O ex-capitão que é hoje o presidente da República acaba de receber, no Palácio do Planalto, William J. Burns, o chefe da CIA, a mais agressiva agência de espionagem do mundo. Poderia ter sido uma audiência protocolar entre chefes de áreas de inteligência de cada governo, mas não foi. O presidente estava lá.

O presidente dos EUA, Joe Biden, enviou como seu primeiro emissário ao Brasil, para contatos oficiais, o chefe da CIA, que não faz muito tempo espionou a presidenta Dilma Rousseff, afastada por um Golpe de Estado em 2016. É o nível de prestígio de que desfruta o atual governo brasileiro.

Uma visita do diretor-geral da CIA a qualquer país latino-americano deve inspirar cuidados, provocar calafrios, quando não disparar alarmes. A velha senhora traz consigo uma folha corrida pouco recomendável, impressa a fogo na vida e na memória dos países do continente.

No primeiro contato com seus apoiadores, após o encontro, um Bolsonaro abatido, com o ar enigmático de quem acaba de deixar uma reunião de agentes secretos, num bolsonarês típico declarou: “Não vou dizer que isso foi tratado com ele [Burns] mas a gente analisa a América do Sul, como estão as coisas. A Venezuela a gente não aguenta falar mais, mas olha a Argentina. Para onde está indo o Chile? O que aconteceu na Bolívia? Voltou a turma do Evo Morales. E mais ainda a presidente que estava lá no mandato tampão [Jeanine Añez] está presa, acusada de atos antidemocráticos. Estão sentindo alguma semelhança com o Brasil?”

A visita deve indicar a convergência entre as preocupações da Casa Branca e do Palácio do Planalto: o que fazer com esse continente insubmisso?

O povo colombiano há semanas marcha nas ruas contra o governo repressivo de Iván Duque. As mulheres e a juventude chilena, ao instalar a Assembleia Constituinte, lideram um movimento social de grande alcance para sepultar a constituição imposta pelo ditador Pinochet e escrever uma Carta Magna democrática em sintonia com o século 21. A sociedade multicultural boliviana recupera a democracia interrompida e retoma o rumo do desenvolvimento soberano. A sociedade brasileira esmagada pelo peso de meio milhão de mortos provocada pela Covid-19 e pela incúria criminosa do governo Bolsonaro, decide voltar às ruas para denunciar o genocídio e a corrupção e exigir o “impeachment” do ex-capitão.

 

Lula falou sobre soberania e rebateu o envolvimento de potências estrangeiras em golpes de Estado na América Latina

 

Se olharmos em perspectiva para o que nos aguarda nos próximos anos, podemos refletir sobre a recente entrevista concedida ao Página 12, da Argentina, pelo ex-presidente Lula: “Temos que ficar juntos. Temos que formar um bloco forte como estávamos fazendo com a Unasul, para que possamos negociar com a União Europeia, com a China, para negociar com o Estados Unidos. (…) Biden tem entender que a América Latina tem do direito de crescer. Não é possível que em 500 anos não tenhamos nenhum país da América Latina altamente desenvolvido. Sempre que um governo que começa a melhorar as coisas, aparece um golpe e o governo cai”.

Lula falou sobre autodeterminação dos povos, soberania nacional e rebateu o envolvimento de potências estrangeiras em golpes de Estado na região, sempre que um país começa a se desenvolver. Diferentemente da lamúria que ouvimos de Bolsonaro ao sair da agenda com o diretor-geral da CIA, Lula tem discurso em defesa de um projeto de país soberano, projeto que compartilha com o continente.

O que devem esperar os EUA de um governo popular que suceda o atual a partir de 2022? Ao Página 12, Lula anuncia tensões com os interesses dos EUA. Seja na área de infraestrutura, de controle de fontes de energia, como petróleo, água e na área de alta tecnologia — leia-se, a participação da Huawei nas futuras redes de 5G.

A ninguém interessa fingir que um mercado das dimensões do brasileiro está imune ao conflito geopolítico polarizado entre EUA e China. A evolução desse conflito vem determinando modificações na estratégia e nos métodos utilizados pela Casa Branca – particularmente a introdução do lawfare – para conduzir a defesa dos seus interesses no continente. Assim ocorreu nos golpes de Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016), Bolívia (2019) e mais recentemente nas eleições no Equador e Peru, esta ainda pendente.

Aos olhos da Casa Branca interessa como se comportará o governo que vier a suceder Bolsonaro nos temas estratégicos mencionados acima. Como se comportará um governo de oposição diante dos crimes cometidos pela Lava Jato com apoio dos EUA?

Um problema para Mr. Burns. Um desafio para o governo brasileiro que sucederá ao governo de liquidação nacional de Jair Bolsonaro.

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