Se de alguma coisa valeu esse período de grande distanciamento social causado pela pandemia, uma delas, sem dúvida, é poder rever com os olhos da maturidade a imensidão linguística, a ironia fina e a extrema beleza da literatura de Machado de Assis.

Considerado pela imensa maioria dos críticos literários e pesquisadores ao longo da história como nosso mais completo escritor, Machado continua o intérprete incontestável da formação cultural brasileira.

Antônio Candido, um grande pesquisador da obra machadiana, disse que, em essência, o pensamento de Machado e sua visão do mundo de então é: “A transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual”. Já o crítico literário norte-americano Harold Bloom, considerava Machado de Assis o maior escritor negro de todos os tempos.

Publicado inicialmente fragmentado entre os meses de março a dezembro de 1880, pela antiga Revista Brasileira, e impresso e lançado como livro pela Tipografia Nacional no ano de 1881, a obra que é considerada a inovação das inovações do seu estilo literário é  Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O livro é considerado um divisor de águas na carreira literária do mestre. Surpreende aos leitores e leitoras já no seu princípio, quando narra o Óbito do autor: “Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa (túmulo) foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo”.

Ao longo de suas 220 páginas e 160 pequenos capítulos, descortina-se toda a trajetória de vida e as aventuras e desventuras: angústias, desilusões amorosas, políticas e circunstanciais do personagem. Nada passa ao largo do observador dos cotidianos e das idiossincrasias que permeiam o caminhar da existência humana.

Talvez, nos dias atuais, o escritor fosse “aconselhado” por algum especialista de que iniciar a trama, apontando a revelação e o desenvolvimento do enredo já pelo seu final funcionaria para o leitor desacostumado das lógicas machadianas como um verdadeiro spoiler da narrativa. Isso por si só já demonstra o quão complexo é o autor. Esse “conselho” talvez valesse para qualquer iniciante, não para Machado de Assis, um genial criador, um revolucionário à frente de seu tempo.

“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra… Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Lembrar os 160 anos da primeira publicação de Memórias Póstumas ajuda-nos a colocar luz também sobre a negritude do autor, filho de um negro brasileiro com uma portuguesa. Fundador e patrono da Academia Brasileira de Letras, foi o seu primeiro presidente.

Reler Machado, é a sensação de que o reconhecimento de sua obra ainda é irrelevante em um país onde a leitura de seus clássicos deixa a desejar. Ao Brasil profundo ainda não foi dado conhecer o melhor de sua literatura. Paguemos essa dívida.