Em entrevista, o ex-ministro das Relações Exteriores diz que há um esgotamento do modelo na América Latina, farta das limitações da agenda econômica da austeridade e concentração de renda

 

Focus Brasil Como o senhor enxerga as recentes vitórias eleitorais das forças progressistas na América Latina?

Celso Amorim — Na América Latina em geral, e na América do Sul em particular, estão ocorrendo mudanças importantes. Não é simplesmente uma nova onda rosa, que obviamente foi importante no início do milênio, mas algo que tem talvez mais profundidade. Em vários desses países, houve tentativas de mudanças pela força, por golpe, como foi o caso da Bolívia, ou mesmo por meios eleitorais, explorando os descontentamentos e com todas as manobras que a gente conhece, como foi no caso da Argentina.

Então, temos uma volta de governos populares, na Argentina, na Bolívia, no Peru, que elegeu seu primeiro presidente de origem camponesa, com pais analfabetos, em uma sociedade muito hierarquizada. Também é de grande importância a eleição para a constituinte no Chile. No Equador, não conseguimos, mas chegamos perto.

 

E a que o senhor atribui a volta desses governos?

— O que há de comum nesses quatro processos eleitorais recentes é uma crítica muito clara aos modelos neoliberais. No início do processo, você pode dizer até que havia uma ideia de experimentar com o novo. Agora, há uma crítica muito clara ao neoliberalismo e às suas limitações.

Eu acho, talvez, que o exemplo mais óbvio é o do Chile, em que a crítica foi feita nas ruas e obrigou o presidente Piñera a aceitar a Constituinte, que eles chamam de convenção. Eu vou até deixar de lado os elementos simbólicos, mas que são muito importantes, por exemplo, no caso do Chile uma mulher indígena presidindo a Convenção, mas é um movimento muito importante.

 

— E como o senhor enxerga essa movimentação progressistas na América Latina em um contexto mais amplo?

— Esse movimento acontece em um momento de geopolítica complexo. Um momento em que houve uma mudança nos Estados Unidos. O presidente faz uma política progressista internamente, uma política que é até mais que keynesiana em algum sentido, porque tem a taxação dos ricos para financiar os investimentos em infraestrutura, em educação, em combate à desigualdade, entre outros. Por outro lado, uma política na América Latina totalmente defasada, que busca ver tudo sob o ângulo da competição com a China e com a Rússia e de uma maneira perversa, porque continua, em grande medida, apoiando governos de direita. Essa visão é ilustrada recentemente pela vinda do diretor da CIA à Colômbia e ao Brasil, uma coisa talvez inédita, curiosamente em dois países cujos governantes apoiaram Trump abertamente. É uma contradição.

 

Também teve a questão das novas sanções à Cuba, né?

— Há uma renovação das pressões sobre Cuba, repudiadas internacionalmente. Vários países membros da OEA impediram que se levasse adiante uma reunião sobre a situação cubana, o que é muito interessante. O contraponto foi o presidente AMLO, do México, que tem tido posições muito progressistas em relação à Cuba. Ele tem falado em algo muito importante, que é substituir a OEA pela Celac. Isso é, substituir uma organização dominada pelos Estados Unidos, com a presença de um outro país superdesenvolvido que é o Canadá, por uma organização estritamente caribenha e latino-americana e que seja objeto de um tratado, pois até hoje a Celac é apenas um fórum.

 

E como fica o Brasil nessa nova conjuntura?

— É claro que o Brasil tem um peso enorme nesse contexto e os olhos todos estão colocados aqui. Essas mudanças muito importantes que estão ocorrendo dependem do Brasil para se concretizarem plenamente. É muito difícil você pensar uma América Latina unida sem o Brasil. Então, para o bem e para o mal, o Brasil é um exemplo que conta. Claro que o Bolsonaro é um caso extremo, não chega a ser exemplo para ninguém, mas de qualquer maneira é um elemento de dúvida no conjunto do processo de integração e de cooperação pela paz na região.

Tenho confiança que essa nova tendência que está se afirmando em vários países vai se afirmar também no Brasil. Temos que chegar até as eleições e ganhá-las e tudo indica que isso ocorrerá. E aí, nós teremos uma América Latina e Caribe reforçados, integrados e com capacidade de dialogar com outros grandes blocos do mundo.

Como eu sempre tenho dito, a China é um bloco em si mesmo, os Estados Unidos são um bloco em si mesmos, a União Europeia é um bloco por definição, outros países em desenvolvimento estão tentando se agrupar e o Brasil, que já trabalhou muito pelo IBAS, pelos BRICS, por outras formas de melhoria do equilíbrio internacional, tem condições de trabalhar pela sua integração sul-americana e latino-americana. Para isso, precisamos fortalecer o Mercosul, ajudar a ressuscitar a Unasul e contribuir para o desenvolvimento da Celac.

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