O objeto da compra do pregão eletrônico do Ministério da Justiça é, em bom português, programa oportunista – conhecido também pela designação de malware – que se utiliza das debilidades dos sistemas de segurança de telefones celulares, tablets e computadores, para neles se instalar clandestinamente e sem rastro, com objetivo de phishing e vasculhamento de comunicações entre pessoas.

Os fatos e as notícias indicam que estamos à beira de mais uma grande crise política do governo Bolsonaro. Fica evidente seu esforço de bisbilhotar a vida de pessoas e o funcionamento de organizações da sociedade civil, em total desacordo com a legislação vigente e por meio de prática ímproba. Vamos aos detalhes.

O marco normativo constitucional está no artigo 5º, XII, da Constituição, que estabelece a inviolabilidade do “sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”, excetuando-a, apenas, na investigação criminal e na instrução penal, para produção de prova, sempre mediante ordem judicial. Em outras palavras, é garantia fundamental esse sigilo e o Estado só pode quebrá-lo mediante autorização do Judiciário, quando estiver em causa a persecução penal por crime determinado.

A legislação infraconstitucional, evidentemente, também é restritiva. A Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, trata de regulamentar o permissivo constitucional excepcional e só admite a que a quebra seja autorizada quando a prova não puder ser feita por outros meios. Assim, a chamada interceptação telefônica e de dados é a ultima ratio da investigação criminal, pressupondo, evidentemente, que haja indícios robustos de autoria.

Coisa bem distinta é a quebra do sigilo, clandestina e sem autorização judicial, para fins de inteligência. Essa não encontra guarida constitucional, é ilegal e criminosa. O artigo 10 da Lei 9.296/1996 é categórico ao estabelecer que “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.

Inteligência e investigação criminal são atividades que obedecem a pressupostos e a escopos bem diferentes entre si. A investigação é atividade retrospectiva e tem por alvo fato pretérito que se subsume a um tipo penal; busca colher provas da materialidade e da autoria desse fato. Já a inteligência é prospectiva e se destina a dar subsídios às autoridades para prevenir cenários de risco, sejam esses políticos, criminógenos ou, até mesmo, de perigo natural. É atividade estratégica para instruir o planejamento da ação pública. A inteligência não pode invadir a esfera privada. O Estado não pode sacrificar bens jurídicos caros à democracia para se informar. Não haveria, do contrário, proporcionalidade entre o sacrifício e o ganho.

A compra de softwares que possam se infiltrar em computadores e celulares por meio da debilidade de seus sistemas de segurança, para colher dados além da fonte aberta (aquela acessível ao público em geral, mediante pagamento ou não), protegidos pelo sigilo telefônico, telemático e do ambiente privado, é flagrantemente ilegal. Trata-se de desvio de recursos públicos para fins ilícitos, atentórios à dignidade da pessoa humana. É disso que se trata no caso do pregão eletrônico lançado pelo Ministério da Justiça.

Escandaliza ainda mais o senso comum, a notícia da suposta presença, nas tratativas da compra, do filho do presidente da República, o vereador Carlos Bolsonaro, notoriamente envolvido em práticas à margem das regras das redes sociais e coordenação de ataques por disparo em massa de fake news contra a integridade de atores públicos e de grave distorção de fatos de interesse público. Permitir-lhe voz decisiva na escolha do software – diz-se que teria predileção pelo programa israelense Pegasus – sugere que venha a ter acesso ao uso dos dispositivos invasivos, de certo para finalidade de agitação política e tensionamento do espaço público. É inaceitável imaginar Carlos Bolsonaro com acesso a informações e dados pessoais de seus muitos adversários políticos. Não há dúvida de que faria uso destes para fins eleitorais, implicando verdadeiro abuso de meios de comunicação.

Esse estado de coisas, se verdadeiro, denota prática de improbidade administrativa com prejuízo para os cofres públicos, já que cada exemplar desse software tem custo altíssimo. Trata-se de realização de despesa, a toda evidência, não autorizada em lei (art. 10, IX da Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992 – LIA), já que o objeto da compra é de uso vedado.

É, ademais, imoral proceder a esse tipo de dispêndio em plena pandemia, quando faltam, segundo fontes governamentais, recursos para manter o auxílio emergencial mínimo para pessoas que não estão conseguindo seque cobrir os gastos de alimentação e moradia. Não há, pois, juízo de conveniência e oportunidade que resista a um exame sério do propósito.

A iniciativa revela, mais uma vez, completo descompromisso do governo Bolsonaro com a Constituição de 1988, que jurou cumprir. Sua obsessão contra os que elegeu por inimigos de sua ideologia de extrema direita o faz transformar o Brasil numa república de xeretas, em que ninguém mais poderá ter certeza do resguardo de sua esfera privada. Promove-se, pelo poder público, grave risco para a integridade física, psicológica e moral de muitos que entrarão na mira de seu grupo que espalha ódio por meio da rede mundial de computadores. A atuação do Ministério Público Federal e do judiciário torna-se urgente e imprescindível.