A política externa brasileira foi abalada pela queda de Dilma Rousseff. A partir da ascensão de Bolsonaro, o Brasil passou a ser submisso aos interesses estratégicos dos EUA. E foi isso levou ao isolamento da Nação na comunidade internacional

 

A política externa de Bolsonaro caracteriza-se pela aliança política-ideológica totalmente subalterna à extrema direita norte-americana, recentemente abalada pela eleição de Joe Biden. Com Bolsonaro, o Brasil renunciou a ter uma política externa própria, baseada nos interesses nacionais, e passou a praticar uma política totalmente alinhada à administração Trump, embasada nos interesses geoestratégicos dos Estados Unidos. O Brasil passou a ser, na prática, um satélite neocolonial dos EUA, defendendo posições até mesmo contrárias aos seus interesses nacionais e às suas tradições diplomáticas.

Desse modo, política externa do governo Bolsonaro constitui-se em ruptura não só com a exitosa política externa “ativa e altiva” dos governos do PT, mas também com todas as boas tradições da política exterior do Brasil e com os princípios constitucionais que regem nossas relações internacionais. Essa política desastrada e desastrosa teve como principal consequência o isolamento internacional do Brasil, agravado pela derrota de Donald Trump.

Ernesto Araújo, o excêntrico ex-ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, foi certeiro ao descrever a atual situação do Brasil no mundo, construída após o Golpe de 2016. Em seu discurso na cerimônia do Dia do Diplomata, em outubro de 2020, feito com pompa e circunstância, reivindicou a condição de pária para o Brasil, mostrando que se trata de ação deliberada, executada com orgulho por um presidente da República e seu chanceler que já entraram para os anais da história da diplomacia nacional como responsáveis pela mais nefasta política externa já implementada.

Essa condição de exclusão e de isolamento é ainda mais aguçada pelo contraste gritante com o período de maior expressão e prestígio internacional do Brasil, representados pelos governos Lula e Dilma. Entre 2003 e 2015, o país viu sua imagem positiva atingir o ponto mais alto em toda a história. Mesmo sem reivindicar qualquer status de liderança, o fato é que poucos temas da agenda global comportavam a ausência do Brasil.

Representávamos uma força dinâmica e positiva em busca da construção de uma ordem global mais justa, em que o legítimo direito ao desenvolvimento voltou a figurar como elemento central das organizações internacionais, sem ter que abrir mão da democracia, dos direitos humanos e do meio ambiente.

Esse início de século testemunhou, portanto, a ascensão fulminante e a queda vertiginosa da reputação do Brasil. Saímos da diplomacia “altiva e ativa” perante um mundo perigoso e fragmentado, para a condição jamais vista de subordinação não a um Estado estrangeiro, mas ao seu mandatário. Nem a diplomacia de Castelo Branco, herdeira do Golpe Militar de 1964, e sua política de alinhamento automático, chegou a níveis tão baixos de submissão aos interesses de Washington. Nem Fernando Collor, com seu neoliberalismo ingênuo e desejo deslumbrado de pertencer ao Primeiro Mundo a qualquer custo, cedeu tanto.

Com efeito, uma coisa é aliar-se aos EUA, mantendo, porém, alguns espaços para a defesa de seus interesses próprios, como o Brasil fez, por exemplo, na era FHC. Na época, mesmo priorizando as relações com o Grande Irmão do Norte, não abandonamos a integração regional e as relações com países emergentes. Outra coisa, entretanto, é a terra arrasada de Bolsonaro. A total submissão do país aos interesses dos EUA, em nome de um feroz anticomunismo totalmente deslocado e extemporâneo, que faria até o senador Joseph McCarthy corar. O que se viu foi a inteira perda de soberania, em nome de uma ideologia totalmente ultrapassada.

Fomos do universalismo assertivo, que buscava no mundo as oportunidades para a superação dos endêmicos passivos sociais do Brasil, ao isolamento reacionário, que vê no meio externo a fonte de conspirações fantasiosas, que por sua vez justificam o negacionismo obscurantista das políticas públicas, sobretudo a política externa.

Conduzida por objetivos completamente alheios aos interesses do Brasil, a triste marca da atual política externa é a de fazer convergir a nossa condição de pária em várias frentes de extrema importância para a imagem do país e nossa relação com o mundo.

 

Pária ambiental

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil consolidou liderança nas discussões sobre a governança ambiental. Sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), na qual foram aprovados os principais acordos que orientam as discussões sobre mudança do clima e biodiversidade, momento em que a diplomacia brasileira assumiu protagonismo respeitado pelos países desenvolvidos e pelos em desenvolvimento.

Com a organização da Rio+20, em 2012, que aprovou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, e a atuação decisiva em prol do Acordo de Paris em 2015, essa condição de ator imprescindível para a superação de obstáculos aos avanços nos foros ambientais internacionais foi coroada.

A bem da verdade, o Brasil se converteu, naquele período, em liderança mundial da agenda ambiental, com seus compromissos voluntários de redução de emissões de gases do efeito-estufa assumidos na COP-15. Também contribui para tanto a notável redução da taxa de desmatamento da Amazônia.

Todo esse legado está dilapidado. No plano doméstico, a deplorável falta de políticas consistentes na proteção e preservação dos nossos recursos naturais se soma ao ativo desmonte dos órgãos de fiscalização e controle, ao rompimento do diálogo com as organizações da sociedade civil e à perseguição às lideranças ambientalistas e indígenas. Com Bolsonaro, o Brasil passou a ter uma política antiambiental.

No âmbito externo, as inflexões também não tardaram. Ao discursar na ONU, Bolsonaro insistiu na tese de que o país é “vítima de uma guerra de desinformação sobre Amazônia e Pantanal” e responsabilizou “índios e caboclos” pelas queimadas. O Brasil passou a hostilizar parceiros tradicionais como a Alemanha e a Noruega, por conta de desentendimentos na gestão do Fundo Amazônia. Por decisão de Bolsonaro, o Brasil desistiu de sediar a COP 25, em 2019. Isso sem contar as manifestações de autoridades brasileiras colocando em dúvida a gravidade da crise ambiental, na contramão da comunidade científica representada pelo Painel Intergovernamental sobre a Mudança do Clima (IPCC).

A continuada atitude hostil e negligente em relação às questões ambientais já inviabilizou o Acordo Comercial do Mercosul com a União Europeia. Anunciado como grande vitória do governo Bolsonaro, ele não entrará em vigor, pois o parlamento da Áustria e o próprio Parlamento Europeu, entre outros, decidiram suspender sua aprovação, alegando, como motivo principal, o comportamento do governo brasileiro em relação ao meio ambiente.

A participação na cúpula recém-organizada pelo presidente Joe Biden, em que o Brasil figurou na condição de vilão do clima, foi constrangedora. As promessas de que serão adotadas medidas efetivas no combate ao desmatamento na Amazônia foram recebidas com ceticismo, dada a atuação pessoal do ministro do Meio Ambiente em benefício da extração ilegal de madeira. A falta de credibilidade é a marca da atual política externa brasileira.

 

Pária sanitário

Mais do que um pária, a desastrosa atuação do governo Bolsonaro em relação à pandemia da Covid-19 fez do Brasil uma ameaça sanitária global. Deixamos de ser bem-vindos em outros países. Brasileiros estão impedidos de circular pelo mundo e a maioria das conexões aéreas do país com o exterior foram suspensas.

A ação diplomática não se caracterizou apenas pela omissão. Mais grave do que o imobilismo foi agravar os efeitos da pandemia, ao questionar sistematicamente a capacidade da OMS como coordenadora dos esforços multilaterais. Ao hostilizar ostensivamente a China, país produtor de vacinas e seus insumos básicos, bem como respiradores, máscaras e “kits de intubação”, criamos constrangimentos desnecessários com nosso principal parceiro comercial e fornecedor de produtos hospitalares essenciais. Ao deixar de apoiar a proposta de Índia e África do Sul pela suspensão patentes para a produção de medicamentos essenciais no combate à Covid-19, adotamos a posição de países-sede da indústria farmacêutica, em detrimentos dos pacientes de países em desenvolvimento.

Bolsonaro optou por não adquirir tempestivamente vacinas suficientes para efetuar campanha massiva de imunização e preferiu apostar na cooperação com os EUA para receber doação de milhões de doses de hidroxicloroquina. A ausência de estratégia organizada e centralizada no Itamaraty deixou os entes da federação abandonados à própria sorte. Prefeitos e governadores passaram a atuar de forma isolada e descoordenada junto a fornecedores externos, em contexto de extrema competição por insumos, para manter o suprimento regular de material de saúde junto a estados e municípios.

Foi mais que omissão e incompetência. Contra as recomendações da ciência, o governo Bolsonaro adotou uma política deliberada de disseminação do vírus, com o intuito de se chegar rapidamente à “imunidade rebanho”, o que acabou por produzir variantes do vírus que ameaçam todo o planeta.

Nada nessa postura faz jus à política externa solidária dos governos do PT, que fez da cooperação em saúde com países africanos e latino-americanos vertente central das relações Sul-Sul.

 

Pária regional

O estímulo a processos próprios de integração política, comercial e de infraestrutura com os países vizinhos foi uma marca da diplomacia brasileira. Mercosul, Unasul e Celac são produtos desse esforço conjunto, do qual o Brasil foi protagonista, e compunham visão estratégica que buscava promover a inserção da América do Sul como ator coletivo no mundo multipolar, como atestam as reuniões de cúpula Aspa (América do Sul – Países Árabes) e Asa (América do Sul – África).

Hoje predomina visão diametralmente oposta. Estamos na origem do desmonte da Unasul e da paralisia da Celac. No Mercosul, atuamos como catalisadores das forças que pretendem desfazer a união aduaneira. Ao hostilizar o governo Alberto Fernández, na Argentina, e apoiar o golpe contra Evo Morales, o governo Bolsonaro reacendeu rivalidades há muito superadas.

Ao apostar no isolamento da Venezuela, por meio do Grupo de Lima, o Brasil cometeu erro estratégico de transformar a América do Sul em palco da disputa geopolítica entre EUA, Rússia e China. Romper relações diplomáticas com Caracas priva o Brasil de informações essenciais sobre o país vizinho e deixa milhares de brasileiros sem assistência consular. Reconhecer Juan Guaidó como presidente interino sepultou a capacidade de o Brasil atuar como mediador de um conflito, cuja saída só pode ser política.

O voto na ONU a favor do bloqueio unilateral dos EUA imposto a Cuba completa esse quadro desolador em que o Brasil passou a ser a guarda pretoriana dos interesses hemisférios da Casa Branca.

Seja pela sua diplomacia anacrônica e sem visão estratégica, seja pelos erros da condução na pandemia, o fato é que o Brasil é hoje fator de instabilidade regional.

 

Pária nas relações multilaterais

A política externa brasileira sempre foi reconhecida por sua tradição universalista e não intervencionista. O governo Bolsonaro rompeu com esta tradição e adotou clara submissão à política belicosa adotada por Trump na tentativa de retomar a hegemonia americana, em oposição à progressiva constituição de uma ordem mundial mais equilibrada e multipolar.

Os exemplos de submissão ao irmão do Norte são inúmeros e desastrosos. A entrega da Base de Alcântara, a inserção das Forças Armadas do Brasil no Comando Sul dos EUA, a abertura de escritório comercial em Jerusalém dão mostra do alinhamento acrítico aos Estados Unidos, secundarizando os interesses do Brasil.

Essa submissão tem sido desastrosa em nossas relações multilaterais. Comprometemos nossa participação nos BRICS e tensionamos a parceria estratégica com a China, hoje nosso principal parceiro comercial. Mudamos nossa postura na Organização Mundial do Comércio (OMC), renunciando ao tratamento especial e diferenciado a que tínhamos direito, e rompendo com o compromisso histórico de defesa das posições dos países em desenvolvimento, em especial  de nossos parceiros do BRICS.

O governo Bolsonaro comprou uma briga que não é do Brasil, abriu mão de interesses nacionais, se isolou no cenário internacional. Submissos a Trump, ficamos sozinhos após sua derrota, sem nossas históricas e promissoras parcerias multilaterais.

 

Pária dos direitos humanos

Um dos capítulos mais tristes da política externa brasileira atual é a postura adotada nos foros multilaterais de direitos humanos. O Brasil rompeu com uma tradição solidamente construída ao longo de todo o período pós-redemocratização.  Nos governos do PT, nunca deixamos de advogar pela indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos, tampouco apostamos na retórica fácil da denúncia seletiva, que trata com dois pesos e duas medidas os aliados e os adversários. Fizemos do combate ao autoritarismo, à xenofobia, à miséria, à discriminação racial, à homofobia um objetivo permanente, onde quer que ocorressem.

Como um país em desenvolvimento que convive com o desafio cotidiano de promover e proteger os direitos humanos de seus nacionais, o Brasil aprendeu por experiência própria que a cooperação e o diálogo são mais eficazes para a proteção das vítimas de violações do que a fácil condenação pública, em geral baseada em suposta autoridade moral autoconferida. É central nesse esforço o investimento na construção de capacidades nos países que requerem tal assistência, na forma de treinamento e fortalecimento das instituições domésticas, e na promoção da troca de aprendizados e boas práticas. Essa atitude equilibrada e construtiva é parte do acervo formado até então pela diplomacia brasileira.

Essas robustas credenciais vêm sendo sistematicamente destruídas. O governo brasileiro atual compartilha e difunde a crença de que existe conspiração mundial de gênero contra a família tradicional. Internamente, essa mesma percepção motiva a ação de iniciativas como a escola sem partido. Na área de política externa, ela se traduz nas teses contra a “ditadura do politicamente correto”, do “ambientalismo” e “do globalismo de raiz marxista”, camuflados em discursos de liberdade e igualdade que seriam impostas por organizações internacionais.

Sensível as pressões de Trump e das bancadas evangélicas, o Brasil se aliou a países em que a religião tem um papel predominante na política e que atuam nos foros internacionais em oposição a medidas percebidas como favoráveis à legalização do aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, novas técnicas reprodutivas, entre outras. É essa visão de mundo que leva o presidente Bolsonaro a denunciar, em seu discurso na ONU, uma alegada cristofobia crescente no mundo e ressaltar que “o Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base.”

O governo Bolsonaro votou junto com regimes autoritários de países como a Arábia Saudita e Paquistão, sobre direitos sexuais de mulheres no órgão de Direitos Humanos mais importante das Organização das Nações Unidas (ONU). Acompanhou ainda a ditadura militar do Egito e o Iraque em texto sobre “direito à saúde sexual e reprodutiva”, além de ter subscrito proposta do Paquistão de eliminar a educação sexual de resolução da ONU.

No documento da candidatura brasileira à reeleição no Conselho de Segurança de Direitos Humanos da ONU, o governo Bolsonaro reviu acordos históricos de mais de 25 anos. O país retirou menções à desigualdade, LGBTs, tortura e gênero, ao passo que citou nove vezes a “promoção da família”. Essa mudança brusca e radical das posições do Brasil provocou surpresa e rejeição em todos os países mais progressistas e democráticos, que antes viam o Brasil como um aliado na luta pelos direitos das mulheres e de demais minorias.

 

Itamaraty como pária institucional

O ministério das Relações Exteriores não ficou imune à ofensiva do bolsonarismo contra as instituições do Estado brasileiro. O salutar intercâmbio de ideias que caracterizou o serviço exterior nas últimas décadas foi drasticamente reduzido. Atualmente, nossa diplomacia trilha caminhos sombrios, pautada pela intolerância e pela aversão ao contraditório no seio da instituição.

O insulamento a que vem sendo submetido o Itamaraty tem contribuído de forma decisiva para o descolamento do seu corpo funcional dos grandes temas que marcam o cotidiano do país. O ministério é, hoje, ator solitário, impermeável ao intercâmbio com as organizações da sociedade civil, com os partidos políticos, com a academia, com os entes federativos e com o Poder Legislativo. Dois de seus braços mais tradicionais de interação com o espaço público estão seriamente comprometidos: é lamentável observar a paralisia instalada no Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais e triste constatar que a Fundação Alexandre de Gusmão tenha assumido o papel de caixa de ressonância de um dogmatismo alarmante.

O Itamaraty de hoje não formula, não informa, não representa, não dialoga e não coordena. O Itamaraty de hoje, por imposição do presidente da república, persegue, desinforma, tolhe, inibe e confunde. A consequência prática dessa destruição institucional é que o fosso entre as necessidades do país e sua diplomacia externa nunca foi tão grande.