No Brasil pós-golpe, a classe artística é alvo de ataque e colocada como inimiga a ser abatida pelo governo Bolsonaro. O país vive tempos de retrocesso profundo depois de anos de política inovadora para o setor desenvolvida por Lula e Dilma

 

Os governos Lula e Dilma, entre 2003 e 2015, propiciaram o mais intenso desenvolvimento de políticas culturais da história brasileira, com base em uma perspectiva inovadora, que redimensionou o papel do Estado na área da cultura. Até então, o Estado havia delegado ao mercado, via incentivo fiscal, a atuação no campo cultural. Nos governos do PT, o Estado passou a oferecer condições estruturais para que a diversidade de expressões, fazeres e práticas culturais pudessem ser acolhidas, impulsionadas, fortalecidas e capilarizadas na cena nacional e internacional.

Diante de um históricoW anterior de políticas tímidas, erráticas e intermitentes, o Ministério da Cultura adotou uma política ativa de tratar a cultura em suas dimensões simbólica, cidadã e econômica, como um direito de todos, como inscrito na Constituição de 1988. O novo posicionamento da gestão cultural ensejou a criação do Plano Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura (SNC), ambos incorporados à Constituição, e a organização de programas relevantes, a exemplo do Brasil Plural, Revelando Brasis, DOC-TV, Brasil de Todas as Telas, Mais Cultura nas Escolas, Mais Cultura nas Universidades e o Cultura Viva, tornado lei no governo de Dilma Rousseff. Os governos liderados pelo PT efetivaram uma política inovadora nos territórios com protagonismo dos agentes e fazedores culturais e valorizando a diversidade cultural brasileira.

O novo conjunto de políticas públicas ensejou a formação de agentes culturais pelo país, dinamizando o setor e aumentando as demandas das políticas públicas, do que é exemplo as ações na área do cinema e do audiovisual. A realização das Conferências Nacionais de Cultura tornou a participação popular elemento estruturante da elaboração de políticas, programas e ações ministeriais, mobilizou e ampliou a capacidade organizativa do campo cultural, que se apropriou das políticas públicas e se politizou.

Não surpreende, portanto, que durante o processo de impeachment, entre o final de 2015 e o começo de 2016, a comunidade artística e cultural tenha se destacado na denúncia da quebra democrática que significava o Golpe de Estado. Inúmeros atos e muitas ações nas redes sociais em defesa da legitimidade do mandato de Dilma tiveram o protagonismo do setor cultural naquele período. Esse ativismo teve sequência nos anos seguintes, com a maior parte do campo cultural assumindo posturas de defesa da democracia e contra o autoritarismo.

Diante da posição democrática dos agentes culturais, as forças golpistas e autoritárias foram explicitando uma hostilidade a todo o mundo artístico e cultural. As forças da extrema-direita adotaram uma guerra contra o mundo da cultura. Os artistas passaram a ser tratados como inimigos a serem combatidos, perseguidos e silenciados. A censura e as restrições à liberdade artística voltaram à cena no país após quase 30 anos de democracia.

O desmonte dos acúmulos multifacetados das políticas culturais no período do PT se realizou. A atitude predominante foi destruir tais políticas, ainda que quase nada de relevante fosse colocado em seu lugar. Os cortes profundos no orçamento apontam para o desprezo pela cultura. A queda entre 2016 até 2021 foi constante, decrescendo 80% entre o governo Dilma e os míseros R$ 43 milhões previsto para 2021 por Bolsonaro. Essa redução orçamentária sintetiza o nível de desqualificação das políticas culturais no país desde o golpe.

 

 

O desmonte de Temer

Com a consolidação do golpe midiático-jurídico-parlamentar, iniciou-se um processo de desmonte das instituições e das políticas culturais. Um dos primeiros atos do governo interino de Temer foi a extinção do Ministério da Cultura, criado em 1985. A medida não se concretizou devido à forte oposição da comunidade cultural, que organizou movimentos como o “Fica MinC” e o “Ocupa MinC”, que tomaram as sedes do Ministério da Cultura pelo país e conquistaram, semanas após, a manutenção do ministério.

O MinC foi recriado em 23 de maio de 2016, em uma vitória expressiva do campo cultural. No entanto, sua recriação não resultou na retomada das políticas culturais que vinham sendo desenvolvidas antes do golpe. A partir de 2016, o ministério foi submetido a um processo paulatino de desidratação política, financeira e de políticas públicas.

A instabilidade marcou a gestão do ministério durante o governo de Michel Temer. Em pouco mais de dois anos e meio, passaram pela cadeira quatro ministros: Marcelo Calero (maio a novembro de 2016), Roberto Freire (novembro de 2016 e maio de 2017), João Batista de Andrade (maio de 2017 a julho de 2017) e Sérgio Sá Leitão (julho de 2017 a dezembro de 2018).

O amplo número de ministros em tão curto espaço de tempo demonstra a não importância política dedicada ao ministério e afetou profundamente a continuidade de sua atuação. As três tristes tradições desveladas sobre a história das políticas culturais no Brasil retornaram com toda força: as ausências, os autoritarismos e as instabilidades. O campo cultural voltou a viver tais tradições com uma intensidade que se imaginava superada.

Um choque entre o ministro Marcelo Calero e o então ministro Geddel Vieira Lima em torno da liberação pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) da construção de um edifício em Salvador, no qual o político baiano tinha interesses particulares, detonou o primeiro gestor da cultura, com seis meses no cargo. O substituto Roberto Freire, presidente do PPS, tratou de modo fisiológico e partidarizado o ministério, transformando-o em quase sucursal do Cidadania, ainda que seu discurso fosse uma negação de tal empreendimento.

O cineasta João Batista de Andrade ficou como ministro interino por quase dois meses. Em atrito com o governo, pediu demissão criticando o corte de 43% do orçamento da pasta. Por fim, assumiu Sérgio Sá Leitão, que apequenou ainda mais o ministério, tornando-o um mero balcão da economia criativa, entronizada como programa para salvar a cultura.

A perspectiva adotada difere daquela assumida pela Secretaria de Economia Criativa do MinC no governo Dilma Rousseff, que buscava diálogo, nada automático e fácil, com a diversidade cultural e os criadores populares. Por contraposição a esta perspectiva, o novo enfoque privilegiou as indústrias criativas, em viés deliberadamente submetido aos interesses de grandes empresas.

Praticamente todas as políticas, programas e projetos culturais criados nas gestões petistas foram abandonados, paralisados e desmontados. O desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura e o acompanhamento do Plano Nacional de Cultura foram desleixados. Programas como o Cultura Viva sofreram descontinuidades. O clima político-cultural produzido pelo golpe contaminou a sociedade brasileira com ódio, violência simbólica e física e ataques às liberdades de criação e expressão. A censura voltou a perseguir a cultura e os fazedores de cultura, diferente da ampla liberdade vivida nos governos de Lula e de Dilma. •

 

 

Guerra cultural é parte intrínseca deste governo

Bolsonaro quer apagar a história, como o esforço da Fundação Palmares para suspender homenagens a Gil e outros 26 personalidades negras da história do país

 

Nada estranho que a gestão Bolsonaro tenha escolhido a cultura como inimiga, em conjunto com educação, ciências, artes, universidades públicas e culturas identitárias, em especial em suas manifestações de gênero, afro-brasileiras, LGBTQI+ e dos povos originários. No caso da cultura, a gestão tem se caracterizado por agressões às liberdades de criação e de expressão, pelo retorno da censura, desmonte das instituições, políticas e programas culturais, demonização da cultura e das artes e a deliberada atuação no sentido de asfixiar financeiramente a cultura.

Desde o início do mandato, Bolsonaro aprofundou o desmantelamento da institucionalidade do setor cultural, com a extinção do Ministério da Cultura e sua redução a uma mera secretaria especial, vinculada aleatoriamente ao Ministério da Cidadania e depois, a partir de novembro de 2019, ao Ministério do Turismo.

Em pouco mais de dois anos, os responsáveis institucionais pela área federal da cultura já totalizaram cinco nomes: Henrique Pires (até agosto de 2019), Ricardo Braga (agosto/setembro de 2019), Roberto Alvim (setembro de 2019/janeiro de 2020) e Regina Duarte (março/maio de 2020) e Mário Frias (junho de 2020 em diante).

Além disso, muitos dos cargos de gestão das instituições nacionais vinculadas ao campo cultural foram tomados por indicações de dirigentes sem  quaisquer vínculos anteriores com a área cultural: militares, fundamentalistas religiosos e militantes da extrema-direita. Em geral, são pessoas despreparadas e com posições contrárias à democracia e à diversidade cultural. Alguns, funcionando como verdadeiros agentes para a desmonte dos órgãos e das políticas, sob sua direção.

O desmonte da institucionalidade e das políticas culturais perpassou todo o ministério e órgãos vinculados. As conferências nacionais de cultura deixaram de acontecer e o Conselho Nacional de Políticas Culturais foi paralisado. Sedes regionais do ministério foram fechadas nos estados.

O Sistema Nacional de Cultura e o Plano Nacional de Cultura foram abandonados. Foi preciso que a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) tomasse a inciativa de propor uma lei para ampliar o prazo de vigência do plano, instituído em 2010 e que havia expirado em 2 de dezembro de 2020. Com a nova lei, o plano passou a ter prazo de vigência até dezembro de 2022. A gestão Bolsonaro não havia tomado nenhuma medida para avaliar a execução do plano e a construção de um novo, conforme consta na Constituição.

Os exemplos de desmonte de instituições e políticas culturais, promovidos inclusive por seus dirigentes indicados na gestão Bolsonaro, são muitos. A Fundação Casa de Rui Barbosa, por exemplo, desde a indicação da nova dirigente, passa por atritos internos e perseguições, que têm levado muitos funcionários e pesquisadores a se aposentar. O centro de pesquisas, o setor de estudos de políticas culturais e o setor de direito cultural, que tinha como seu principal projeto a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, foram praticamente desativados e seus estudos e pesquisas, paralisados.

A Cinemateca Brasileira, maior acervo de memória audiovisual (cinema, vídeo e televisão) da América do Sul, vive profunda crise e encontra-se fechada. Após o Golpe de 2016, a administração da Cinemateca foi terceirizada e, partir de janeiro de 2019, passou a ser tratada como órgão extinto, dada a situação do ministério. O contrato assinado com a instituição gestora não foi renovado em dezembro de 2019. Em maio de 2020 a Cinemateca não tinha mais recursos para funcionar e, em agosto, a gestão Bolsonaro fechou a instituição, suspendendo suas atividades. Os riscos de incêndio devido à não manutenção adequada de seus acervos colocam em sério perigo a memória audiovisual brasileira. Muitos materiais já estão perdidos e outros projetos nacionais e internacionais, que dependem da Cinemateca para sua realização, estão parados, com graves prejuízos para a cena e a produção audiovisual.

Caso emblemático de desmonte tem sido a Fundação Cultural Palmares. O dirigente indicado por Roberto Alvim, secretário nacional de cultura exonerado por plagiar um discurso nazista de Joseph Goebbels, transformou a FCP em uma plataforma contra a comunidade e o movimento negro.

Após declarar no seu perfil em rede social que “a escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes”, a Fundação Palmares retirou, em dezembro de 2020, as homenagens a 27 personalidades, entre elas Elza Soares, Gilberto Gil, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Conceição Evaristo, Joaquim Cruz e Marina Silva. Recentemente, o órgão anunciou a exclusão de todos os arquivos associados à Carlos Marighella e a mudança do logotipo da instituição, alegando que referência ao machado de Xangô do candomblé.

Três importantes eixos do trabalho da Fundação Palmares foram abandonados e destruídos. A defesa dos territórios remanescentes de quilombos no plano jurídico e institucional foi descartada. Na gestão atual não houve nenhuma certificação, titulação ou ações de apoio, que significassem melhoria dessas áreas. Pelo contrário. Têm sido incentivadas a invasão e as ameaças aos quilombolas.

A situação se torna ainda mais grave com a revogação da proteção ambiental dos quilombos brasileiros. O segundo eixo, destinado à preservação, difusão e intercâmbio entre as manifestações culturais de origem negra, está praticamente suspenso, sem nenhuma iniciativa, em particular com relação ao continente africano.

O terceiro eixo, também paralisado, trata da inclusão plena do negro na sociedade brasileira, por meio de palestras, seminários, oficinas, capacitações com a valorização da cultura negra e do legado da população negra para o processo civilizatório brasileiro. Além da desativação das políticas, a gestão tem destruído seu acervo digital, iconográfico e de conteúdo. A atitude de agressões e de provocações constantes do atual gestor da Fundação Palmares encarna o espírito bolsonarista no campo cultural.

A asfixia financeira à cultura foi atitude deliberada da gestão Bolsonaro. O livro, isento de impostos desde a Constituição de 1946, por iniciativa do deputado comunista Jorge Amado, e desonerado do PIS e Confins no governo Lula em 2004, por proposta do ministro Paulo Guedes, voltou a ser taxado. Os recursos do incentivo fiscal, via Lei Rouanet, encontram-se paralisados, e o mesmo ocorre com o fomento através do Fundo Setorial de Cultura e da Ancine, levando a uma situação dramática de risco de sobrevivência da cultura e do audiovisual brasileiros. •

 

Sérgio Camargo é alvo de ação do PT

Deputados do PT na Câmara ingressaram com ação na Procuradoria Regional da República no Distrito Federal contra o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, diante da ameaça de exclusão de livros do acervo da instituição. Em 11 de junho, a Fundação declarou que apenas 5% das obras (478 livros) cumprem a missão institucional da fundação. Os outros 95% (9.565 títulos), segundo a direção da autarquia, seriam “alheios a temática negra” ou teriam “viés marxista” ou de “militância política”.

 

O abandono da cultura durante a pandemia

A gestão da pandemia da Covid-19 por Bolsonaro é irresponsável, incompetente e genocida. No caso da cultura, soma-se ainda uma deliberada negligência, uma vez que o governo não propôs qualquer medida específica para apoiar o setor cultural, atingido em cheio pelas medidas de distanciamento social do coronavírus. O PT apresentou no Senado o projeto Paulo Gustavo para assegurar R$ 4,4 bilhões ao setor durante a pandemia.

Diante da inação do Palácio do Planalto, a Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/2020) nasceu por proposta da deputada Benedita da Silva, prevendo três frentes de apoio – renda emergencial de R$ 600 mensais para pessoas físicas, subsídios mensais para manutenção espaços culturais, e editais, chamadas públicas e prêmios destinados ao setor.

Embora tenha sido aprovada em junho, a lei foi regulamentada somente em agosto, expressão do descaso do governo com o setor. Esta demora fez com que os R$ 3 bilhões previstos até o final de 2020 não fossem aplicados integralmente, o que exigiu nova movimentação do Congresso, para elaborar legislação prorrogando prazo até o fim de 2021.

Portanto, a análise da gestão Bolsonaro no campo da cultura não deve se ater ao desmonte da institucionalidade e das políticas culturais, por mais drástico que este processo seja. Simultaneamente à destruição, a guerra cultural bolsonarista pretende impor uma monocultura autocrática e autoritária com componentes negacionistas, criacionistas, fundamentalistas, terraplanistas, classistas, supremacistas, racistas, machistas, homofóbicos e preconceituosos.

É um dado novo para a compreensão do lugar que a cultura ocupa na cena política brasileira atual. Desconhecer a singularidade da cultura estar inscrita, pela extrema-direita que ocupa o poder federal, na agenda política nacional contemporânea de modo poderoso e explícito, pode dificultar a superação do autoritarismo e ultraneoliberalismo vigentes.

E os polos desencadeadores da guerra cultural, além do presidente e de seus aliados, mesmo fora do governo, antes localizados em pastas como os ministérios da Educação e das Relações Exteriores, parecem se concentrar, em 2021, na própria Secretaria Especial de Cultura. •