Um dos mais prolíficos atores de sua geração, com mais de 40 anos de carreira — e 80 filmes no currículo — Chico Diaz tem um sorriso cativante e, embora se diga pessimista, seus olhos brilham ao falar do Brasil, dos novos projetos e das lutas que a sociedade brasileira tem pela frente para a reconstrução nacional.

“A gente teve um retrocesso que vai ser muito mais do que dez anos para refazer tudo. Vão ser 40 ou 50 anos — isso com uma política progressista e social que se mantenha numa perspectiva civilizatória. Hoje, a perspectiva que há é predatória. Interessa a muitos que isso aqui, o Brasil, vire um fim de mundo”, lamenta.

O ator se divide entre Lisboa e Rio de Janeiro e, mesmo durante a pandemia, trabalha de forma apaixonada em seu ofício, dividindo-se em inúmeros projetos. Em junho, foi homenageado com uma mostra de alguns filmes em que atuou nas últimas décadas durante o CineOP — a Mostra de Cinema de Ouro Preto —, que exibiu “A cor do seu destino” (1986), de Jorge Durán; “Corisco e Dadá” (1996), de Rosemberg Cariry; “Os matadores” (1997), de Beto Brant; e “Amarelo Manga” (2002), de Cláudio Assis.

Recentemente, apresentou o monólogo “A lua vem da Ásia”, adaptação para o teatro do romance homônimo de Walter Campos de Carvalho, obra surrealista, iconoclasta e de humor ácido, no Festival de Almada, em Portugal. Os filmes “O ano da morte de Ricardo Reis” — baseado no livro homônimo de José Saramago, com direção do cineasta português João Botelho — está circulando pelo mundo, assim como “Homem onça”, de Vinícius Reis.

Aos 62 anos, cheio de ideias e energia, prolífico e multitalentoso — é ator, diretor, produtor e artista plástico — Chico se mostra preocupado com os rumos do país e se diz pessimista quanto à conjuntura política. Embora diga que reconheça no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva as qualidades do chefe de Estado capaz de colar os cacos do país, não se ilude quanto à dureza da disputa política que se aproxima em 2022.

“Tenho uma fé enorme no Luiz Inácio [Lula da Silva], como ser aglutinador e ser redentor. Eu sei que é um pouco complicado ver essa figura messiânica, como salvador, numa pessoa”, diz. “Mas ele é a pessoa que poderá orquestrar mudanças que serão lentas e graduais, mas que precisam ser feitas nessa devastação completa que foi feita no país”.

Fã de Dilma — “sou apaixonado e vidrado por ela —, Chico acha que há uma trama sendo urdida para não deixar que um projeto popular liderado por Lula volte ao poder. “Veja, eles planejaram, mapearam, monitoraram, usaram todas as forças, foram cínicos porque não usaram armas, e deram um golpe jurídico e parlamentar. Nós estamos diante de gente muito preparada, gente muito selvagem e muito violenta”, aponta.

“Eu acho muito difícil eles, como gostam de poder e gostam de exclusão, abrirem mão. Então, acho que 2022 vai ser um ano muito violento. Em todos os sentidos. Espero que não. Não falo apenas a violência física, mas a violência de métodos, a violência das mentiras…” A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Focus Brasil.

 

Focus Brasil Durante a pandemia, você parece que intensificou o teu trabalho artístico, com mil projetos. Como você conseguiu fazer isso em meio a essa crise?

Chico Diaz — São essas coisas que não sei explicar. São ventos inexplicáveis que me levam. E um pouco de coragem, de risco, mas também muitas bençãos convergindo. Eu me lembro que, no começo da pandemia, no ano passado, eu estava confinado no Rio de Janeiro e eu consegui uma residência em Portugal. E eu fiz “O ano da morte de Ricardo Reis” — lançado em outubro [de 2020]. Aí depois eu fiz “A lua vem da Ásia”, um monólogo e resolvi fazê-lo em Cabo Verde, no meio do Atlântico, num festival de teatro que tem lá do filho do João Branco, que se chama também João Branco, um famoso trovador português. E pensei: isso vai ser um grito utópico libertário. Afinal, fazer esse trabalho do Campos de Carvalho em pleno Oceano Atlântico, na convergência lusófona… E neste ano eu voltei para o Brasil por uma questão de saúde na família. Mas aí também veio o Festival de Almada (Portugal). E também fiz filmes, como “O Homem Onça”.

 

Todo este teu trabalho recente tem a ver com o momento que a gente está vivendo. Isso é consciente? Essa busca em fazer da arte um momento de reflexão sobre a existência, a vida e a realidade política?

— Eu não saberia dizer se é intencional. Na minha vida, meus personagens todos se calcaram na preocupação de representar os meus semelhantes, nas diversas instâncias geográficas desse Brasil que é enorme. Na inauguração da homenagem que recebi no CineOP [Mostra de Cinema de Ouro Preto], falávamos sobre a trajetória, sempre inserida numa questão histórica e como é que aquele personagem reage, interpreta e como é que se vivencia. Para mim é um super-prazer e um privilégio estar atento nas diversas personagens que fiz. Então, tem uma convergência. E a homenagem à minha carreira de quatro décadas me deixa feliz. Ainda mais que, na mesma semana, o presidente Lula fez uma citação ao “Homem Onça”. E Almada… Tudo na mesma semana.

 

— É o reconhecimento.

—  Foi um fluxo muito favorável, mas também coloca numa visibilidade que, às vezes, é um pouco perigosa e nem eu sei lidar muito com isso. Essa questão de projeção, de visibilidade, de exposição internacional e mais o presidente… Isso cria uma certa celeuma muito perigosa e eu espero que isso decante e as coisas voltem para o lugar. Mas isso que você apontou, eu acho que o perfil do intérprete e, consequentemente, das oportunidades, desde sempre — com essa minha cara, né? — Eu viro nordestino, sou filho de paraguaio, nascido no México, vivi na Costa Rica, morei no Peru, chego na Zona Sul do Rio de Janeiro, perplexo, assombrado, assustado — para dar algum significado, né?… O que a gente está fazendo nessa vida? E aos 14 anos comecei a encostar no teatro. Fiz arquitetura, mas sempre fazendo teatro amador. Depois fiz um primeiro filme e aí o cinema me pegou e foi me levando sempre com personagens muito marcados pela fibra do homem brasileiro, na resistência, na sobrevivência, na busca do entendimento de sua vida… Eu me orgulho muito de ser a chave para a leitura dessas paisagens humanas. Para mim foi um privilégio, quando falaram no CineOP de quatro décadas, eu falei para mim: “Caceta… Quarenta anos!”

 

Como foi interpretar um heterônimo do Fernando Pessoa, a partir de um livro do [José] Saramago, num filme português?

— Para mim foi um prêmio. Uma elevação de conhecimento, não só transcontinental, mas também da substância com que eu trabalho. Geralmente, eu trabalhava com homem brasileiro, na sua rudeza, na sua perplexidade, no seu dia a dia… E, de repente, fui elevado para uma instância de alta voltagem poética, que junta Saramago, Fernando Pessoa e um heterônimo no ano de 1936. Primeiro, não acreditei que o convite tivesse sido feito para mim. Por que eu? Depois, eu soube que foi o único heterônimo que o Fernando Pessoa não deu morte. Ele estava em aberto. E aí o Saramago, genialmente, tira ele do Brasil. O Fernando Pessoa tinha mandado o Ricardo Reis ao Brasil. E então Saramago traz ele de volta. Navegar em fortes fluxos literários portugueses. A raiz do nosso Brasil. Para mim, foi um presente de primeira monta poder viver o Ricardo Reis. Nem ele mais vivia, porque é um heterônimo, um ser perplexo que chega de volta a Portugal, vagando como um heterônimo e ganhando carnalidade e materialidade posto que o Pessoa também já tinha morrido. Ou seja, o cara que o inventou não existia e ele próprio não existia. Isso no ano de 1936, quando os totalitarismos começam a se consolidar. Então, aí o gênio é o Saramago. Ele era encrencado — isso a Pilar [del Rio, viúva do escritor português, Prêmio Nobel de Literatura] me contou — com um verso que o Ricardo Reis: “Sábio é aquele que se contenta com o espetáculo com o mundo”. E Saramago — socialista, materialista, de esquerda — disse: “Isso está errado. Pode ser um escritor consagrado, mas essa questão de se satisfazer com o espetáculo do mundo, não me convence”. Então, ele traz o Ricardo Reis, o confronta com o ano de 1936, e obriga este poeta clássico a se tornar um poeta com versos mais de atuação, mais de reflexão, mais de intermediação e mais de leitura de um mundo conflagrado que era o de 36. Essa equação toda, para um ator, em outras áreas, para mim foi um prêmio, um desafio. E também viver sob a batuta de João Botelho, que é um diretor irrequieto, 72 anos, é um louco, que está nas boates todas as madrugadas, um cara muito vivo para idade dele, mas a quem não interessa nenhum pouco a psicologia dos personagens. Ele só trabalha com rigor de quadro. Luz, ângulo e enquadramento. A forma como você dá o texto, ele não tá nem aí para isso, entendeu? Foi uma escola fantástica. Eu tenho super-orgulho do filme. Ficou uma pérola. Eu fiquei até com medo da reação dos atores portugueses.

 

Um brasileiro fazendo esse personagem

— O pré-sal deles é a língua, né? A grande fortuna é a língua portuguesa. E vem um ator brasileiro, carioca, mexicano… Viver o nosso Ricardo Reis? Podia ser visto como um acinte. Mas eu me saí bem.

 

Tem um filme seu que é muito marcante para a geração de quem viveu em Brasília nos anos 80 que é “O sonho não acabou, de Sérgio Rezende. É um dos primeiros filmes que retratam a juventude brasiliense ainda na ditadura. E, na minha opinião, a trilha sonora perfeita desse filme seriam os primeiros discos da Legião Urbana e da Plebe Rude, que são duas bandas de Brasília. Qual a tua lembrança desse período na capital federal?

— A minha maior lembrança é o céu de Brasília. Aquele céu vertical de Brasília. Foi o meu primeiro filme como protagonista. O filme foi rodado em Brasília em 1981 e lançado em 1982. Direção do Sérgio Rezende, com produção da Mariza Leão, Edgard Moura fez a fotografia. Foi a primeira ficção de todos eles. E marcou a minha estreia — o nome do meu personagem é Biela — e de vários atores: Lauro Corona, Miguel Falabella, Lucélia Santos. Tinha também Louise Cardoso e Daniel Dantas. Aquele personagem me deu o primeiro convívio sério de um set cinematográfico. Essa coisa de, todos os dias, abrir os caminhõezinhos, tirar todos os equipamentos, montar uma cena, iluminar, ensaiar…  E almoçar juntos, depois recolher tudo e, no outro dia, fazer tudo de novo… Isso me fascinou profundamente. E o personagem, o Biela, era muito próximo da minha natureza e de uma certa natureza professada ideologicamente pelo meu pai, que era um educador e  comunicador [Juan Díaz Bordenave, um dos fundadores do pensamento educomunicativo], e pela família toda. Era muito representativa aquela câmera no povo, aqui, debaixo, muito honesta, muito íntegra. Era um personagem que quis fazer com muito estudo e muita justeza. Ali se abriu para mim o abismo cinematográfico. Quando o filme foi para Gramado [Festival de Cinema de Gramado, no Rio Grande do Sul], eu recebi uma acolhida muito interessante, fui indicado para o prêmio [Kikito] e aquilo descortinou um mundo para mim. Comecei a receber grana, comecei a receber convites, comecei a viajar, comecei a morar sozinho… Aí, pensei: a arquitetura não vai me dar isso tão cedo (sorrindo). Eu continuei estudando, me formei, gosto de desenhar e pintar até hoje, mas posso dizer que, realmente, com “O sonho não acabou”, de fato, para mim começou ali. E o sonho na questão cinematográfica para mim não acabou mesmo (risos)… Vingou, valorizou e eu aprendi muito, muito, muito com os personagens, a saber quem é o povo brasileiro, a me alimentar deles e a retratá-los. O grande agraciado fui eu de percorrer paisagens e situações humanas desse Brasil…

 

Você morou em Brasília naquele período, né?

— Eu fiquei dois meses e meio morando no Hotal Aracoara, com a motoca do personagem, o Biela, que tinha uma boca de tubarão… Tinha um grupo da cidade maravilhoso, não sei se você lembra, chamado Mel da Terra. Os caras eram uma coisa impressionante. Éramos todos jovens, saíamos… Tinha a Claudinha Otero, atriz de Brasília… Tinha o Aloizio Batata [Ator paraense que fez a carreira na capital federal, morto em 1984], um cara genial. Tinha também o Guilherme Reis… Brasília para mim foi o berço e a fonte da minha carreira. E, curiosamente, conheci a minha primeira mulher, a Cecília Santana, e tive meu primeiro filho, Antonio, em Brasília. Então tenho uma ligação com a cidade. Fora os festivais todos, né?

 

Sei que você fez o papel do Marechal Rondon em uma produção que vai passar agora no Brasil, né? [“O Hóspede Americano, uma das novas séries da HBO].

— Eu sempre disse — há muitos anos —, quando me perguntavam, em outros festivais, em outras entrevistas: “Qual o personagem que você gostaria de viver?” Isso há 20 anos. E eu cravava: o Marechal Rondon. Tem gente que fala: quero viver Ricardo III… Eu sempre quis fazer o Rondon. Sempre fui aficcionado por essa figura de ascendência indígena, como eu, filho de paraguaio… E o envolvimento direto dele com a expansão das fronteiras do país. A questão pacifista, a questão da criação do SPI [Serviço de Proteção aos Índios, hoje Funai] o amor dele pelos povos originários — “morrer se preciso for; matar, nunca. Há ali um humanismo, positivista que ele era, que sempre me fascinou. Acho que o Rondon ainda não teve um filme à altura da vida dele.

 

Isso é verdade.

— O Barretão [produtor de cinema Luiz Carlos Barreto] chegou a captar para fazer um drama sobre ele, mas, com recursos escassos, ficou aquém. Depois, o Pizini [Joel Pizzini, diretor do filme “O Rio da Dúvida”] fez um docdrama também sobre o capítulo do Rio da Dúvida [expedição do ex-presidente americano Theodore Roosevelt à Amazônia, em 1913 e 1914, em parceria com o marechal Cândido Rondon]. Mas nenhum desses filme, acredito, estão à altura desse cara. Rondon, além de tudo, também era um cineasta, fazia filmes… Esse meu trabalho encarnando o Rondon está numa produção chamada “The American Guest” [“O Hóspede Americano”, uma série da HBO que será exibida pela HBOMax. Chico faz o papel de Rondon e o ator Aidan Quinn, de Roosevelt], com direção de Bruno Barreto. É um filme, uma série, com um ponto de vista americanófilo. Se passa em 1914, quando Roosevelt, tendo perdido uma eleição nos Estados Unidos, depois de ter feito um governo muito interessante e polêmico, vem para o Brasil — Eu acho, na minha leitura, seria mais um golpe publicitário, porque aquela era a época das grandes explorações e ele já havia feito, anos antes, uma viagem à África. E isso rendeu a ele muita visibilidade e prestígio como desbravador, aventureiro, um homem valente e corajoso… — Então, Roosevelt vem para cá e o governo brasileiro delega ao Rondon ser o anfitrião. Para mim, essa imagem do homem mais poderoso do mundo, nas mãos de um caboclo intuitivo, com toda aquela cosmogonia indígena em busca do Rio da Dúvida — um nome lindo e poético — era muito interessante. São cinco episódios que vão ser exibidos na HBO Max.

 

Que incrível. A vida do Rondon não é valorizada aqui. Ainda mais agora. Imagina, um militar que respeita índioVeja que há uma série de medidas legais em tramitação no Congresso que, entre muitos absurdos, tira da Funai a condução dos processos de demarcação de terras indígenas. Isso está acontecendo num Congresso que não dá importância à preservação dos direitos indígenas, onde as bancadas ruralista e evangélica estão à frente de mudanças na legislação muito perigosas.

— Que tristeza.

 

Ao mesmo tempo, eu tava vendo o outro filme teu — “O ano da morte de Ricardo Reis” — também tem a ver com o momento que vivemos ao recuperar a ascensão do Salazarismo em Portugal, em meados dos anos 30, e de Hitler, na Alemanha, naquele período em que a Europa passaria por grandes dificuldades frente ao fascismo. O Homem Onça” também tem a ver com a conjuntura atual [funcionário de uma grande empresa de gás, que se vê obrigado a fazer grandes demissões]. Você disse que as escolhas não são intencionais, mas esses filmes são chaves para a plateia refletir sobre a realidade. Como você experimenta ter um trabalho tão colado na realidade?

— Eu me sinto agraciado e privilegiado em ser a chave para o intérprete permitir que a as pessoas possam se ver. Quer dizer, para que nós vejamo-nos. Tem a conotação  da reflexão feita pela cabeça, mas a reflexão também que nos permite como Nação ver a realidade, a nossa realidade. Mas a questão primeira é: quem escolhe quem? O personagem me escolhe ou eu escolho o personagem? Há aí uma ambiguidade, uma via de duas mãos, que talvez os diretores e as produções vejam em mim um instrumento plausível de uma leitura correta ou talvez também a minha curiosidade e minha disponibilidade, já ao longo de 40 anos, seja um pouco viver esse assombro, essa perplexidade do homem brasileiro perante essas situações que lhe são impostas, impingidas. Ou seja, o pai de família que precisa educar, criar e alimentar filho, como? O emigrante que tem que fugir do Nordeste, desde sempre, desde o ciclo da borracha… Esse brasileiro que esta aí: caramba, como assim? Eu teria direito a coisas que poderiam ser mais fáceis para mim. Eu, o excluído. Os camponeses… Aqueles que viram capatazes. Aqueles que ficam cruéis para se manterem na  pirâmide imperial e colonizadora que desde sempre este país foi — e é… Aquele corpo, esse corpo ali, é o meu. E eu acho isso bom. É bom poder viver as dores e as alegrias desses personagens. Agora, não saberia responder se é um cardápio que eu tenha na minha frente e possa escolher: isso, sim, e isso, não. É uma forma desesperada de dar significado não só à minha vida, mas também à vida dos personagens.

 

O país atravessa uma das quadras mais terríveis dos últimos 100 anos. Qual a sua visão dessa crise? Não há precedentes anteriores.

— Não tem comparação. Eles são muito fortes. Eles estão muito bem armados. Têm uma tecnologia avançadíssima e eles são maus. O deus ali é o dinheiro. É uma conjunção terrível. O que se sucedeu, desde a derrota do Aécio [Neves, candidato do PSDB à Presidência da República], em 2014, está claro, eles tinham planejado uma vitória ali  e tinham certeza que ganhariam [as eleições]. E não ganharam. Tudo foi se deteriorando desde então. O Golpe de 2016 é o clímax disso. A invenção daquelas pedaladas, para tirar uma mulher como a Dilma, que eu admiro muito — muito, muito, muito… Muito até hoje. Sou completamente vidrado e apaixonado por ela. Veja, eles planejaram, mapearam,  monitoraram, usaram todas as forças, foram cínicos porque não usaram armas e deram um golpe jurídico e parlamentar. Nós estamos diante de gente muito preparada, gente muito selvagem e muito violenta. E eu acho que nesse escassear de fontes de renda, das commodities, da água, da terra, o Brasil é um celeirão. E um celeirão de gente barata. Tínhamos os BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], eles quiseram quebrar o grupo. Então, fizeram tudo muito bem desenhado e muito bem planejado. Agora, chegar ao ponto que chegamos, com este celerado, este louco, este Nero, ninguém contava… Essa direita mais violenta. A gente está agora neste momento catastrófico mesmo — apesar de alguns sinais de que os ventos estão mudando. Mas eu acho muito difícil eles, como gostam de poder e gostam de exclusão, eles abrirem mão. Então, acho que 2022 vai ser um ano muito violento. Em todos os sentidos. Espero que não. Não falo apenas a violência física, mas a violência de métodos, a violência das mentiras… Veja que as fake news vieram sedimentando o caminho deles em 2018 e eles vão usar das armas mais profundas e mais avançadas para se manterem ali no poder. Não darão chance à inclusão social. As pessoas têm pavor da inclusão social. O brasileiro médio tem pavor que o pobre se aproxime. Eles que algum dia acham que serão ricos. A classe média brasileira acha que algum dia será rica e vai ascender. Mal sabe o abismo que a separa de uma riqueza real. As engrenagem aí pela frente, as vindouras… Eu tenho uma fé enorme no Luiz Inácio [Lula da Silva], como ser aglutinador e ser redentor. Eu sei que é um pouco complicado ver essa figura messiânica, como salvador, numa pessoa. É esquisito isso no mundo. E mais numa estrutura como a nossa. Mas é… Pelo visto e por comparação, ele é a pessoa que poderá orquestrar mudanças que serão lentas e graduais, mas mudanças que precisam ser feitas nessa devastação completa que foi feita no país.

 

Viramos uma terra arrasada.

— O [Sérgio] Moro tem que ser preso. [Ricardo] Salles tem que ser preso. [Abraham] Weintraub tem que ser preso. Esses caras todos precisam ser presos. A gente tem que mostrar. Não dá para o cara fazer e ir para Washington… E tudo bem. Infelizmente, os pequenos guardinhas, os miúdos, os soldadinhos da esquina estão se arvorando… E nem esses a gente consegue prender. Precisa haver uma linha civilizatória da lei. E chegar nos graúdos vai ser muito difícil. É uma situação difícil. Eu mesmo encontrei uma perspectiva de fuga para Portugal. Eu vou [ao Brasil] e volto. A palavra é resistência. Embora até as palavras tenham perdido seu significado e eles conseguiram subverter até algumas. Então, eu não estou otimista. Continuo resiliente. Mas não sou otimista. Há uma contaminação e uma corrosão do espírito brasileiro, na esperança, na fé, na alegria que era nosso motor. A própria cultura, que é onde a gente alimenta essa criatividade, essa alegria, essa alegoria, esse nosso imaginário, que é nossa fortuna, essa também está minada. Veja, a Ancine parada. Linhas de crédito paradas. O ânimo das pessoas…

 

Mas há esperança.

— Eu também acredito em conjuntura e certos encantamentos possíveis.

 

O país vive um espasmo, mas a conjuntura está mudando. Correspondentes estrangeiros sempre se surpreendem com essa distopia tropical que o Brasil se tornou e, às vezes, com quem converso, eles se espantam com o grau de letargia

— Mas isso é proposital. Isso é planejado. Veja o cara da Fundação [Cultural] Palmares. Esse cara da Cultura, o Mário… Frias. Um cara medíocre, sempre foi. Eles colocam as piores cabeças porque o controle é muito mais eficaz.

 

Imagine quantos anos serão necessários para tirar essas figuras do aparelho do Estado, esses parasitas que estão a serviço do bolsonarismo… Veja, são 6 mil militares ocupando cargos de confiança na administração pública federal que deveriam estar preenchidos por civis.

—  É um absurdo. A própria política e a representação social está corrompida há muitos anos. Há uma representatividade financeira, nos poderes não uma representatividade social na atividade política. Para que a política volte a valer à pena de novo, tem que haver uma aproximação dos grupos e dos movimentos sociais e das bases. E será difícil. Como fazer isso se os evangélicos ocuparam um espaço ali? Como se as milícias ocuparam espaço? Como ter uma leitura fiel do desejo do povo? E o povo ter uma leitura fiel dos políticos para cerrar forças? E que isso vingue como argumento no Congresso? Agora, compra-se a maioria. O Centrão está aí, é uma mostra disso. Fazem as leis e se perpetuarão. Eu estou pessimista. A gente teve um retrocesso que vai ser muito mais do que dez anos para refazer tudo. Vão ser 40 ou 50 anos — isso com uma política progressista e social que se mantenha numa perspectiva civilizatória. Hoje, a perspectiva que há é predatória. Interessa a muitos que isso aqui, o Brasil, vire um fim de mundo. Será a barbárie… E, veja, a violência que habita o Rio de Janeiro hoje, é uma loucura [coloca as mãos na cabeça]…

 

Você estava no Rio até semana passada, né?

— Sim. Eu estava lá. Eu vejo a estética miliciana na esquina do Jardim Botânico. Eu fico imaginando nos ermos, nos lugares mais  afastados, distantes… É tudo. A sujeira, a falta de argumentação, uma violência logo, rapidamente, imposta. Eu acho tudo muito complicado. Não consigo conviver com essa questão da violência silenciosa. Você estacionar os quatro pneus do carro na calçada… É triste. No Brasil, a força ganhou força. A razão, que era nossa arma, perdeu razão. A força não pode ter razão. Ela precisa estar abaixo da razão. Para isso que existimos. Mas a força agora é… [Silêncio] Como é que a gente vai deslegitimizar a força? E justamente quando a força foi empossada com os negocinhos [faz o sinal de armas com as mãos de Bolsonaro…] A não ser que tenha uma força maior, uma clarividência maio. Eu não sei… Esses militares também… Com esse fantasma comunista, que é um negócio… Imagina, o comunismo no Brasil. Isso é pura falta de informação e conhecimento. É um fantasma que não existe. Eu acho que os militares têm de voltar a ter honra e missão.

 

E isso tem tudo a ver com esse personagem que você fez na HBO [o Marechal Rondon], o neto de índios Bororos que vira marechal do Exército brasileiro

— É. É isso mesmo…

 

O mesmo Exército que produziu Rondon foi o que gerou agora o [General Eduardo] Pazuello.

— Eles não se lembram para que foram formados? Um contingente desses às custas dos cofres públicos… Uma verdadeira casta. Será que eles não querem enobrecer de novo? O mundo ficou pequeno. As fronteiras não são mais geográficas, elas são econômicas. Ninguém pede passaporte para fazer negócios. Fazem os negócios e pronto.

 

— Daí que é preciso resistir.

— Então, é continuar registrando, interpretando e tentando refletir, como intérprete, como artista, como pintor. É a nossa função. É o que nos resta.