manipulação da Cambridge Analytica, que envolveu a coleta irregular de dados de até 87 milhões de usuários do Facebook nas eleições britânicas e estadunidenses.
De posse dos dados desses usuários, a Cambridge Analytica atuou por meio da manipulação e disparo de peças publicitárias e fake news que ajudaram a eleger Trump na corrida presidencial norte-americana de 2016. A empresa ainda participou do plebiscito sobre a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia, engajada do lado vitorioso, que aprovou o chamado Brexit.
O Facebook admitiu que a Cambridge Analytica utilizou um aplicativo para coletar informações de usuários sem seu conhecimento. Ao órgão regulador britânico, a própria empresa se declarou culpada por ter se negado a revelar dados pessoais que tinha extraído do Facebook.
Por conta disso, as autoridades e governos de todo o mundo têm procurado regular e combater a difusão de desinformação e de notícias falsas. O Tribunal de Contas Europeu estima que a União Europeia mobilizou perto de 50 milhões de euros para o combate à desinformação entre 2015 e 2020.
Em novembro de 2017, a Comunidade Europeia desenvolveu o “Roadmap: Fakenews and online disinformation”. O proposta busca regulamentar e combater o problema, monitorar noticias falsas e tirar os sites do ar o mais rápido possível.
A norma entende que o acesso universal a informação é um dos pilares basilares da democracia. Também traz informações sobre os impactos das fake news nas eleições americanas de 2016 e no processo do Brexit no Reino Unido.
Na Alemanha, está em vigor desde outubro de 2017 o Ato para cumprimento da Lei nas Redes Sociais. Segundo a legislação, provedores de redes sociais devem remover ou bloquear conteúdo manifestamente ilegal ou falso dentro do prazo de 24 horas, a contar da reclamação ou determinação judicial.
No Uruguai, os partidos políticos firmaram um pacto contra as fake news na campanha eleitoral de 2019, depois de iniciativa da Associação da Imprensa Uruguaia (APU, na sigla em espanhol).
Um dos dirigentes da Cambridge Analytica era ninguém menos que Steve Bannon, preso nos Estados Unidos por lavagem de dinheiro e fraudes em campanhas online. Ele é idealizador e líder de uma aliança internacional de ultradireita chamada O Movimento, que tem Eduardo Bolsonaro como embaixador na América do Sul.
A proximidade entre Bannon e a família Bolsonaro aumenta a urgência de uma regulação democrática que impeça a contaminação das eleições presidenciais do ano que vem por mecanismos de disparo em massa de fake news. Bannon tem declarado que a eleição no Brasil é a segunda mais importante do mundo e que Lula, líder em todas as pesquisas de intenção de voto, é o esquerdista mais perigoso do planeta.
O ideólogo de Trump e Bolsonaro tenta repetir no Brasil a estratégia fracassada do ex-presidente norte-americano, que não reconheceu a derrota nas últimas eleições presidenciais dos EUA de 2020 e forçou uma tentativa de golpe, que resultou na invasão do Capitólio, sede do Congresso americano. O extremista tem feito coro à narrativa golpista de Bolsonaro de que haverá fraudes nas eleições presidenciais brasileiras do ano que vem em razão de uma suposta falta de confiabilidade das urnas eletrônicas.
O TSE tem adotado medidas para tentar combate à fake news nas eleições, como a imposição da obrigatoriedade a candidatos e a partidos da necessidade de checagem da veracidade de informações utilizadas na propaganda eleitoral antes de divulgá-las. O tribunal também tem apostado em campanhas de conscientização e criou um canal que concentra conteúdos produzidos para rebater informações falsas. Além disso, decisão do corregedor-geral eleitoral, ministro Luis Felipe Salomão, determinou o bloqueio de repasses de dinheiro de redes para canais investigados por propagação de informações falsas sobre as eleições brasileiras.
Outra iniciativa relevante tem sido feita pelo Sleeping Giants, uma conta de Twitter que denuncia sites propagadores de fake news e pede a anunciantes que os boicotem com o objetivo de secar fontes de renda. Um de principais alvos, no Brasil, foi o “Jornal da CidadeOnline”, um site de extrema direita ligado ao bolsonarismo, que foi constantemente desmascarado por agências de checagem e apontado como um dos grandes propagadores de fake news.
O Supremo Tribunal Federal é outro ator fundamental que tem reagido ao avanço das notícias falsas. O inquérito das fake news, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, já resultou em ações contra empresários, parlamentares e influenciadores digitais ligados ao bolsonarismo. Ele determinou a quebra de sigilo bancário e fiscal de quatro empresários suspeitos de financiar notícias falsas.
O próprio Bolsonaro foi incluído como investigado no inquérito que apura a divulgação de informações falsas. Aliás, de acordo com a ONG internacional Artigo 19, Bolsonaro deu 1.682 declarações falsas ou enganosas ao longo de 2020, uma média de 4,6 mentiras por dia.
Com isso, ainda que tardiamente, as instituições começam a reagir ao esquema de fake news que deteriorou o processo eleitoral brasileiro. A questão central é se essa reação será suficiente para assegurar a realização das eleições de 2022 e garantir a posse daquele que obtiver o maior número de votos.