Emprego: há futuro?
A pandemia da Covid-19 teve, no Brasil, a virtude de tornar visíveis, até mesmo para as autoridades econômicas do atual governo, os graves problemas de subutilização da força de trabalho e de extrema desigualdade. Mas, não as sensibilizou sobre a natureza e determinantes desses fenômenos. Os problemas de desigualdade na distribuição da renda e do desemprego e da informalidade requerem soluções mais profundas e abrangentes do que auxílios emergenciais ou medidas assistenciais permanentes, como a renda básica e suas variantes.
A desigualdade social e o desemprego não são problemas conjunturais, são características estruturais da sociedade brasileira. Raros foram os períodos em que os indicadores de emprego e distribuição de renda mostraram melhoras significativas, como ocorreu entre 2004 e 2014. Mesmo esses avanços foram rapidamente revertidos nos anos seguintes, no marco do Golpe de 2016, da recessão e da adoção, a partir do final de 2016, de políticas pró-mercado antagônicas ao crescimento.
Os dados pré-pandemia são eloquentes. Em 2019, a taxa média de desemprego aberto foi de 11%, entre jovens de 18 a 24 anos de 23,8%, a taxa de subutilização da força de trabalho alcançou 23% e os trabalhadores informais representavam 44% do total de ocupados. Em 2014, esses mesmos indicadores eram de 6,5%, 14,1%, 14,9% e 39% respectivamente.
Sobre a desigualdade, os dados são similares. O coeficiente de Gini que vinha caindo desde 2002 voltou a subir. A taxa de pobreza que havia caído expressivamente para 8,4% em 2014 reverteu essa tendência e alcançou 13,8% em 2019. Por fim, a participação dos 40% de menores rendas no total de rendimentos caiu de 13,6% em 2014 para 12,1% em 2018, enquanto a dos 10% mais ricos passou de 34,5% para 37%.
O desemprego estrutural tende a ser agravado pelos efeitos das novas tecnologias associadas à chamada Quarta Revolução Industrial. A generalização dessas tecnologias provavelmente tornará redundante uma parte expressiva da força de trabalho atualmente ocupada. Mesmo com a criação de novos tipos de ocupação, seus efeitos tendem a ser demolidores.
E importante recordar que, como parte do processo de acumulação de capital, toda mudança tecnológica envolve uma redução potencial de ocupação da força de trabalho disponível. Ao mesmo tempo, cumpre também um papel essencial como vetor de dinamização da economia. Isto porque o crescimento econômico supõe o aumento progressivo da produtividade do trabalho. E a sinergia entre esse aumento e o ritmo de expansão da economia é a única maneira de compatibilizar a transformação tecnológica com a preservação e/ou expansão do emprego.
A globalização e a financeirização da economia mundial agregam outros ingredientes a esse quadro. No caso brasileiro, muitas das consequências da revolução digital não dependem tanto da incorporação das novas tecnologias ao sistema produtivo local, mas dos efeitos indiretos derivados da perda de competitividade e do padrão de especialização produtiva. A desregulamentação e a abertura indiscriminadas da economia tem, assim, um papel chave na propagação dos efeitos diretos e indiretos da atual revolução tecnológica.
Também a reforma trabalhista de 2017 e outras medidas, como a Lei da Liberdade Econômica de 2019, tornam mais complexa a questão ocupacional. Em situações de desemprego estrutural, a modificação das modalidades de emprego e das relações de trabalho, orientadas à redução dos custos salariais e à diminuição do papel dos sindicatos como instrumentos de negociação e barganha dos trabalhadores, tende a desequilibrar em favor do capital o conflito distributivo e potencializa os efeitos negativos das novas tecnologias sobre o nível e as condições de emprego, a renda e a proteção social dos trabalhadores. É o que vem acontecendo no País, uma espécie de antecipação dos efeitos dessas tecnologias, paradoxalmente sem adotá-las em grau significativo.
Além do rentismo financeiro que caracteriza o atual estágio da economia capitalista mundial, existem duas maneiras constitutivas de ter acesso à renda e a riqueza: a inserção produtiva no mercado de trabalho e o acesso à propriedade dos meios de produção. Outras formas supõem a mediação do Estado, seja através da oferta pública de bens e serviços sociais ou das políticas de distribuição de renda e proteção social. O bloqueio dessas vias de acesso e a redução da capacidade do Estado de exercer essas funções acentuam a desigualdade social e aumenta a pobreza e a miséria.
Com os padrões atuais de direção e gestão da economia brasileira é pouco provável que o mecanismo do crescimento possa produzir graus de dinamismo do mercado de trabalho capazes de equacionar os problemas de desemprego estrutural e desigualdade social e contrabalançar os impactos negativos das nova tecnologias.Issol torna a questão da renda básica essencial e, ao mesmo tempo, levanta dúvidas sobre sua viabilidade e eficácia social.
A renda básica de cidadania não pode ser concebida para solucionar problemas que são produto das características estruturais da economia e de sua inserção internacional, que produzem exclusão social e desemprego. São essas características que devem ser modificadas, até porque não há como financiar de forma permanente, dada sua dimensão, um programa que atenda às necessidades sociais dos setores excluídos ou precarizados.
Seria necessário criar um espaço fiscal – via, por exemplo, uma reforma tributária radicalmente progressiva, a criação de fundos soberanos para redistribuição das rendas dos recursos naturais ou outras modalidades similares – para viabilizar um programa de abrangência geral. E isso nem sempre é uma possibilidade real. O que ocorre com maior frequência é a implantação de programas focalizados, de menor alcance.
Assim, as perspectivas do mundo trabalho, no caso brasileiro são extremamente sombrias, dado a herança da pandemia, a desregulamentação do mercado de trabalho, o debilitamento da capacidade financeira do Estado, os impactos potenciais diretos e indiretos das novas tecnologias e o crescimento medíocre da economia. Isso torna indiscutível e socialmente inadiável a implantação de um programa amplo de renda básica, com um padrão que garanta um nível adequado de atendimento das necessidades sociais dos grupos afetados.
No entanto a viabilidade a médio e longo prazo e a eficácia social de um programa desse tipo dependem de que ele esteja inserido em um processo de transição para um novo modelo de desenvolvimento, fundado em alguns pilares: a modificação dos padrões de consumo, o redesenho e dinamização do sistema produtivo com critério social e ambiental, a reconstrução da capacidade de investimento e regulação econômica do Estado e o estabelecimento de um novo modo de inserção internacional.
Sem essas condições, a implantação de um programa de renda básica de cidadania tenderia a ser extremamente limitado em sua abrangência e capacidade de proporcionar um mínimo aceitável de atendimento das necessidades da população.