A extrema direita quer esticar a corda
A derrota da extrema direita em eleições presidenciais tem trazido de volta à conjuntura política latino-americana um velho expediente: a escalada golpista. A tutela militar sobre a democracia, que muitos julgavam superada após os processos de redemocratização ocorridos a partir do segundo terço do século passado, em diversos países do continente, voltou a assombrar a região. Tudo embalado com o velho discurso da suposta “ameaça comunista”.
O caso mais recente de golpe na América Latina envolveu a eleição presidencial da Bolívia em 2019, que resultou na renúncia do então presidente reeleito Evo Morales, do Movimento para o Socialismo (MAS). Também está em curso a contestação da vitória de Pedro Castillo (Peru Livre) e, no caso brasileiro, a construção de uma narrativa recorrente de não reconhecimento dos resultados de uma eleição que ainda sequer aconteceu.
Nos três casos, o método empregado pela extrema direita para avançar com o golpismo consiste em uma aliança com segmentos reacionários das Forças Armadas, das polícias e milícias, sempre associada à tentativa de desqualificação dos processos eleitorais. Trata-se da construção de narrativa que se dá a partir da radicalização e da polarização política, que teve início com o uso do Estado como instrumento de perseguição e a expansão do lawfare contra as principais lideranças populares do continente, associado às fake news nas redes sociais.
Esse método esteve presente na tentativa de golpe do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que culminou na invasão do Capitólio por grupos de extrema direita, em 6 de janeiro, após ser derrotado nas eleições presidenciais. Na ocasião, Trump convocou seus apoiadores a protestarem, na capital norte-americana, contra o resultado das eleições, justamente na data em que o Congresso dos EUA iria se reunir para homologar a vitória do democrata Joe Biden.
O objetivo de Trump ao convocar os protestos era pressionar o então vice-presidente da República, que Comanda o Senado, Mike Pence, e o parlamento norte-americano para que rejeitassem a vitória do presidente eleito Joe Biden. Para inflar as manifestações, Trump fez, ao longo de todo o processo eleitoral, uma série de alegações, sem apresentar qualquer prova, de que houve fraude nas votações.
A estratégia fracassada do tutor de Jair Bolsonaro, de desqualificação do processo eleitoral dos Estados Unidos, o mesmo que tinha dado vitória a ele próprio anteriormente, envolveu o ingresso de ações judiciais em diversos estados e o pedido de recontagem de votos em outros. Ao mesmo tempo, Trump e aliados deflagraram uma série de ações midiáticas, com entrevistas e posicionamentos nas redes sociais, dizendo que as investigações e fraudes no processo eleitoral levariam à reversão da eleição de Biden.
O estopim do processo golpista encabeçado pelo ex-presidente foi a invasão da sede do Congresso, em Washington, com a morte de cinco pessoas em decorrência do ato. Parlamentares democratas e alguns republicanos moderados chegaram a convocar uma comissão bipartidária para apurar os eventos que antecederam a invasão, mas, em maio deste ano, os conservadores bloquearam a abertura da investigação.
Em entrevista à Deutsche Welle África, o professor catedrático constitucionalista português Jorge Miranda culpou a atitude de Trump em insistir no discurso de que houve fraude nas eleições pelo que aconteceu. “É o maior atentado à democracia que aconteceu nos Estados Unidos”, aponta. “Foi quase um golpe de Estado que iria acontecer. A gravidade do que aconteceu é terrível e foi preparado por Trump durante dois meses”.
“Entrada no Capitólio, só me lembro do que aconteceu em Portugal em 1975, durante a revolução, quando a Assembleia Constituinte foi sequestrada. Mas era um período revolucionário. Agora os EUA vivem em democracia normal e o que aconteceu é de uma gravidade terrível, terrível”, prosseguiu.
Trump não conseguiu levar a cabo o golpe contra Biden, mas as sequelas da polarização social estão dadas Estados Unidos. Em maio, mais de 120 generais e almirantes aposentados norte-americanos publicaram uma carta aberta, na qual expressam preocupação com a condição física e mental de Biden, assim como com a política do atual governo.
Na carta, que colocou em alerta militares da ativa e da reserva, os autores afirmam que os EUA lutam pela sobrevivência como república constitucional e se encontram atualmente em profundo perigo. Além disso, repetiram a ideia de Trump de que Biden não venceu as eleições de forma justa.
O fuzileiro naval reformado Alex McCoy classificou essa iniciativa dos generais e almirantes aposentados como uma traição. “Historicamente, militares reformados têm sido um solo fértil para movimentos fascistas, golpes de Estado e ataques à democracia ou um apoio para os movimentos pró-democráticos”, disse.