A violência policial provoca traumas com os quais a sociedade mas, principalmente, os moradores de bairros das periferias, na esmagadora maioria, pretos – vítimas de um genocídio estrutural –, são obrigados a conviver. As situações traumáticas são desesperadoras. É o caso da morte da jovem Kathlen Romeu de 24 anos, que estava grávida de 14 semanas. Ela foi vítima de um disparo de fuzil que atravessou seu pulmão, na terça-feira, 8, no Rio de Janeiro.

Mais uma vez, morte provocada pelo confronto entre policiais e traficantes no Rio. O caso gerou comoção no país. O pior é que a situação absurda não é exceção, segundo levantamento realizado pela plataforma Fogo Cruzado. Os números mostram que 15 gestantes foram baleadas na Grande Rio. Nove bebês e oito mulheres morreram. Do total, 4 foram baleadas em ações policiais.

Os excessos da polícia são um problema estrutural. Essa conclusão é de especialistas responsáveis pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É possível mencionar muitos outros casos de violência policial, como a operação na Favela do Jacarezinho – realizada pelo grupo de elite da Polícia Civil, em maio. Ou ainda o ataque a manifestantes no Recife em que dois homens, que sequer participavam dos atos, foram atingidos por balas de borracha nos olhos e perderam parte da visão.

Existe ainda o caso em Goiás, em que um professor foi detido por manter faixa presa no carro com as palavras “Fora Bolsonaro genocida”. São violências de tipos diferentes, que afetam grupos distintos da sociedade e de maneiras que não são semelhantes. Mas, o que existe de comum em todas as situações é a insegurança provocada por agentes e grupos que deveriam fazer a segurança.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2020, período no qual o país foi atingido pela pandemia da Covid-19, e que forçou milhões de brasileiros a adotarem medidas de isolamento social, as mortes provocadas por intervenções policiais cresceram 6% em números absolutos, vitimando 3.181 pessoas.

Ex-comandante da PM de Alagoas e atualmente na reserva, o coronel Luciano Silva afirma que a violência policial é um problema que tem origem em vários fatores, mas o primeiro é a formação. “Ela faz com que [o policial] veja o cidadão como inimigo, como se fosse para uma guerra”, lamenta. Silva ainda aponta a forte ligação histórica das PMs com o Exército e a militarização como fatores que levam a essa violência.

No entanto, o coronel pondera que os casos de violência e abusos são minoria nas ocorrências policiais. A delegada Adriana Accorsi, que já foi delegada geral da Polícia Civil de Goiás e é deputada estadual pelo PT, também acredita que a formação seja o problema. Ela diz que o treinamento, herança ligada à cultura da ditadura militar, prepara para combater quem se manifesta por direitos. “Há uma espécie de guerra que estaria acontecendo entre a polícia e a sociedade”, observa.

A deputada também inclui as Guardas Municipais Metropolitanas como forças de segurança que cometem excessos e têm entendimentos inadequados em função da formação. Accorsi também coloca a impunidade e a pressão da sociedade para que os policiais sejam justiceiros.

As condições de trabalho também são apontadas como parte do problema pelo delegado João Tayah, atuante em Manaus. Ele afirma que os policiais vivem em um ambiente muito negativo e de excesso de tensão em função do risco constante de confronto. Na sua avaliação, isso também afeta a saúde mental dos agentes. O coronel Luciano Silva concorda.

O problema é, de fato, grave. “A taxa de suicídios entre policiais militares e civis da ativa no Brasil em 2019, de 17,4 por 100 mil, foi quase o triplo da taxa verificada entre a população em geral, que ficou em 6 por 100 mil habitantes em 2019”, diz o anuário.

Em meio a esse caldeirão, adiciona-se o bolsonarismo. “Essa retórica do atual presidente que sequestrou uma boa parte dos policiais é uma negativa e que depõe contra a missão da PM”, comenta o coronel. “Eu me assusto com alguns policiais que se renderam a esse discurso fácil”.

O ex-comandante da PM considera que a ação da tropa de choque em Recife foi claramente movida por motivações políticas. Já sobre o caso em Goiás, avalia tratar-se do bolsonarismo em seu estado latente. Ele lembra que o oficial da PM goiana utilizou a farda para constranger alguém que tinha pensamento político diferente do dele.

Policial civil de Porto Alegre e vereador pelo PT, Leonel Radde vê uma piora nos casos de violência. “De fato a polícia está mais violenta e tem atuado de forma mais truculenta. Não toda a polícia, mas grupos específicos que têm uma ligação direta com o posicionamento político dos seus membros”, adverte.

A grande incidência do discurso bolsonarista ocorreu com mais força nas eleições de 2018. Nesse período, Bolsonaro fez promessas de carta branca para matar. “Ele também sinalizou pelo discurso anticorrupção e de fortalecimento da segurança pública, embora este também não se concretizou”, aponta o delegado João Tayah.

Outro elemento, segundo Adriana Accorsi são os programas de TV policialescos que fazem coro a esse discurso de que os policiais devem agir como justiceiros. “Exigem essa postura e estimulam a população a exigir”, lamenta. No entanto, Tayah, Accorsi, Radde e o coronel afirmam que o bolsonarismo está perdendo força entre os policiais.

Eles integram o grupo Policiais Antifascistas, já presente em 20 estados. Tayah é membro do Policiais pela Democracia, movimento organizado no Amazonas. Esses movimentos pregam a ideia de uma polícia preponderantemente comunitária e que respeite todos os cidadãos e formas de pensamento.

O movimento antifascista cresce dentro das corporações, mas ainda precisa de apoio da sociedade. Os quatro entrevistados afirmam que o bolsonarismo perdeu força em função do não cumprimento de promessas de campanha. Mas, principalmente, porque Bolsonaro causou uma série de prejuízos aos servidores públicos em geral. Eles mencionam que muitos policiais têm familiares ou cônjuges servidores e acabaram tendo suas vidas afetadas.

O coronel Luciano Silva menciona que dentro das corporações existem três grupos: os bolsonaristas, com os quais é impossível dialogar; os antifascistas; e os profissionais que não se posicionam. Com este último grupo há maior possibilidade de diálogo e uma leitura diferente do sistema, diz. Muitos não se posicionam por receio de perseguição de superiores.

Tanto Accorsi quanto Radde apontam que o bolsonarismo está mais presente nas polícias militares. Na civil, o discurso perdeu muita força. Entretanto, ambos compreendem que a simples existência dessa parcela já é um risco para a sociedade.

As tentativas de Bolsonaro de estimular a adesão de policiais a um movimento de revolta contra a sua possível derrota nas eleições de 2022 geram preocupação porque existem agentes que são radicais, mas são minoria. “Acho que pode haver a iniciativa individualizada de alguns policiais”, alerta Tayah. Ele vê as cúpulas das polícias muito insatisfeitas com o governo. “Essa é uma possibilidade real”, pondera Radde.

O ativista gaúcho considera que as atitudes dos governadores serão fundamentais no processo de aproximação ou afastamento dos policiais com relação à retórica do presidente. Por outro lado, a rixa histórica entre as esquerdas e as polícias é um problema porque dificulta qualquer tentativa de aproximação. Os próprios policiais ouvidos pela reportagem confessam que não são bem aceitos por parte dos integrantes da esquerda. Todos são unânimes em dizer que as esquerdas precisam reconstruir suas formas de pensar a segurança pública e também a relação com as polícias.

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