Em tempos distópicos, como o que nos cabe viver, quando a morte, de tão frequente, parece banalizar-se, é possível que, numa dessas horas de desamparo, você se pergunte: e se todos já estivermos mortos e formos agora apenas fantasmas vagando entre fantasmas?

Há 66 anos, o mexicano Juan Rulfo publicou uma pequena obra-prima, o romance Pedro Páramo, o único de sua carreira como escritor, em que faz análogo devaneio. 

A realidade do romance é a de um povoado, Comala, cujos habitantes estão todos mortos. As casas estão habitadas, há caminhantes nas estradas, a vida parece latente por ali, mas são todos fantasmas os que se movem naqueles espaços demarcados pelo silêncio e pela solidão.  

“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo”, diz o narrador Juan Preciado, numa das aberturas de romances mais celebradas pelos aficionados da melhor literatura latino-americana. Na busca pelo pai, o narrador cumpre o desejo da mãe moribunda de que o encontre, para cobrar-lhe “bem caro” o abandono em que os havia deixado.

Pela voz dos mortos, que se alterna e funde com o seu relato, numa prosa elíptica e fragmentária, e pela teia das lembranças que vai aos poucos decifrando, numa linguagem poética poderosa que se sobrepõe à própria história desvelada, o narrador, ele também um defunto, se defronta com um passado desconhecido e angustiante. O pai, proprietário da fazenda Media Luna, é um latifundiário cruel e desumano, odiado por todos, que condena os habitantes de Comala a morrerem de fome, e morre junto com eles. 

Pedro Páramo é uma história de amor, vingança e morte, que se passa num povoado de mortos-vivos, a Comala para sempre eternizada nessa obra labiríntica, difícil de entender numa leitura apressada, mas que seduz e conquista definitivamente o leitor pelo poder encantatório de sua poesia. 

Foi o que ocorreu comigo quando a li pela primeira vez há muitos anos, numa tradução de Eliane Zagury (Editora Paz e Terra). Releio mais uma vez essa pequena obra-prima (são pouco mais de 150 páginas), na belíssima tradução de Eric Nepomuceno (Editora Record), no momento em que autoridades sanitárias do Brasil anunciam que são mais de 540 mil os mortos no país por causa de uma pandemia que não sabemos quando acaba. 

Mortos cujos nomes estão na imprensa, nas redes sociais ou em nossas listas de contatos telefônicos, de onde serão apagados um dia para sobreviver apenas em nossas memórias e nossos corações. 

Há quase dois anos, com o início da pandemia do coronavírus, a morte, que poderia ter sido contida, tornou-se entre nós corriqueira e inevitável, como os dias e as noites. 

Por isso, nessas horas de desalento e desamparo, a sensação de que, assim como em Comala, caminhamos entre mortos, num país fantasma, sem saber que nós também já morremos… 

Estamos em Comala. Vamos ajustar as contas com Pedro Páramo, esse homem malvado e valentão. •

 

         

Escritor de um só romance

Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno, nome completo do escritor mexicano Juan Rulfo (1918-1986), publicou apenas um livro de contos, Chão em chamas (1953), e um romance, Pedro Páramo (1955), duas pequenas obras suficientes para consagrá-lo como um dos mestres da narrativa latino-americano. Nos dois livros, numa prosa contida, sucinta, de densa carga poética, misto de realismo fantástico e regionalismo, ele aborda a realidade dos camponeses mexicanos. 

Quase todos os escritores revelados durante o chamado boom da literatura latino-americana (dos anos 60 ao início dos anos 80 do século passado) dizem ter sido por ele influenciados. “A leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros”, escreveu Gabriel Garcia Márquez. Juan Rulfo foi também fotógrafo e roteirista de cinema.