O Partido dos Trabalhadores tem apresentado à sua militância e à sociedade brasileira um Plano para a Reconstrução e Transformação do Brasil, uma proposta em edificação para o diálogo amplo no país. O eixo estratégico do plano é a “construção de um Brasil desenvolvido, igualitário, solidário, soberano, ambientalmente sustentável e profundamente democrático”.

Para se atingir tal objetivo são necessárias mudanças estruturais na realidade brasileira, de modo a enfrentar e superar relações de poder que aprofundam desigualdades, exploração, violência e fome no Brasil e na América Latina. Entre tantas outras, a Reforma Agrária configura estas mudanças.

No entanto, é preciso dizer que a noção de reforma agrária é objeto de polêmicas e disputas há muito tempo no Brasil, inclusive na esquerda. Há aqueles que entendem não haver mais necessidade de qualquer reforma agrária, e que no máximo a promoção do desenvolvimento rural passa por incluir a “agricultura de subsistência” nas relações capitalistas de produção e comercialização. Outros compreendem a reforma agrária como uma ação social focal, que visaria manter no campo uma parcela de famílias que tenham ao menos condições mínimas de sobrevivência. Há a leitura do papel econômico e político da reforma agrária na promoção do desenvolvimento nacional, papel articulado com um projeto de transformação da nossa sociedade. São concepções mediadas pelos distintos diagnósticos da sociedade brasileira e possibilidades de sua transformação.

O acesso, uso e propriedade da terra é o cerne de qualquer debate sobre reforma agrária. Os conflitos por terra são históricos no nosso país, das Sesmarias à Lei de Terras de 1850 temos aparatos estatais e marcos legais que configuraram uma estrutura fundiária excludente, extremamente concentrada. Em que pese o Estatuto da Terra (1964) e a Constituição de 1988 terem estabelecidos marcos legais para a democratização da terra, os modelos de desenvolvimento promovidos pelo Estado brasileiro seguiu reforçando a concentração fundiária e dos recursos públicos para a grande produção de commodities.

A continuidade da concentração fundiária no Brasil, e, portanto, da concentração de poder econômico e político, não ocorreu sem resistência e aprendizados importantes. No contexto das lutas pela redemocratização, de ascenso das mobilizações por terra e surgimento do MST, foi lançado em 1985 o I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). As lutas dos movimentos sociais rurais também provocaram mudanças institucionais e nas políticas públicas. Desde a criação e extinção do Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (MIRAD) nos anos 1980, até o retorno de um ministério exclusivo para a agricultura familiar nos governos FHC. No bojo do massacre de Eldorado dos Carajás no Pará em 1996, foi criado o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, e no ano 2000 é instituído o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Neste período ganha destaque o termo e a identidade “agricultura familiar”.

No âmbito das políticas públicas foram criados instrumentos importantes para os pequenos agricultores produtores de alimentos, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Pesquisas como o Impacto dos Assentamentos (NEAD/2004) demonstram que regiões que concentram assentamentos de reforma agrária apresentam mudanças que impactam desde a diversificação e acesso a alimentos para a população, à melhoria nas condições econômicas e sociais com a geração de emprego e renda, circulação de recursos como crédito e comercialização de produtos nessas regiões, e no acesso à saúde e educação. Por tanto, reforça como a Reforma Agrária pode ter um impacto em um modelo de desenvolvimento que promova a melhoria das condições de vida e redução de desigualdades sociais movimentando positivamente a economia local e regional. Isso, em um cenário ainda de baixo investimento público.

No fim dos anos 1990 ocorre uma ofensiva ideológica, política e institucional das forças antagônicas a qualquer projeto de reforma agrária. Há uma diminuição na mobilização por terra. Emerge o termo “agronegócio” positivando o modelo agrícola de produção de commodities. São propostos mecanismos de enfraquecimento e freio dos movimentos populares do campo, como Banco da Terra e a medida provisória 2.027-38/2000, que proibia a vistoria de fazendas ocupadas “por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo” durante um período de dois anos (até quatro anos em caso de reincidência).

Os governos Lula e Dilma foram importantes para a paralização da escalada de criminalização da luta pela terra e seus movimentos sociais, e para uma valorização da agricultura familiar, dos camponeses, e dos povos e comunidades tradicionais. Intensificaram e ampliaram as políticas públicas para o setor, com destaque para o PAA, PNAE, Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) e os volumes crescentes de recursos nos planos safras com foco nos pequenos e médios produtores. Foram inúmeras iniciativas de arranjos institucionais e de políticas públicas voltadas para a agricultura familiar na produção, na comercialização, na distribuição de alimentos e na geração de renda.

No entanto, uma formulação estratégica de conciliação com o agronegócio e uma correlação de forças desfavorável, impossibilitou avanços na estrutura fundiária brasileira, assim como de alteração estrutural no modelo de produção agrícola. É inegável o peso econômico e político dos produtores de commodities em nosso país, o que merece uma análise mais detalhada em outra oportunidade.

O Brasil possui uma das maiores concentrações de terras do mundo e ocupa o segundo lugar em concentração de renda (Relatório RDH/ONU). Segundo o Atlas do Espaço Rural Brasileiro (IBGE, 2020) os pequenos produtores (até 50 hectares), responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos no país (Atlas Brasil Agrário), detém 81% dos estabelecimentos rurais, e ocupam 12,8% da área total ocupada pela produção rural no Brasil.

Já as maiores extensões de terra registradas, com mais de 2,5 mil hectares, representam 0,3% dos estabelecimentos, com 32,8% da área ocupada. Importante ainda ressaltar que 1% dos proprietários detêm 45% da área rural. Seguimos com uma estrutura fundiária limitadora da promoção da segurança e soberania alimentar, e da geração de emprego e renda para população brasileira.

A elite rural brasileira segue tendo um perfil que nos remete a nossa história excludente de ocupação fundiária: branca, masculina e envelhecida. Segundo o Censo Agropecuário 47,9% dos proprietários se declaram de cor ou raça branca, 7,8% preta, 0,6% amarela, 42,6% parda e 0,8% indígena. Mas nas áreas de até 1 hectare 25,5% se declararam de cor ou raça branca, 13,6% preta, 1,8% amarela, 57,9% parda e 8,3% indígena. Já para as propriedades com mais de 500 hectares 72,2% dos proprietários são de cor ou raça declarada branca, 2,5% preta, 0,06% amarela, 23,9% parda e 0,4% indígena. Portanto temos nas maiores áreas os proprietários majoritariamente de cor ou raça branca. E ainda, são homens, 81,3% que dirigem os estabelecimentos, enquanto apenas 18,7% são mulheres, apesar de termos uma pequena melhora comparando os Censos Agropecuários 2006 e 2017, as mulheres passaram de 12,7%, em 2006, para 18,7%, em 2017. Um terceiro fator importante é que seguimos observando o envelhecimento do campo brasileiro e os limites da sucessão rural nos marcos da nossa estrutura fundiária. De 2006/2017 houve redução, em termos absolutos e relativos, nos estabelecimentos dirigidos por produtores com menos de 45 anos (de 38,8% para 29,2%), dos quais apenas a metade com menos de 35 anos, enquanto as faixas mais elevadas aumentaram (de 61,2% para 70,9%). (IBGE,2020)

Mas por que a Reforma Agrária parece um tema quase invisível para a população brasileira? O que permite que se misture o enfrentamento das formas desiguais de produção e de interesses distintos para a maioria da população brasileira com o Agro é Pop (sic)? Em que poderíamos como governo e sociedade civil termos feito para disputar nos corações e mentes da população brasileira para a centralidade da Reforma Agrária?

Essas são questão importantes para pensarmos como retomar a urgência da Reforma Agrária para um projeto de transformação. Ao longo de 13 anos os governos do PT avançaram em um diálogo com a população brasileira sobre a importância da alimentação saudável. Ou seja, conseguimos por meio de políticas públicas e da ação dos movimentos sociais avançar no reconhecimento social da importância da alimentação saudável, introduzindo os produtos orgânicos, agroecológicos ou de transição com baixo uso de agrotóxicos, nos mercados e na mesa dos brasileiros. O Bolsa Família e o enfrentamento da pobreza rompe com o coronelismo, enxada e voto que se materializava de muitas formas, como nas filas do R$1,00 nas prefeituras, nos anos 1990 e início dos anos 2000, durante períodos cíclicos de secas, que não eram tratadas por políticas públicas que potencializassem formas de convivência como o Programa 1 Milhão de Cisternas.

No entanto, não avançamos no entendimento junto a população brasileira, e em especial junto aos trabalhadores urbanos, da relação direta da origem do alimento que chega à sua mesa com a produção da agricultura familiar, e na centralidade da Reforma Agrária para a mudança estrutural das relações de poder historicamente violenta e desigual.

Para avançarmos são fundamentais o enfrentamento de questões persistentes. É imprescindível o fortalecimento dos mecanismos de aquisição, fiscalização e distribuição de terras com infraestrutura que promovam não só a produção, mas o bem viver no campo com acesso em especial para as mulheres e jovens. Definir com clareza a defesa da Reforma Agrária e do direito a um desenvolvimento sustentável, ambientalmente e socialmente justo, e promotor da segurança e soberania alimentar. Isso significa de um lado investir recursos equivalentes ao que representa ser responsável por boa parte dos alimentos que chegam à mesa do povo brasileiro, e por tanto, garantir as muitas formas de ampliar a produção familiar e coletiva de alimentos como a agricultura urbana, e o controle da gestão dos recursos produtivos. E impactar na estrutura fundiária com uma Reforma Agrária popular, a demarcação das áreas indígenas e o reconhecimento das terras quilombolas. Mas principalmente definir os limites da exploração das grandes produções com a fiscalização incondicional do trabalho e escravo e promoção do trabalho decente, discutir o limite da extensão da terra para garantir sua função social, combater a monocultura como modelo de produção, e o controle do uso de agrotóxicos. Estes são alguns eixos centrais para promover uma mudança necessária para um outro Brasil.

Em meio a maior pandemia sanitária já vivenciada no último século, a Covid-19, temos a atuação contundente de movimentos sociais rurais e em especial das suas juventudes, para diminuir as fronteiras invisíveis entre o rural e urbano do Brasil, garantindo o alimento saudável para a população que hoje retorna às mazelas da extrema pobreza fomentada por um governo genocida. Com práticas intergeracionais essas experiências têm preservado os mais velhos de se exporem e avançado na troca de saberes, incluindo a potencialização do uso das tecnologias na promoção de ações de solidariedade.

Os retrocessos impostos a partir do Golpe de 2016 e a ascensão do bolsonarismo nos colocam enormes desafios para a disputa de um novo projeto que tenha na Reforma Agrária um pilar central para a promoção da democracia no Brasil. A Reforma Agrária no Brasil do século XXI tem que resolver antigos e novos desafios. Promover soberania e segurança alimentar tendo por base um novo modelo de matriz produtiva que contribua na preservação ambiental, com geração de emprego e renda e do bem viver, ao mesmo tempo que altera estruturalmente as relações de poder.