Em 14 e 15 de maio foram realizadas eleições históricas para o Chile. Foram eleitos vereadores e prefeitos, como acontece a cada quatro anos. Também foram escolhidos pela primeira vez na história 16 governadores. E, ao mesmo tempo, eleitos 155 membros da Assembleia Constituinte, um acontecimento histórico único desde a fundação da República do Chile.

O Chile contou com várias constituições ao longo de sua história. Em quase 100 anos, nenhuma foi escrita por uma assembleia democraticamente eleita. Agora, pela primeira vez uma Assembleia paritária, composta por 155 membros, destes, 17 representantes dos povos originários. Foi uma eleição democrática, com 14,9 milhões de pessoas votando voluntariamente. Foram escolhidos 81 mulheres e 74 homens. É a primeira Assembleia Constituinte com paridade de gênero na história mundial.

É um acontecimento histórico, resultado direto da eclosão social de outubro de 2019, que acabou exigindo a Assembleia Constituinte. A pressão política e social foi tamanha que a direita foi forçada a aceitar a reforma constitucional, sempre negada em 30 anos de democracia, visto que tinha votos suficientes no Congresso para bloqueá-la. No entanto, foi imposta uma condição que a oposição considerou muito difícil de superar: a direita exigiu que a nova Constituição fosse aprovada por 2/3 da Constituinte, o que teve de ser aceito pela oposição, não sem críticas de setores da esquerda.

Os resultados das eleições são surpreendentes. Em primeiro lugar, a direita conseguiu eleger apenas 37 constituintes (24% do total), sem atingir um terço necessário para bloquear uma constituição democrática, com direitos sociais garantidos e capaz de dar um basta ao Estado subsidiário.

Em segundo lugar, a esquerda conquistou, com folga, os 2/3 da Assembleia. Isso resulta da somatória de representantes de todos os partidos de esquerda – o Partido Socialista, inclusive –, os constituintes indígenas de esquerda e os independentes.

Entre esses três setores, há convergência sobre necessidade de dar um fim ao Estado neoliberal, de se conformar um Estado democrático e social que garanta os direitos sociais, que proteja a natureza e que declare o Chile como um Estado plurinacional e multicultural. Mas, claro, haverá outros debates igualmente relevantes, como o caráter do regime político – presidencialista, semipresidencialista ou parlamentarista – ou o grau de descentralização do Estado, cujas posições ainda estão amadurecidas.

Consequentemente, o país deu uma guinada à esquerda. Tanto é assim que se consolidou um eixo de esquerda – Partido Comunista mais a Frente Ampla –, obtendo 28 cadeiras, 18% do total. Este bloco superou a tradicional aliança de centro-esquerda – ex-Concertación Democrática – que, agrupando a Democracia Cristã (DC), o Partido para a Democracia (PD) e o PS, obteve 16% das cadeiras. O notável é que a DC obteve apenas 2 deputados e o PPD, 3; o que contrasta com o PS que elegeu 15 constituintes, tornando-se o partido de esquerda mais importante.

Em suma, a eleição para a Assembleia Constituinte é um acontecimento histórico tão relevante quanto a eleição de Salvador Allende em 1970. Foi um verdadeiro tsunami que varreu os partidos políticos tradicionais.  No entanto, ao contrário de outras mobilizações ocorridas na região ou no mundo, outubro de 2019 abriu um caminho para dar fim à herança da ditadura e construir um marco capaz de superar o capitalismo neoliberal, o autoritarismo e a exclusão dos povos originários. Se o Chile foi um dos países onde a revolução neoliberal se completou, acabará sendo o país que enterrará o capitalismo selvagem.