Entrevista com Miguel Nicolelis: situação ainda é muito grave e podemos ter explosão de casos
O neurocientista Miguel Nicolelis que tem se dedicado a pesquisar a forma como o coronavírus se disseminou pelo Brasil, publicou recentemente no Twitter trecho de um documento do Centro de Controle de Doenças dos EUA que considera a variante Delta do coronavírus é mais transmissível do que vírus como Ébola, gripo comum, Influenza e catapora. Em entrevista à revista Focus, ele se diz preocupado com a presença dessa variante no Brasil. Em outros países, como Índia e Indonésia, ela provocou caos e colapso funerário.
– A porcentagem da população brasileira completamente imunizada ainda é baixa. O Brasil continua tendo um número relativamente considerável de novos casos da doença diariamente e um número significativo de pessoas internadas com a forma mais grave do Coronavírus. Como o senhor avalia a situação do Brasil na pandemia hoje?
– Acho que não existe nenhum sinal concreto de que saímos da parte mais crítica da pandemia. Essas quedas por alguns dias, duas ou três semanas, elas ocorrem naturalmente porque quando o vírus atinge um pico de infecção, ele, de certa maneira, tem uma defasagem no número de pessoas suscetíveis. Isso já aconteceu na 1ª onda, já aconteceu no meio da 2ª onda por alguns dias porque foi um crescimento exponencial numa velocidade recorde no mundo. A situação ainda é extremamente preocupante. Como batemos em 4 mil óbitos por dia, nós naturalizamos esses números.
O Reino Unido que tem 52% da população completamente imunizada passou de 56 mil casos porque a variante Delta explodiu lá e nós ainda não sabemos como a variante Delta vai se comportar no Brasil. Ela está travando uma competição com a variante amazônica. Eu não estou otimista, não. Acho que a situação ainda é muito grave. Nós podemos ter uma explosão de casos a qualquer momento e eu acho que o que estamos vendo na mídia, reaberturas por todo o país, eu considero de uma insensatez e de uma irresponsabilidade tremendas.
– Nesse momento, muitas escolas particulares e alguns governos estaduais pretendem voltar com aulas 100% presenciais com a desculpa de que muitos professores foram vacinados. No entanto, muitos desses profissionais da educação não completaram o ciclo vacinal e temos novas variantes circulando pelo país. Como o senhor avalia essa possibilidade da volta presencial das instituições de ensino?
– Isso aconteceu já em outros países e foi um desastre. Aconteceu em Israel, aconteceu na França, aconteceu no Reino Unido antes do terceiro lockdown que eles fizeram em janeiro, foi por isso que eles chegaram a 1.800 mortes por dia. Eles mostraram que as escolas foram grandes disseminadores de casos até entre crianças. Houve um aumento até no número de crianças infectadas, e no staff das escolas e nos professores.
Recentemente, fizeram uma analogia sensacional sobre a segunda dose, na minha opinião. A analogia é a seguinte: é você entrar num jogo sem goleiro ou com o Everton do Palmeiras. O Everton vai no ângulo buscar a bola, sem ele qualquer chute no gol entra. A segunda dose é o goleiro. Pode tomar gol? Pode. Mas a chance é bem pequena. Sem goleiro a chance é 100% ou muito alta. Aliás, na Holanda eles tinham uma porcentagem altíssima de 2ª dose, muito melhor do que a do Brasil. Na primeira semana de junho, 500% de aumento de casos porque eles abriram tudo. Fecharam tudo de novo. Então, esse é um vírus sorrateiro, ele tem um poder de adaptação muito grande. E essa variante Delta não mostrou a cara no Brasil ainda.
– O senhor chegou a fazer algumas projeções com cenários ainda mais trágicos para o Brasil. No entanto, esse não foi o curso que a tragédia brasileira teve. É evidente que o número de 540 mil mortos é absurdo, mas o cenário nas projeções poderia ter sido ainda pior. O que mudou? O senhor chegou a falar, por exemplo, na possibilidade de um colapso funerário, né.
– Ele aconteceu, pontualmente. Aconteceu em cidades no interior. Na própria cidade de São Paulo aconteceu. O Cemitério de Nova Cachoeirinha teve que fechar porque não conseguia dar vazão, o Cemitério de Vila Alpina chegou a 420 enterros por dia, que é o limite que eles podem dar conta, e o crematório de Vila Alpina ficou com uma demora para cremar os corpos de quase duas semanas. Então, na realidade ele aconteceu. Só não aconteceu a nível nacional como um todo. A nossa sorte é que o SUS ainda existia aqui, porque o SUS conseguiu dar conta.
– A transmissão comunitária da variante Delta já está consolidada.
– Sim. Já tem documentado. Quando você documenta, você pode estar certo de que o número de casos reais é de várias ordens de magnitude maior. O nosso número de sequenciamento é tão baixo que para você conseguir detectar é porque já tem muita gente com a variante rodando. E a variante, as pessoas estão dizendo que a vacina pega, mas a vacina pega menos e qualquer decréscimo de cobertura é significativo neste momento.
– O governo federal foi figura fundamental para o espalhamento do vírus no país?
– Não há dúvida. Disso eu não tenho dúvida alguma. Não houve uma campanha nacional de esclarecimento, de comunicação. Não houve a criação de um comitê nacional científico de combate ao coronavírus. Não houve um planejamento estratégico de compra de insumos, equipamentos, vacinas, nada disso ocorreu. Mas eu devo ressaltar que a pandemia deu um nó em toda a classe política brasileira. Porque a resposta de gestores, num momento ou no outro alguns melhores outros piores, foi terrível. Você dizer que teve alguém, como gestor público que foi coerente do começo ao fim, eu não conheço no Brasil.
– A ciência vai precisar se organizar para um embate contra o negacionismo no Brasil e no mundo todo, correto?
– Sim. Já existem movimentos internacionais surgindo. Não sei se você viu, mas nos EUA a vacinação empacou em 48% de dupla dose. O Brasil vai chegar nos EUA. Na primeira dose, daqui a pouco vamos chegar [nos EUA] porque empacou em 58% lá, de primeira dose. E não passa de 48% da segunda dose. Mais ou menos 50% da população diz que não vai tomar nenhuma dose. Então, nos EUA o negacionismo já conseguiu… pensa nessa “brincadeira”, são 330 milhões de pessoas, ele já conseguiu convencer 170 milhões de pessoas a não tomar vacina. E, por isso, que eles estão tendo surtos no Mississipi, no Missouri, no meio oeste e no sul dos EUA. Então, nos EUA o negacionismo já é uma questão de saúde pública. Ele deve ser considerado uma doença. Já existem movimentos inclusive da Organização Mundial da Saúde de criar formas para tentar combater o negacionismo no mundo inteiro. Porque ele não é só no Brasil e nos EUA. Na Europa. Tem alemães que não tomam vacina. Estamos falando de uma das sociedades com maior número de PHD per capta do mundo.
Então, veja o poder das mídias sociais, Whatsapp, Twitter, Facebook, todas essas coisas. Essa é a primeira pandemia do mundo hiper conectado digitalmente. Escrevi um artigo para a Scientific American em que eu falo que temos um outro vírus que é o vírus informacional e ele mata tanto quanto o coronavírus. E não tem vacina tão trivial.
A pandemia expôs as fragilidades da mente humana moderna, que se diz tão moderna, mas na realidade está sendo atacada, desafiada por um pacote de gordura com um filete de RNA dentro dele. Pense nisso. Nós criamos tantas fragilidades econômicas, políticas e mentais no mundo atual que o planeta foi posto de joelho. O planeta não foi posto de joelho em 1918, isso as pessoas não falam. Foi uma pandemia, só que a pandemia não colocou o planeta da maneira como nós ficamos nesse ano aqui. E veja, são 100 anos de desenvolvimento econômico, tecnológico, biotecnológico e olha a bagunça que nós estamos. Por isso que eu digo, nem o Brasil nem a sociedade brasileira e nem os políticos brasileiros estão preparados para os desafios do século XXI. Isso é uma constatação macro do resultado da pandemia. Não estou nem falando da parte médica, estou olhando “por cima das nuvens” e olhando o que foi a nossa resposta coletiva. Nós estamos no meio de um processo climático devastador no país. Nos EUA, a Califórnia está batendo 53°, é a maior onda de calor da história, não tem água. A Alemanha está tendo inundações que nunca ocorreram, o Japão e nós estamos no meio de uma pandemia. E a gente não parou enquanto sociedade, no Brasil, para pensar como vamos olhar para tudo isso. Porque só reagir no tapa a cada momento que tem uma emergência não vai funcionar.