De 2010 para cá, uma série de golpes de Estado motivaram reações de perplexidade e desassossego, com a destituição de governos progressistas na América Latina. Tornou-se cada vez mais presente nas democracias latino-americanas o uso do aparato judicial do Estado, o chamado lawfare, para perseguir líderes políticos do campo popular.

A conjunção desses fatores, somados à incapacidade da direita neoliberal de derrotar os projetos progressistas nas urnas, culminou, por exemplo, nos golpes contra Fernando Lugo no Paraguai em 2012, Dilma Rousseff no Brasil em 2015, e Evo Morales na Bolívia em 2019. Também ficou evidente o jogo das classes dominantes subalternas aos interesses externos ao apoiar e colocar todo o aparato da mídia  oligopolista para justificar a perseguição judicial aos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, Rafael Correa, do Equador, e Cristina Kirchner, da Argentina.

Só, a partir de 2019, um novo fator surgiu como grande contrapeso ao avanço dos governos da direita no continente: a mobilização popular. Nos últimos três anos, milhões de pessoas tomaram as ruas em países como Chile, Colômbia, Peru, Paraguai e Argentina, entre outros. Em alguns casos, tais mobilizações resultaram em avanços expressivos, como a eleição de governos populares, caso da Argentina e do México, o impedimento do avanço de reformas neoliberais e a convocação de uma nova Assembleia Constituinte, no Chile.

Agora, a onda popular se expande para outros países e já é visto por expressivos líderes da esquerda brasileira como um sopro de esperança. Dias melhores parecem estar próximos, enquanto a região segue na mais terrível desigualdade social, acumulando miséria, pobreza e desemprego e mortes por Covid. Cresce a recente onda de resultados favoráveis à esquerda na América Latina —à exceção do Equador—, o que, avaliam, é o prenúncio da derrota de Jair Bolsonaro em 2022.

PERU

Apesar de ainda não haver uma definição oficial, o caso mais recente de vitória das forças populares na região latino-americana é a eleição do dirigente sindical Pedro Castillo para presidente do Peru, nas eleições realizadas no domingo, 6 de junho. Em uma disputa acirrada, com 98,5% das atas apuradas, Castillo derrotou a filha do ex-ditador Alberto Fujimori, Keiko Fujimo, candidata de uma coalizão conservadora e neoliberal por uma margem de 50,193% contra 49,807%. Uma diferença de 67.116 votos.

Castillo tomará posse em 28 de julho. Mas, a candidata derrotada, sem apresentar qualquer prova, convocou jornalistas para apontar uma suposta fraude no processo eleitoral peruano. Fujimori declarou que há uma “clara intenção de boicotar a vontade popular”. Ela recorreu ao mesmo expediente utilizado pelo candidato derrotado nas eleições norte-americanas Donald Trump.

As acusações de Keiko foram negadas pelo Júri Nacional de Eleições do Peru que apresentou um relatório da missão de observadores da União Interamericana de Órgãos Eleitorais, que afirma que o pleito ocorreu de modo regular e foi exitoso, numa eleição disputada, apertada, mas limpa. A missão de observação da OEA, composta por 40 membros, também reafirmou o êxito das eleições peruanas e não repetiu a vergonhosa atitude golpista que promoveu nas eleições bolivianas.

A vitória de Castillo acontece depois de um longo processo de profunda instabilidade política e uma série de protestos e manifestações nacionais, com a greve agrária naquele país, em novembro de 2020.  Descritas como as maiores manifestações no Peru das últimas duas décadas, a mobilização durou oito dias e foi desencadeada após a destituição do então presidente Martin Vizcarra, que sofreu um impeachment pelo Congresso por “incapacidade moral”.

CHILE

Outra vitória fundamental das mobilizações populares na América Latina ocorreu no Chile, em maio. Após fortes mobilizações desencadeadas pela juventude, que começaram em outubro de 2019, o presidente conservador Sebastián Piñera foi forçado a convocar um plebiscito para a organização de uma Assembleia Constituinte.  As manifestações tiveram início a partir de um movimento de estudantes contra aumentos de preços do metrô de Santiago, reprimido com força desproporcional pela polícia chilena, os carabineros.

Depois da brutal repressão policial, milhões de chilenos tomaram as ruas das principais cidades do país contra a política neoliberal de Piñera e a atual Constituição do país, que data da ditadura de Augusto Pinochet, que ascendeu ao poder em 11 de setembro de 1973 depois de impor um Golpe de Estado com a mão forte do Exército.

Dessa vez, a forte repressão que cegou dezenas de jovens, além de denúncias de violação de estudantes pelas repressão policial, não conseguiu conter a determinação e persistência da juventude e dos movimentos populares chilenos. O plebiscito foi realizado em outubro do ano passado, quando 80% da população votaram pela mudança do texto constitucional.

Em maio deste ano, as eleições da nova Assembleia Constituinte deram vitória aos partidos progressistas e aos candidatos independentes. Os conservadores não conseguiram o mínimo de um terço das cadeiras na Constituinte, número necessário para ter direito a veto na Assembleia, que será composta por 155 parlamentares.

A juventude, as mulheres e as chapas formadas por independentes que emergiram das lutas populares foram a grande novidade nas eleições do Chile. Já a esquerda e os progressistas precisam evitar o risco da fragmentação, uma vez que aprovação de qualquer emenda depende da maioria de dois terços dos votos.

Outra vitória do campo popular foi a adoção da cláusula de paridade de gênero e a inclusão de 17 cadeiras reservadas para representantes dos povos indígenas. A composição da Constituinte será de 83 mulheres e 73 homens, uma importante mudança histórica.

 

COLÔMBIA

Na Colômbia, desde o final de abril, o povo está nas ruas contra as reformas neoliberais propostas pelo presidente de extrema direita Iván Duque. Os movimentos populares conseguiram impedir a proposta do presidente colombiano que pretendia arrecadar US$ 5 bilhões em impostos para evitar queda da pontuação do país junto às agências de risco internacional.

Para isso, Duque propôs um aumento de impostos sobre a renda e sobre produtos básicos e a cobrança de 19% no Imposto de Valor Agregado (IVA) sobre serviços públicos, o que atingiria diretamente a classe média e os mais pobres do país.

A repressão policial contra os manifestantes colombianos já deixou pelo menos 61 mortos e há uma série de acusações de violações de direitos humanos. No momento, realiza-se a visita de uma delegação da Corte Interamericana de Direitos Humanos para apurar a violência policial. Delegações de observadores internacionais foram impedidas de permanecer no país.

Há três frentes de luta: os movimentos populares e sindical históricos, a juventude com uma poderosa e inovadora capacidade de mobilização e os bloqueios de estradas promovidos por forças de esquerda e de direita militarizadas. As negociações entre as forças populares mobilizadas e o governo não avançaram, e algumas medidas de fechamento do regime foram promulgadas.

Porém, a situação também fez com que Duque anunciasse, no último domingo, 6, uma série de medidas para modernizar o Ministério da Defesa e promover uma “transformação integral” da polícia. O presidente colombiano prometeu a criação de um novo estatuto disciplinar e de um novo sistema de recebimento de reclamações e denúncias para “alcançar a excelência” no trabalho policial.

 

MÉXICO

Outro país em que os progressistas ganharam força após a onda de golpes na América Latina é o México, que desde 2018 é é governado pelo Movimento de Regeneração Nacional (Morena), na figura do presidente Andrés Manuel López Obrador. No domingo, os mexicanos foram as urnas para a eleição do Congresso Nacional e dos governadores de alguns estados.

O resultado foi uma ampliação do Morena nos governos locais. Dos 15 estados em disputa, o partido do presidente Obrador ganhou 11. Como já governavam cinco, o Morena ampliou seus governos locais para 16 estados, exatamente a metade do total de governos estaduais mexicanos.

O resultado das eleições parlamentares também consolidou a ampla maioria da coligação liderada pelo Morena na Câmara dos Deputados.  Dos 500 parlamentares eleitos, a coligação do partido de Obrador elegeu 338 deputados, dos quais 254 são do Morena, 40 do Partido do Trabalho, 26 do Partido Encontro Social e 13 aliados do Partido Verde. Todos são da base de sustentação do governo.

Apesar disso, presidente e o Morena não têm mais a maioria absoluta do parlamento. A oposição de direita teve um crescimento, mas o governo segue sendo a força majoritária e vitoriosa nas urnas.

 

DEMAIS PAÍSES

Na Argentina, o povo também derrotou o projeto de direita nas últimas eleições presidenciais, quando a chapa peronista formada por Alberto Fernández e Cristina Kirchner impediu a reeleição do neoliberal Maurício Macri. A resistência a Macri foi marcada por uma forte mobilização popular e por diversas greves gerais ao longo do governo do ex-presidente argentino.

Na Bolívia, depois do golpe contra a eleição de Evo Morales, o povo voltou às ruas, com fortes mobilizações e novamente elegeu um governo popular. No ano passado, o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Luis Arce derrotou os adversários, ficando 26,3 pontos à frente do adversário mais próximo, o direitista Carlos Mesa.

Uma das peças fundamentais da vitória de Arce foi o vice-presidente eleito, David Coquehunca. Índígena e ex-dirigente sindical, ele é líder popular dos plantadores de coca da região andina da Bolívia. A vitória do MAS permitiu o retorno de Evo Morales a La Paz, em grande manifestação popular.

No Paraguai, em março deste ano, manifestantes deflagraram uma forte onda de protestos pelo impeachment do governo de direita liderado pelo presidente Mario Abdo Benitez e seu vice, Hugo Velázquez, em razão da crise sanitária que vive o país. A mobilização popular resultou na renúncia do ministro da Saúde, Julio Mazzoleni, e nas trocas dos ministro da Educação, Eduardo Petta, da Mulher, Nilda Romero, e do chefe de gabinete do governo, Ernesto Villamayor.

Já no Equador, a esquerda não conseguiu formar uma unidade e foi derrotada, por margem pequena de votos. Foi eleito o conservador Guilhermo Lasso. Vale destacar que o ex-presidente Rafael Correa, maior liderança popular do Equador, sofre um intenso processo de perseguição judicial e foi impedido de participar das eleições presidenciais de abril deste ano.

 

BRASIL

No Brasil, as forças populares retomaram as mobilizações contra o governo Bolsonaro em 29 de maio, quando mais de 420 mil pessoas, em todos os estados do país, tomaram as ruas do país aos gritos de “Fora Bolsonaro”. Outro grande ato está previsto para ocorrer no próximo sábado, 19 de junho. Os organizadores ligados aos movimentos sociais, entidades sindicais e organizações da sociedade civil esperam colocar 1 milhão de pessoas contra o governo Bolsonaro e em favor do auxílio emergencial de R$ 600 e contra a condução da pandemia da Covid-19.

O caso é que o presidente Jair Bolsonaro enfrenta forte rejeição popular pela condução desastrosa da pandemia – que já matou quase 500 mil brasileiros – e está perdendo espaço na corrida presidencial de 2022 para o ex-presidente Lula, que lidera todas as pesquisas de intenção de voto para a eleição, enquanto Bolsonaro e bate recordes de impopularidade.

Bolsonaro segue com seu negacionismo e obscurantismo que conduziu o país a maior crise sanitária de toda a história. São inúmeras as iniciativas do presidente que sinalizam para a tentativa de afrontar um resultado desfavorável das eleições de 2022. Há uma clara tentativa de articular forças golpistas, que incluem milícias, parte das polícias militares e, aparentemente, um setor das Forças Armadas.

Por isso, as mobilizações populares no Brasil têm um papel estratégico de defesa do Estado Democrático de Direito e serão decisivas para garantir eleições limpas e que o resultado seja respeitado. Lula segue se fortalecendo e articulando um amplo leque de forças para vencer e iniciar um novo governo de reconstrução nacional, a partir de 2022.

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